SUBTERRÂNEOS

SUBTERRÂNEOS

Vejo-os abraçados sob a luz do abajur. Tão comuns iguais a todos os casais de sexos opostos. Não lhes identifico a forma, na pouca claridade parecem um. Envoltos numa aura de desejo, onde os cheiros úmidos exalam, enchendo e impregnando também de desejo a minha visão. As mãos procuram sob a roupa o contorno excitante, que na imaginação se avoluma e toma as formas da revista folheada com demora.

O ângulo não está bom. A noite incita os amores passageiros. Nada no céu encoberto de nuvens densas, teto de fumaça e mercúrio. O firmamento modorra esquecido do tempo, um avião passa nos perturbando. Acima, tristeza e solidão, abaixo também. A minha noite é apenas mais uma, numa vida comedida e tranqüila. Todos os sonhos, ideais, quereres, perdeu-se na adolescência apressada. Tudo em mim foi, e é, muito efêmero e rápido – a infância me aparece como um retrato velho, não daqueles muito vistos, mas dos tirados ao acaso, onde as cores somem confundidas com o mofo do esquecimento. Guardada não, jogada num lugar da minha lembrança, ocupando espaço.

A boca vermelha escorrega na barba azulada colorindo as faces pardas que podem ser brancas, negras, morenas, mulatas ou simplesmente o amarelo indescritível da subnutrição. Eles brilham refletindo a luz vagarosa no suor. Contorcendo-se em afagos rudes; são sob medida um para o outro. Os olhos crescem, fogem das órbitas e se fecham para sonhar num ritmo cortado pela respiração ofegante.O hálito quente cheira a rum e cebola, mas o que exala dos corpos é a preparação para o amor. Minhas narinas não lembram do cheiro molhado de uma entrega...

No bloco de lares o vento não entra. Proximidade vexatória de um apartamento para outro, parecemos todos uma mesma família ou mais propriamente, um cortiço. Fecho a janela, ligo o ventilador e o ar empoeirado me abafa. Sento, pego um jornal e tento ler; mudo de posição e ligo a televisão: repeteco de jogo da segunda divisão. Não gosto de futebol, talvez seja trauma de infância – minha bola, as camisas e eu como capitão. Hoje é sábado, dia de folga, de sair para beber, dormir e acordar tarde, de aproveitar para ser feliz. Feliz? Sempre que marquei esse encontro levei bolo.

Volto à janela e vejo desbotada a minha paisagem: uma abertura pequena enfeitada com calcinhas estendidas ao acaso. Deve ser o banheiro, nele todo mundo é igual: entrar, fechar a porta e a liberdade conseguida é ilimitada! Pela manhã olheiras, mau hálito, cara inchada e a sensação de ser rei: sentar no trono e descarregar boa parte das misérias humanas, sentir alivio. É até instrutivo ler o jornal enquanto o milagre metabólico resolve acontecer. Na “casinha” nos livramos da timidez e dos preconceitos, ficamos nus. Pode ser emocionante ver nossas sujeiras indo embora pelo ralo, como a chuva lavando a poeira.

Neste momento um silêncio inquietante pesa sobre a cidade, silêncio de feriado, de funeral, de solidão. Toda a vida parada numa anestesia planetária; calmaria sufocante. Não foi o mundo que perdeu seu rumo, foi minha existência que se encontrou no vazio, nos subterrâneos de quem só olha para o chão. Desnecessário chorar, nada sei da rota, posso estar sonhando e amanhã será domingo.

Acordo com o clic seco de um abajur que se apagou.

CrisLima
Enviado por CrisLima em 23/08/2006
Código do texto: T223231