Fábula De Um Dia De Anja A Espera do Homo Sapiens

Anja, expulsa do céu quase que por vontade própria, reside há séculos no inferno, e achava menos entediante.

Quando lá chegou, descartou morar na Ira, como ex-anja-do-céu, não aprenderia nunca esse pecado. Descartou também a Avareza, não tinha noção de dinheiro. A Preguiça? Como, pois se era inquieta demais pro céu, como lá seria suportada? Tinha uma certa coerência... Pensou em residir na casa da Gula, mas desistiu, pois achou que esse pecado deformaria seu formoso espectro...Então, se por vaidade não moraria na Gula, na Vaidade residiria seu ser...

Em dado momento, estava tão evoluída neste pecado, tão absorvida nele, que não percebeu a temperatura de seu espectro aumentar. Isso era sinal que precisava se mudar. Queria ver o poder do seu estudo em outros âmbitos... Mudar-se-ia para a Luxuria e lá exerceria seu pecado aprendido junto a outro aprendizado. O único inconveniente de ir à Luxuria, seria ter como vizinha a Inveja. Porém, antes da mudança, faria uma viagem ao mundo, conhecer a existência humana.

Anja, que já andava fervendo na febre da vaidade, trombou com um mortal que tinha vontade de ser mastigado, feito carne de churrasco pela espécie feminina... Mostraria à ele, que dentes imortais, levariam ao êxtase sublime e de todas as humanas desistiria...

(...)

Voltar pro seu inferninho costumaz, tendo agora que decidir se fica na cômoda Vaidade, terreno que já conhece e é mestra, ou muda-se para Luxuria.

Vagar pela Terra deixou o espectro da Anja ainda mais quente. Sente-se em convulsões. Anja, que já era doente, no contato direto com seu simples mortal, piorou. A febre, que ardia em seu espectro, causava-lhe delírios na sua vigília constante. O sono não era digno de anjas.

Enquanto o normal mortal perambulava, Anja confessava-se no setor de atendimento aos moradores do inferno, com a Deusa-Pagã, a gerente-geral da morada luxuriante. Queria saber se mudando da Vaidade para a Luxuria, viria seu bálsamo. A Sacerdotisa-Conselheira, que por opção negava a equilibrar-se num pé só, e também por opção permanecia a morar no plano celestial, divertia-se com a Anja febril que tagarelava sandices argumentais que eram rebatidas pelos dogmas profanos da Deusa.

Anja, em momentos raros de lucidez, duvidava se devia abrigar-se naquele pecado ou aposentar as asas para seguir a rota de retorno ao céu que lhe fora negado por causa das suas depravações, na companhia da Sacerdotisa. O calor dava pouca trégua. Logo voltava a ferver em teu espectro e trazia a lembrança do mortal. Essa febre nunca iria embora. Isso era fato. Fato eterno. Gostava de voar entre as laberadas lascivas do inferno. Então manter as asas seria necessário. Não poderia pegar na mão da Sacerdotisa e seu rumo seguir. A Vaidade já era insuficiente para aplacar seus desejos transformados em enfermidade. Precisava da cura. Então só lhe restava a Luxuria para abrigar seus anseios. A Luxuria que à deusas, anjas, mortais e zumbis, abriga. Seu homo sapiens, seu alívio, poderia circular livremente na sua nova casa. Sua redenção viria.

Anja pecadora que acredita na absolvição, que dependeria apenas da visita ciscadora do seu mortal.

Anja despencada do céu, emana cântico estridente, dilacerado. Tem a propriedade de hipnotizar, mas sua voz não está mais tão afinada e seu homo demorou a chegar...

Cherry
Enviado por Cherry em 05/06/2005
Código do texto: T22214