O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo XVII

Réquiem

Os primeiros raios de sol anunciavam um domingo de clima agradável, mas a tristeza estava presente no cemitério da Consolação. Os corpos de dois jovens acabavam de chegar ao local. Raphael tinha vinte anos e Lívia, sua irmã, apenas dezoito. A tragédia abateu-se sobre os dois irmãos. Parentes e amigos da família começavam a chegar para cumprimetar os pais dos jovens mortos e lamentar o ocorrido.

Alberto havia passado a madrugada cuidando da documentação e organizando os preparativos que a ocasião requeria. Mário o acompanhou. Por volta das sete horas da manhã, eles chegaram ao cemitério onde Mirtes e Ana, inconsoláveis e abatidas, esperavam pelo início do velório. Mirtes viu quando o ex-marido e o cunhado chegaram, preferiu, no entanto, esperar melhor oportunidade para os cumprimentos. Alberto, antes de qualquer coisa, procurou pela administração do cemitério e solicitou que se providenciasse um esquema de segurança na entrada do cemitério para que jornalistas, fotógrafos e demais profissionais da imprensa não o incomodassem neste momento difícil para ele e sua família. A administração do cemitério da Consolação atendeu ao pedido do candidato ao governo do Estado, que, àquela altura, estava em primeiro lugar nas pesquisas eleitorais faltando exatamente uma semana para a realização do pleito. Depois disso, Alberto foi ao encontro de Mirtes e Ana que conversavam com Mário. Foi abraçado pelas duas aos prantos.

– O que aconteceu? Eu estou sem entender nada até agora. – questionou a ex-esposa.

– Foi uma fatalidade, Alberto! Os nossos filhos eram jovens muito ajuizados. Eu também estou sem entender nada. Por que, meu Deus! Por quê?

– Não rolou bebida na festa que eles foram? É preciso ter muito cuidado, jovens normalmente não têm limites.

– Não. A bebida não foi a causadora desse horrível acidente. – explicava Mirtes, enquanto Ana e Mário se dirigiam até a administração do cemitério – Os amigos do Raphael e da Lívia, aquelas moças e aqueles rapazes que estão ali – apontou para um grupo de jovens que conversavam entre si – me disseram que o nosso Raphinha tomou apenas refrigerante durante a festa de aniversário, ele não gostava de bebidas alcoólicas. O Raphael era um menino de ouro! Meu Deus, como dói! A única diferença que os amigos notaram nele, foi que estava muito melancólico ontem à noite, monossilábico, quase nada falava, foi assim a festa inteira, nem uma mocinha que ficou com ele, esses namoricos dos jovens, conseguia reanimá-lo ou saber qual era o motivo de tanta tristeza. Os amigos ficaram com a impressão de que, pelo comportamento estranho do Raphael, ele devia estar pressentindo uma tragédia iminente.

– Não sei, Mirtes, nestes casos eu não acredito muito em fatalidades. Talvez ele tenha dormido ao volante. – Alberto tentava demonstrar interesse pelos filhos mortos para disfarçar o abandono que dera a eles.

– Não, Alberto. Acho que isso também não aconteceu. O Raphael dormiu bem na sexta-feira, inclusive ontem de manhã ele acordou depois das dez. Tenho certeza de que também não foi esse o motivo do acidente.

– É, o que aconteceu realmente nós nunca saberemos. Também nada disso vai restabelecer a vida dos nossos amados filhos. É uma perda lamentável que marcará as nossas vidas para sempre. Os jovens na idade do Raphael e da Lívia são muito passionais e imprevisíveis. – dissimulava sem um pingo de remorso, enquanto se recordava do desencontro que havia tido com o filho três ou quatro dias atrás, “O Raphael devia estar deprimido por isso. Esses jovens são umas bestas mesmo. Bem, eu não queria que isso tivesse acontecido com eles. Bem, já que foi assim, paciência” – pensava friamente o homem sem coração.

– Alberto, o Raphael esteve com você esta semana, não foi? – perguntou Mirtes – Ele não falou se estava com algum problema?

– A mim ele não disse nada. Jantamos juntos naquele dia e nos divertimos bastante. Ele estava muito feliz. – mentia despudoradamente o homem sem coração, pois tinha percebido que o filho não teve coragem de contar para ninguém da mancada que o pai havia lhe dado. “Raphael também teve a sua ‘noite de almirante’, melhor assim”, concluiu em pensamento.

– Eu sei que ele estava feliz, ele me contou. Aquele foi o último dia que eu o vi contente, passou o dia inteiro se aprontando para a ocasião. Coitado do meu filho, meu Deus! A Lívia também estava bem ultimamente. Tadinha da minha filhinha! Meu Deus, por quê? Por quê? – lamentava-se Mirtes enxugando os olhos com um lenço branco que segurava com as duas mãos.

– Mirtes, não fique assim. Precisamos ser fortes. Agora é com Deus. Nós fizemos a nossa parte. A vida é muito ingrata, Mirtes. Você não imagina como estou por dentro também. Nada para mim é mais importante que os nossos filhos, entende?

– Eu sei. Eu sei. Mas pra mim será muito difícil viver daqui pra frente. Sinto-me como se tivessem me dividido em três e depois tivessem levado duas partes minhas, resta-me apenas uma, o Betinho. O que farei agora, Alberto? – calou-se Mirtes e ficou vagando entre as boas lembranças dos filhos.

Ana, que combinava alguma coisa com o marido, chamou-os à sala onde os dois corpos já estavam expostos. Mirtes chorou muito ao ver os dois filhos, antes tão jovens e cheios de vida, agora inertes e frios dentro de duas caixas de madeira, conseguiu apenas sussurrar algumas palavras olhando para o alto e desmaiou em seguida, duas enfermeiras, providenciadas pelos precavidos Ana e Mário, socorreram-na. Mirtes não pôde acompanhar o cortejo, passou aquele e mais três dias no hospital. Alberto tentava demonstrar alguma tristeza diante dos caixões porque ele mesmo ficava encabulado por não conseguir sentir nenhuma emoção vendo os corpos inertes dos filhos que um dia ele amou.

A única coisa que Alberto sentiu naquele dia foi uma vontade incrível de possuir Ana. De vez em quando, mesmo dentro do velório dos filhos, ele dava um jeito de correr os olhos na direção da ex-cunhada e o seu pensamento ia longe: “Caramba! Como a Ana está chamativa. Acho que o Mário não deve dar trabalho nenhum pra ela. Que saúde! Que corpinho gostoso! A minha cunhadinha está uma delícia”, pensamento insólito para a ocasião. No entanto, o homem sem coração chegou a uma conclusão: “Eu não vou descansar enquanto não arrastar essa mulher pra cama”. De tanto que Alberto secava a ex-cunhada, houve um momento em que Mário, marido dela, percebeu o olhar indiscreto dirigido a sua mulher:

– Alberto, você está com algum problema? - perguntou.

– Não, Mário. Estava aqui pensando na Ana.

– Ah, é? Por quê?

– O Raphael e a Lívia gostavam tanto da tia, né? – despistou.

– Sim, Alberto. Ela também gostava muito deles. – Mário envergonhou-se por ter pensado mal do amigo de partido, “Coitado! O Alberto está delirando de dor pelos filhos e eu pensando besteira, que mancada a minha”, ponderou.

O enterro dos dois jovens ocorreu à tarde com a presença maciça de pessoas próximas à família. Alberto estava sempre cercado por amigos, parentes, políticos e bajuladores de toda espécie. Até dois candidatos, adversários na disputa direta pelo governo do Estado de São Paulo, compareceram para cumprimentá-lo e prestar os pêsames à família. Afinal de contas, era um momento difícil para o prefeito da cidade, afastado do cargo, e, eventual, futuro governador do Estado. Os jornais e a televisão divulgaram as notícias do trágico acidente durante o dia inteiro e até à noite alguns canais mostravam as poucas imagens de Alberto no cemitério. Uma imagem marcante, repetida com exaustão pela TV, era a da saída do candidato do cemitério da Consolação, todo de preto e de óculos escuros, pedindo aos repórteres que ali se encontravam que o respeitassem naquele momento de imensa dor, prometendo que daria uma entrevista coletiva a todos no dia seguinte. Ninguém sabia que havia o dedo mágico de Chiquinho Sollo tirando proveito da tragédia ocorrida para impulsionar a arrancada final do candidato para o governo do Estado.

A comoção causada pelo impacto da trágica morte de dois filhos do candidato Alberto Monteiro próximo das eleições, impulsionou ainda mais sua popularidade. Os eleitores guardaram na memória as imagens de um pai triste e cabisbaixo que viram na televisão num domingo inteiro, faltando uma semana para as eleições. Chiquinho Sollo conseguiu com isso muito mais que os pontos de que ele precisava. Não era nem necessário que Alberto, como um verdadeiro ator, dissimulasse um choro na frente dos televisores ligados na entrevista coletiva concedida e no último debate eleitoral antes das eleições do 1º turno. O governo do Estado já estava garantido. A apuração das urnas ratificou o fato, Alberto arrematou 62% dos votos válidos tornando-se, já no 1º turno das eleições, governador do Estado de São Paulo. A fera estava solta, ninguém mais poderia detê-la. A presidência da República era o próximo alvo.

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Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 02/04/2010
Código do texto: T2173436
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