Era ela o universo

Sentiu um suave roçar de lábios em sua face. Não sabia se estava sonhando ou era realidade. Acordou, ou não, surpreso e livre, momentaneamente, dos pesadelos. Era ela. Por que o carinho neste turbilhão de mágoas? Tanto amor, tanto ódio.

Há muitos anos vivia com aquela estranha. Engalfinhavam-se por tudo. Por raiva, por desejo. Agora, sentiu vontade de beijá-lo. Queria se manter distante, mas a vontade foi mais forte. Tanto amor, tanto ódio.

Era um mistério. Poucas vezes conseguiu transpor a imensa barreira, aquela couraça protegendo a fragilidade quase infantil. Raras frestas permitiam saber um pouco, um pedacinho de sua história. Quase um milagre quando abria o coração e mostrava docilidade.

Era um vulcão, num momento, um mundo de voluptuosidade, noutro um terremoto de ofensas e rancores.

Quem era aquela mulher que dormia ao seu lado. O universo. O gelo de plutão e o fogo de mercúrio vivendo na mesma alma. Galáxias, buracos negros, estrelas cadentes. Lama, impropérios, calúnias. Tudo ali, naquele ser de carne e osso, suores e medos, curvas e desejos, ódios infinitos e ternuras inesperadas. Eram, geralmente, brilhantes no que faziam, mas, juntos... dois idiotas sentados num barril de pólvora.Tempestade. Metralhadora giratória. Ironicamente, tudo era uma grande rotina: a eterna imprevisibilidade.

As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. Aqueles versos do Bandeira sempre martelavam em sua cabeça – você vai morrer louco tentando entender a alma desta mulher.

Mas, agora, por um segundo, esquecera tudo, as confusões, as brigas, as perdas. Ela, suavemente, subindo por sobre seu corpo. Não importava se ela passou o dia todo esbravejando farpas, uma outra parte daquele ser multifacetado trazia carícias, loucura, fantasias... A fêmea, aquele animal no cio, estava de volta.

- Eu te amo, seu desgraçado! Bandido, cachorro! Ele tomou conta de sua alma, de suas carnes.

- Te odeio por te amar! E os dois corpos entravam em fusão, já não havia mais paredes, casa, cidade, sons, nada. O tempo não existia. Ela, em sua plenitude. Era só uma mulher em seu vôo, um cometa, passando por sua vida e deixando rastros, cicatrizes. Nunca na moldura de uma cama nenhuma foi tão bela. Era tudo e nada. Concreto e algodão doce.

Naquele instante, ele, com suas sinceras descrenças, transcendia. Tinha um encontro com o criador e se tornava deus entre aqueles braços e coxas.

Perdido na imensidão, sentiu uma lâmina fina penetrando, cirurgicamente, no lado esquerdo do peito e um líquido quente escorrendo por seu corpo. Mal sabia que nele a anatomia também ficara louca, era todo coração. A vida esvaindo-se. Ela já não suportava mais a guerra amorosa em que viviam. Entre gozos e desejos, decidira livrar-se daquele amor, no momento mais belo de suas vidas. Suas lágrimas misturavam-se ao sangue do amado.

De manhã, ele acordou, a cama toda desarrumada, mas não havia nenhum sinal de sangue ou morte. Ela desapareceu. Onde ele estava? Estava morto, vagando no limbo; ou foi mais um pesadelo? Tudo era um sonho interminável? Ele já nem sabia mais discernir o que era sonho ou realidade. A vida? Aquela mulher indecifrável? Finalmente ela o deixara louco? Nem sabia se estava vivo.

(1) Este conto, publicado em livro, neste outubro, pelo Sesc e editora Valer, na antologia “Acordes da tarde”, foi premiado com o terceiro lugar no concurso de contos do Sesc, com o tema “O universo feminino”. É muito bom dar a cara a tapa, passar pelo crivo, pra saber se a sua escrita tem algum valor literário, principalmente se avaliado por membros da Academia Amazonense de Letras. O escritor é um dos poucos artistas que raramente tem o retorno sobre o seu trabalho e fica sem saber se o leitor gostou ou não do seu trabalho, se é bom ou não. Agora, compartilho esta minha ficção bissexta, cheio alegria e honra.

dori carvalho
Enviado por dori carvalho em 01/05/2010
Reeditado em 14/05/2010
Código do texto: T2231074
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