DAR O NOME VI

- Meu Deus, Sr. Amílcar, que tragédia!

- Foi trágico, Benito. Foi trágico nunca mais ter visto o meu irmão. Voltei com a tal personagem para casa...

- A Clara?

- Já em Portugal, aqui na Quinta dos Sobreiros, resolvi dar-lhe um nome. Esperara dois meses por notícias do Thierry. Tinha ficado de investigar a identidade da mulher. Entretanto tentei pesquisar por minha conta. Quem podia ser ela? Pelas características físicas podia ser judia. Tinha a pele clara e cabelo escuro que por essa altura já lhe cobria o couro cabeludo ainda bastante ferido. Olhos muito pretos. Traços perfeitos, boca pequena, nariz delicado. Podia ser espanhola. Podia ser cigana. Podia ser simplesmente uma polaca de classe alta, podia ser ucraniana ou até francesa ou belga. Podia ainda ser uma alemã que fosse testemunha de Jeová. Lésbica. Comunista...

- Credo!

- Naqueles campos as pessoas estavam divididas por diferentes categorias. Cada categoria era identificada por uma estrela de determinada cor. À categoria dos judeus correspondia a estrela amarela. A cor vermelha era atribuída à categoria dos comunistas.

- Era uma lógica simples.

- Era de uma eficiência atroz. O verde correspondia à categoria dos criminosos comuns. O roxo era para a categoria das Testemunhas de Jeová que por serem objectores de consciência se recusavam a pegar em armas...

- A Clara podia ser alemã...

- Podia. O castanho era da categoria dos ciganos. O negro da categoria das lésbicas e anti-sociais e o rosa era da categoria dos homossexuais.

- Mas ela não trazia estrela...

- Pois não. Por isso dei-lhe o nome de Clara Catalão. E inventei-lhe um passado.

- Um passado de ficção ou podemos dizer um eufemismo?

- Caro Benito, desta vez superou-se... Essa ironia dá-lhe um toque refinado...

- Obrigada, Sr. Amílcar, deve ser da convivência com o senhor...

- Em qualquer caso foi o que fiz com a melhor das intenções. Todos os dias depois do almoço sentava-me com ela saleta e falava-lhe da Aurora, sua mãe, do Victor, seu pai, das irmãs, Maria e Pilar e criei esse universo paralelo. Ela ouvia. De facto eram os únicos momentos em que tinha a sensação de ela estar cá, estar atenta. O resto do tempo aqueles olhos eram dois buracos negros...

- Coitadinha... E o seu irmão? Escreveu o tal livro?

- Não. Na primeira carta que recebi dei-me conta que ele estava a perder-se completamente. Dizia que a cada testemunho que recolhia ficava mais aturdido. Começou a entrevistar prisioneiros alemães, antigos guardas dos campos. Foi pior a emenda que o soneto. Ele devia estar à espera de encontrar uma verdade extraordinária, uma origem do mal extra-terrestre ou diabólica. Aquela mente juvenil deve ter fantasiado que seres de outra galáxia tinha tomado os corpos de seres humanos inocentes e teriam praticado atrocidades. Acho que foi um choque perceber que aqueles homens e mulheres que fabricaram aquele mundo demente eram apenas homens e mulheres comuns. Nem totalmente sádicos, nem muito inteligentes.

- E os médicos das experiências com cobaias humanas?

- Sim, houve algum sadismo nessas experiências. Mas de modo geral não foi o sadismo que mantinha os campos a funcionar. Foi o carreirismo. A obediência. O carneirismo, se quisermos inventar uma palavra nova. Mas acima de tudo a falta de vontade de tomar uma posição.

- Aquelas pessoas tinham a hipótese de recusar desempenhar aquelas funções de matança...

- É isso mesmo. Fazer o que está certo pode ser difícil mas é sempre uma hipótese. O homem tem sempre essa liberdade. Sempre!

- E o seu irmão?

- A cada carta senti que ele estava mais desiludido. A verdade que ele queria desnudar escapava-se-lhe. Ele não a alcançava. Não entendia. Não queria entender. Os crimes dos quais obtinha relato eram crimes que o Homem não podia punir nem perdoar. A noção de mal absoluto que provinha de dentro era-lhe insuportável. A fé que ele tinha na Humanidade ficou destruída.

- Era muito novo para tudo o que viu.

- Sim, sem dúvida que foi uma visão de horror fora de tempo.

- Começou a beber. Não teve tempo de se tornar um alcoólico pois no meio de uma bebedeira foi atropelado por um autocarro e morreu.

- Jesus, Santa Maria!

- Pois.

- Coitadinho, do seu irmão. Que cruel destino!

- E lá tive de ir reconhecer o corpo. A França. E lá trouxe o cadáver e o enterrei no jazigo de família. Depois casei com a Matilde e fiz de conta que o filho do Thierry era meu...

- Que nobreza de carácter tem o Sr. Amílcar!

- E queda para fazer ficção...

- Sim, sim. Mas sempre por boas causas.

- Obrigado, meu caro.

*- Podemos almoçar, Benito?

- Claro, Sr. Amílcar, a Rosa deve ter tudo pronto. Deixe-me arrumar a tralha toda. De tarde podemos ler um livrinho que queira. Gosto muito de ler os seus livros.

- Talvez depois da sesta.

- Está cansado? Pois deve estar. Exausto com este desenterrar do passado...Mas...Sr. Amílcar, perdoe-me a insistência, o que aconteceu à Clara?

- A Clara morreu. Nem toda a gente vira múmia como eu...

- Ora , ora Sr. Amílcar, o senhor não é nenhuma múmia, tem uma respeitável idade. Se calhar é uma espécie de medalha de Deus por ter tido um destino tão difícil...

- E ele a dar-lhe com o destino.

- Vou avisar a Rosa que prepare o almoço. Na volta trago as ementas para o jantar do resto semana.

Mas a história ainda não acabou, pois não?

- Qual história? A minha não. Tenho 110 anos, vivo neste quarto e devo ter ainda imensas aventuras à minha espera...

- Sempre a brincar! Sabe bem o que quis dizer...

- E já não quer?

- Não quero o quê?

- Dizer...

- Sempre a brincar aqui com o menino, seu maroto! Volto já. Descanse. Eu já lhe venho soltar a língua...

- É o meu músculo mais eficiente, de facto.

- E a memória...

- A memória não é um músculo, Benito.

- Pois não! Que burro!

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 27/04/2010
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