Ungüento

Despertou surpreso e de modo súbito, com a dor. Sua surpresa não era exatamente com a dor, mas com o despertar súbito. Ora, não estava ele há muito tempo habituado a sentir dor? Porque o despertar súbito, se a dor, ou melhor, todas as dores, já lhe eram familiares desde sempre? Não lembrava exatamente quando passou a ter em si todas as dores do mundo, não sabia se foi na infância, ou na adolescência. Apenas lembrava que um dia começou a sentir uma insuportável dor de dente, foi ao dentista, mas não havia cáries, não tinha dentes podres, e o seu dentista lhe disse que estava tudo bem com sua boca. Diante desta palavra do especialista, passou a sentir fortes dores nas pernas, que o impossibilitaram de andar por um bom tempo, jogando-o em uma cadeira de rodas e forçando-o a fazer uma série de exames médicos, passar por vários ortopedistas, procurar outros especialistas da medicina, e sempre não receber diagnóstico nenhum. Até que um dia as dores nas pernas sumiram e migraram para o coração, depois os pulmões, as articulações dos membros superiores, a garganta, os olhos, a cabeça, dores intestinais, febre, tremores pelo corpo, e tantas outras enfermidades, que nunca receberam diagnósticos precisos. Elas simplesmente vinham e iam embora, assim, sem mais nem menos. Já não sabia mais onde doía. Mas a dor nunca mais o abandonou, e ele acostumou-se a viver assim, com dores.

Depois dos transtornos iniciais das primeiras ondas de dor, depois de procurar ajuda na medicina, em terreiros de macumba, nos templos de igrejas pentecostais e nos livros de autoajuda, ele desistiu, e a dor passou a ser sua companhia constante. Não havia nada mais a fazer, e foi tocando a vida. É bem verdade que as pessoas estranhavam sua presença, seu jeito macambúzio e seus gemidos constantes. Ora estava de muletas, ora em cadeira de rodas, em outras ocasiões, prostrado na cama. Mas sempre com a dor. Uma dor que não tinha localização, que nunca teve diagnóstico, e passou na verdade a ser sua condição de vida.

A surpresa que lhe tomou naquela manhã, trazendo uma estranha e esquecida sensação de bem estar, foi a certeza que tinha encontrado o remédio para sua dor. Não sabia exatamente o que era, apenas uma sensação de bem estar, pequenina, subjacente a toda dor que lhe invadia. Não que não tenha acordado gemendo. Acordou, como de praxe, com dores inimagináveis por todo seu corpo, mas entre um gemido e outro, entre um soluço e outro, em seu rosto banhado de lágrimas, esboçou-se um tímido sorriso de sabor agridoce.

Não conseguiu ergue-se. As ondas de dores eram insuportáveis. Não havia um local especifico que doesse. Seu corpo era todo dor. Tentou gritar, mas o grito foi sufocado por uma gargalhada estrondosa. Não conseguia mais parar de gargalhar, gemidos escapavam de seus lábios ressecados, misturando-se com as gargalhadas. Passou a tossir incontrolavelmente e a babar. Sua respiração foi se tornando cada vez mais ofegante e seus olhos, de uma vermelhidão assustadora, pareciam querer apagar. Seu corpo de aspecto cadavérico passou a ter espasmos ininterruptos, sua mente não conseguia pensar direito, mas uma palavra parecia repetir-se dentro de sua cabeça: Cura! Cura! Cura!

Em sua pele áspera, por toda superfície de seu corpo magro e de ossos à mostra, furúnculos explodiram em pus e sangue. Uma agonia nunca antes sentida, mesmo ele tão habituado a dor, tomou conta de si. Queria erguer-se e correr. Jogar-se na frente de um caminhão, pular cordas. Enfim, toda sorte de desejos absurdos lhe invadiu, mas não tinha forças para nada. Gritos lancinantes, choros suplicantes, gemidos e gargalhadas saiam de sua boca, em uma sintonia danada. O que era apenas pensamento confuso passou a ser verbalizado de forma gutural e quase incompreensível: Cu... argh! Cof! Cof! Aiiiiiiiiiiiiii! Ra... Cura! Argh! Ai! Ai! Uiiii! Ah! Ah! Ah! Ah!

Um último espasmo, um derradeiro solavanco no corpo macilento, gritos, gemidos, gargalhadas.... Um berro final. O corpo agora jazia no leito. Encharcado de suor, pus e sangue. Feridas pútridas espalhadas naquele corpo ferido de chagas inomináveis. Nada mais havia ali. Nem dor, nem desejo, nem medo e muito menos esperança. Apenas um cadáver magérrimo e de aparência dantesca. Mas em cuja face chupada e feia, um sorriso abria-se em meio à baba e a secreção seca que lhe escorreu do nariz.

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 11/04/2010
Reeditado em 17/02/2011
Código do texto: T2190187
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