PARAFUSOS

Um pote de vidro transparente de tampa preta, enroscando, enroscando até fechá-lo no sentido horário, e para abri-lo no sentido anti-horário.

Seduziu-me ali depositado sobre reposteiro naquela lisa sala de ferramentas. As paredes cruas. Úmidas. Meus passos vinham tímidos, meus olhos pareciam de séculos vir namorando. OS parafusos embolados até o gargalo, entupidos dentro daquele vidro tão transparente. Os parafusos tão semelhantes; uns altos, outros baixos, mas muito semelhantes. O que os diferiam para que todos ficassem guardados? A rosca. Sim, suas formas sinuosas que enroscariam num ponto aberto, encaixariam e prenderiam o objeto. Uniriam as partes.

Poderemos precisar de todos os parafusos um dia, de todos. Ei-los todos os ai dentro deste pote de vidro, tampa que vai se enroscando, enroscando, enroscando até fechar. Encaixar.

Mas ao me aproximar bem, com olhos míopes pelo conturbado choque de tantas parafernálias tão parecidas, eis que reparo que nem todos são tão simplesmente semelhantes como se me parecia. Existe um de cabeça amarela. Parece ser uma cabeça plástica, amarela. Aproximo mais o rosto, os olhos míopes de curiosidade. Não tenho bem certeza... do amarelo, pode ser... Não, é mesmo amarelo. E quando tomo o pote na mão, nas duas mãos porque é preciso (o pote gelado), vejo que existe um de cabeça vermelha lá no meio daquela confusão de tantos parafusos embolados, e agora giro o pote entre minhas mãos, procurando o de cabeça amarela. Não acho. Onde? Cadê? Acode-me uma sofreguidão, leve angustia que dura talvez... centésimos. Encontro-o, o parafuso de cabeça amarela. Mas como, enroscado lá pelo final do pote, nem lhe posso ver o rabo, a rosca. Mas não era esse, não era esse. Não, devia ser, mas é que me lembro bem que o parafuso de cabeça amarela estava no comprido, quase colado ao vidro, podia ver-lhe muito bem toda sua extensão. Como posso me esquecer tão fácil, tão fácil; um minuto que se passou e a certeza já mudou, a duvida já assume lugar. Era esse, porque era o único parafuso de cabeça amarela entre tantos, mas revirando o pote em minhas mãos vi que não, lá, lá estava, aqui, olha; aproximei mais os olhos, bem mais, parei, será outro parafuso de cabeça amarela ou será o mesmo que diferenciei do primeiro que achei que tinha visto. Sei lá, não tenho mais certeza de nada, sei que este que vejo agora posso vê-lo em todo seu comprido, o rabo e a rosca, contudo não está aderido ao vidro como achava de primeiro.

Deviam ser três parafusos?

Girei o vidro entre as mãos, e agora vi o parafuso de cabeça amarela lá no final, apenas a cabeça amarela apontando. Deus! Mas não era tanto assim, dava para ver uma parte do corpo. Não dava? Dava? Será outro parafuso de cabeça amarela? Tudo me foge tão rápido, e o pote parece tão esférico, embora de longe, sem o toque de minhas mãos ele parecesse tão quadrado.

E o parafuso de cabeça vermelha? Giro o pote cuidadosamente em minhas mãos, sobre meus olhos míopes de atenção, para que não se perca, mas não consigo divisar onde foi que achei o parafuso de cabeça vermelha. E deparo-me com tantos parafusos de cabeça metálica, tantos, tantos, embolados, que posso acreditar que o rabo-rosca de um pode ser a cabeça do outro, e não vejo... Vejo o parafuso de cabeça amarela! Meus lábios crispam, ah, mas ele me parece apontando sua cabecinha inclinadamente para o alto, como se quisesse sair de dentro do vidro em que esta trancado. Então será esse outro parafuso de cabeça amarela? E aqueles anteriores onde estariam? Marco a direção desse com o dedo mínimo da mão esquerda e saio procurando meticulosamente, por cada detalhe do pote de vidro, mas meus olhos dançam na órbita me sinto confuso, acabo divisando outro (seria mesmo outro) parafuso de cabeça amarela. Meu dedo mínimo esquerdo fugiu, eu não sei se o marquei. Eles estão tão apertados ali. Se fosse sacudir... Não de nada adiantava, os parafusos estavam estagnados de tão apertados ali dentro do pote. Vejo o parafuso de cabeça amarela inclinando-se como que querendo sair do pote de vidro. Seria apenas só aquele parafuso de cabeça amarela. E o parafuso de cabeça vermelha?

Despejei-os todos ali em cima de uma mesa empoeirada e quase lisa, um pouco plana, e as mãos tremulas foram procurando, catando-os como quem cata feijão, mas como quem busca grãos em especial, e ainda continuava aos meus olhos o mar, a confusão de tantos parafusos tão semelhantes, embora os detalhes da rosca, das voltas – sabia muito bem – os diferiam. E lá estava não tanto no meio de todos aqueles iguais, mas escapando pela beirada, o parafuso de cabeça amarela. Único. Simples. E adiante, quase querendo rolar por mesa abaixo, o de cabeça vermelha. Único. Simples.

Peguei-os, um em cada mão. Divisei-os sobre meus olhos atenciosos, perante meu sorriso supersticioso. Enfim... os parafusos. Derramei meus olhos sobre a mesa com tantos parafusos de cabeça metálica. Muito iguais. Apenas as voltas em suas caudas os destacariam.

(...).

Arrepanhei tudo com mãos cheias e devolvi ao pote, mesmo parafuso de ponta amarela e vermelha; enrosquei, enrosquei a tampa preta do pote transparente e enclausurei-os de volta, depositando o pote sobre o reposteiro. Olhei de perto, cautelosamente, bem de perto, e não vi a cabeça amarela apontando: nenhuma, mas destacou-se o de ponta vermelha, estagnado, junto ao vidro. Por que se destacara? E os de cabeça metálica não pareciam se destacar todos? Mas não os distinguia por serem tão iguais. Devia de ser por isso... Era só por isso?

Recuei, recuei mais, cheguei quase à porta, bem distante de onde repousava o pote de vidro transparente, e dessa distancia, dentro do pote de vidro, todos os parafusos pareciam uma mesma massa homogênea de cor de metal ou alumínio.

Rodney Aragão