A CASA DE DEUS

A CASA DE DEUS

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém”.

Corro os olhos pela igreja lotada: bancos de madeira escura e velha, janelas verticais, ventiladores que não funcionam. Vitrais coloridos enfeitam e alegram as imaculadas paredes, culminam no altar – um trono de mármore sob nuvens azuis, simples, onde os piedosos olhos de São Francisco ardem ao tocar os meus.

Hoje estou mais triste do que costumo estar, talvez pela proximidade do natal ou aquele mesmo sentimento de angústia que me invade ao entrar no templo. “Vós, sois pecadores e mundanos... mas de nada adiantará se esconderem qual ratos, a gozar os prazeres da carne, nada escapa, nada dribla os olhos de Deus. Ele te vê, não fuja, Ele te vê...” Algo que eu trouxe do colégio dos padres e, infelizmente, não pude esquecer.

- Sentado nas últimas filas doutor? Já o avisei que é uma honra para esta modesta casa a presença de uma figura tão ilustre. Ah, sim, como sou esquecido, estávamos pensando numa reforma para a casa paroquial, mas... o senhor sabe... Oh! Quanta generosidade, o senhor é um homem santo, santo, santo. A terra seria um céu se existissem mais almas caridosas como a sua...

Saio pior do que quando entrei. O peso da sentença: culpado. Estou com 45 anos, volto o tempo para os corredores altos e estreitos, as escadarias de madeira, o alojamento dos padres e o nosso. Éramos 240 divididos pela idade, eu tinha 15 e era seminarista. Nós tínhamos aulas pela manhã e banca de estudo à tarde. Minha primeira culpa foi colar os textos em latim, depois as continuas e demoradas visitas ao banheiro. No espelhinho eu me olhava, olhava sem entender o porquê de todas aquelas coisas estranhas em mim. Eu sabia que Ele me via, mas nessas horas fingia não saber. Oscarlino era o mais experiente da turma, gabava-se de não ser mais virgem de mulher. Eu me mantinha afastado, tinha um medo atroz de me tornar impuro, de pecar.

Filho único, orgulho da família, centro das atenções.Minha mãe era pálida e fraquinha, depois de perder dois, fez promessa a São Francisco de Assis para conseguir ter um filho. Ele seria entregue a Deus – eu deveria ser padre, mas não tive vocação.

Chego em casa e vou para o ritual do banho, tento com cheiros e sabão limpar por fora o que corrói por dentro. Laura dorme tranqüila e quieta; quase bonita, conserva o viço e o brilho da juventude nos cabelos castanhos, longos e sedosos e na pele branca que se perde nos lençóis. Sofro também, ou até mais por ela, sem filhos, sozinha. Lembro do nosso primeiro encontro, o anúncio no jornal e a sua humildade me pedindo o emprego, como meu pai me cobrava uma esposa, em seis meses estávamos casados.

- Você sabe que sou rico... por isso falam muito... o povo inventa histórias, eu já fui quase padre, mas...

Foi no dia anterior à prova de latim, eu perambulava pelo jardim com o livro na mão quando cheguei perto da despensa; era atrás da cozinha, um pouco afastada ao lado do mangueiral. Fui entrando para sentir o cheiro doce das ameixas e uvas secas que ficavam em caixas de madeira, quando vi a cena: os corpos nus, úmidos e suados, arfando e gemendo sobre os sacos de trigo. Corri sem ser visto e me escondi. À noite sonhei que estava sobre o trigo sentindo uma sensação maravilhosa... Quando acordei, o pijama estava todo molhado. Passei um mês me penitenciando pelos pensamentos e sonho pecaminosos que me afligiam; sem resposta passei a freqüentar a despensa também.

Saí do seminário nas vésperas da ordenação. Não disse nada a ninguém, caminhei feliz de volta pra casa. Meu pai ficou me olhando sem entender, minha mãe deixou seus sonhos escoarem, face abaixo, num choro calado. Passei a dirigir a fábrica, dividia meu tempo entre o trabalho e as paixões fulminantes – meu dinheiro em troca de “amor”. A cada caso acabado, a angústia de novo; um desejo de mudar, de ser outra pessoa, de não ter fraquezas, de esquecer as verdades, de ser como meu pai.

A decepção era comigo mesmo, não com aqueles que eu dizia amar. Os rostos diferentes, as situações iguais. Olhares, sorrisos, uma bebida, conversa amena sobre tantas afinidades. A primeira vez foi difícil, eu não quis aceitar o desejo que me invadia quando um moreno passava perto de mim. Concentrava nos detalhes: a barba feita, o maxilar saliente, cabelo curto, camisa de botão. A juventude aliada à pobreza, binômio ideal como a paixão e o nojo que lutam dentro de mim.

A tristeza é saber que o fogo sempre apaga, cada novo nome é mais um conhecido, acabou-se a novidade, resta o enfado, o cansaço da vida. Eu me sinto medíocre e infeliz, incapaz de encontrar um sentido para minha existência. Talvez eu tenha que encarar minhas diferenças, sutilezas e gostos; mas isso não é tudo. Assim eu seria um excêntrico ou um gastador, mas sou um cidadão comum, bem atuante na comunidade, que não se interessa por política partidária; tudo bem feito à sociedade. Uso máscaras e estas me assustam, não sei quem sou, todo o meu desejo é que o personagem seja real e o meu ser, possa ser normal. Esse desejo é passageiro, a máscara não me faz bem, só faz mal como tudo que faço e penso. Resta o aperto no peito, uma opressão quase patológica que desaparece apenas naquele exato momento do êxtase sexual.

A fumaça desaparece no ar, nada resta do fogo. Minhas lembranças me traem, real e imaginário se misturam e eu não consigo distinguir o que está acontecendo. Serei humano ou animal? Irei para o céu como homem ou mulher? Minha cabeça dói, meus olhos abertos vêem apenas sombras, a água escorre e eu me sinto sorrindo.

Segunda-feira, o padre Augusto, da paróquia de São Francisco, acorda feliz e vai ler o jornal: “O empresário... suicida-se com um tiro no coração e deixa seus bens... a família enlutada convida para o funeral...”.

CrisLima
Enviado por CrisLima em 23/08/2006
Código do texto: T223229