MALDADE

Naquela manhã, ela sente pela primeira vez o sabor de descobrir-se desconhecida. Sabor pesado, sem gosto, sabor de realidade, humano. Ela não se sabia. Toda a sua consciência lúcida de mulher – a qual todos chamavam Maria Clara – evaporara. Em um átimo, tinha nascido num mundo que sempre existira nela e ela, cometa em seu universo paralelo, entrou violenta na atmosfera desse insólito mundo. Enfim, perdeu-se em si mesma.

Tem um olhar perdido no horizonte. Um olhar de quem procura uma resposta para os acontecimentos recentes; incrédulo, questionador, afável, de mulher, procurando nas alamedas infindas do jardim outrora semeado por certezas, longe, perto, a resposta incerta. Sabor pesado. Confiante. Esperançoso.

É o olhar de quem sofria por se descobrir; de quem suportava a impaciência do coração, o arfar de suspiros surpresos. Alguém que tinha nos olhos o sofrimento por ver-se obra sem autor, personagem anônima, fantasma da existência. Alguém que esperava a visita do seu eu verdadeiro. De alguém para o qual se doaria inteiramente, destarte o medo; alguém que era ela mesma e que a fascinaria. O olhar perdido na imensidão é o de Maria Clara.

Naquela manhã, sentada à mesa de uma lanchonete, ela espera por seu pedido, cheia de si. Batuca com os dedos na mesa acompanhando o ritmo da música ambiente. Marisa Monte. Observa as pessoas, gosta de analisá-las. Seu passatempo é inventar as vozes dos pensamentos delas. Ri de sua imaginação e criatividade. Ri de si mesma, ora. Ela está cheia de si e isso a faz feliz. Olha o relógio sem preocupação. Observa a parede à sua direita. Um quadro pequeno lembra-lhe que, apesar de seu bom humor matinal, ainda está faminta. Faminta. Seu estômago arde em resposta. Sem gosto. Reduz seus olhos a uma pequena linha, inclina-se em direção ao quadro e divisa uma aranha pequena logo abaixo dele. Sorri da descoberta. O novo fascina e amedronta. A aranha olha, taciturna, uma mosca. A mosca alisa suas patas, pensa na vida medíocre de mosca. A aranha olha a mosca em sua vida medíocre e dali a instantes retiraria da mosca esse julgo do viver. Viver por viver. Viver por instinto, apenas. Viver insetamente. Clara chega a tocar na parede para impedir o fato óbvio, mas subjuga seu impulso. Decide esperar, contemplar a cena. Moscas são mortas por aranhas todos os dias e não todos os dias o homem percebe que não é solitário no mundo. Umedece os lábios com a língua hipnotizada, sedenta, ansiosa. O novo fascina. A aranha num salto imperceptível ataca a mosca. Clara prende a respiração. A mosca perde a respiração. Debate-se, tenta desvencilhar-se inutilmente. Grita em desespero, se é que as moscas gritam. Clara, em transe. Sua curiosidade desbravadora e seu exercício de sondar em imaginação as mentes alheias. É isso: um assalto, um ataque. Clara era uma aranha. Ela podia sentir toda a fúria predadora do aracnídeo percorrer a mosca desfalecida tirando-lhe todo sopro vital da natureza ainda resistindo. Empatia?

Clara transpira. Tudo em volta perde sua ligação, sua existência. Os sons caminham para longe, o mundo desaparece em dissolução, o ar estagna, existe somente o não, o não da aranha ao pedido da mosca. Apenas existe Clara, a aranha e a mosca que não mais existe. É devorada com requintes de maldade, cruel como a fome, de natureza que também poderia ser humana... O inseto se alimenta e Clara deglute o horror líquido na saliva enchendo a sua boca e naufragando os seus sentidos. Sabor humano, cru e a fome... Ah, a sua fome que outrora lhe azedava o estômago, assim como a mosca, não mais existia.

Uma garota, educadamente, acorda Clara de seu devaneio. Num instante, o mundo novamente existe com seus sons, luzes, humanos, aqui está o seu pedido, senhora. Sorri gentil e lhe entrega o sanduíche e o suco. Vermelho. Clara agradece com um aceno de cabeça. Olha o sanduíche, volta-se para a aranha e ela não está mais ali. O desejo saciado estimula o sono. Seus olhos ainda procuram-na esperançosos. Depois de um minuto, desiste.

O sanduíche aguarda paciente. O refresco, imóvel, espera. Vermelho. Clara não sente mais fome. Repudia a idéia de comer. Não quer. Tem no paladar sabor diferente, misterioso. Enjoativo. Ela sente, ali, pela primeira vez o sabor de descobrir-se desconhecida.

Ela, realmente, desconhece a Clara, agora despertada. Simples e de maneira inesperada. Não por ter perdido a fome, mas por ter mastigado, ingerido, ruminado o mal. Em seus lábios ainda há os resquícios do êxtase de contemplar o desespero da mosca. Humanos. Parasitas. Pensamentos humanos. Passatempo. Vermelho. Fúria. Definitivamente, diante da nova Clara, a antiga recolhe na garganta um grito de socorro em meio à verdade: a impalpável maldade que move naturalmente a natureza. A atmosfera qual do éter, o mal, agora invocados pela profundeza animalesca despertada de Clara fazem-na tremer ante ela mesma. Ela sente o gosto da realidade: o mal, em dose pequena, a alimentara.

Durante toda a sua vida, normal, ouviu lições da mãe ao ouvido, afagos quase raros do pai, escola boa, diversão, etiqueta, educação: bom dia, senhora Fernanda. Distante de toda mazela do mundo, existia o mundo opaco, inodoro e sem canção de Clara. O amor de mãos dadas: adoro você, Gustavo; o vestido comportado e mesmo a descoberta do novo mundo distante dos pais não se abriu num leque de verdades que compõem a melancólica sinfonia da vida com agora uma ingênua aranha o fez. O véu se rasgou no deleite do rasgo da alma. A descoberta de nós mesmos se dá no choque: o espelho que nada e nunca mente. Quem era essa Clara? Quem era ela para assaltar uma vida tão normal? Usurpar, desmistificar, escancarar. Clara não aceita.

Com as mãos suadas, tira um pequeno pedaço do sanduíche e força-se a comê-lo. Estava faminta, não? Põe na boca e mastiga. Há concreto em sua garganta. Não. Não e não. Ela comeria tudo, estava faminta, sim. O bolo alimentar cada vez mais fica pegajoso. Perde o gosto, não desce. Faz um esforço, contrai os músculos, força-se, uma lágrima rola em sua face. Percebe que esse ato traz-lhe sofrimento. No momento exato em que a idéia de sofrimento fica clara, ela engole, facilmente. Vermelho. Tem gosto de sanduíche quando se tem muita fome. Sente vontade de comer mais um pedaço. Quer sentir o gosto do esforço de comer, quer degustar os músculos contraídos, saborear a lágrima, o bolo banhado a saliva e maldade e vermelho e fúria e Clara, a Clara viva e pulsante.

Paga a conta, sai sem olhar para trás. Toma um táxi, pega o elevador, deita-se na cama, sonha. Acorda mais tarde, ainda está sem fome. Tenta entreter-se com o noticiário na televisão. Não. Internet, solitária noturna pergunta para homem vinte e cinco procura: oi, quer bater um papo e espantar o sono? Meia hora depois, esteira. A pergunta martela em sua mente e ela sente-se em busca da resposta. Esteira. Aumenta a velocidade. Chegaria, assim, mais rápida à resposta. Não. Cansa-se. Exausta, toma uma ducha.

O telefone toca, alô, engano.

Segue para a sacada. Um olhar perdido no horizonte, questionador.

Senta-se, pega um bloco de anotações e escreve. Por quê? Por quê? Por quê? Não sei, porra, vou saber, mas como? Fecha os olhos, lembra-se da lanchonete. A aranha, ela, a mosca, os outros, o ataque, a morte, o alimento, a normalidade da cadeia alimentar, a anormalidade das relações humanas. Sou o que sou, ponto, rabisca no papel. E depois escreve números de uma a três. Primeiro, matar uma formiga. Segundo, não sei bem o quê. Terceiro, machucar profundamente alguém. Pronto. É o teste. É a resposta. É ela. Clara, vermelho.

Não podia dormir sem tentar pelo menos a primeira. Na cozinha, seu olhar, aquele fiozinho de olho examinador, busca com ânsia, a mesma ânsia do recém-nascido em dar o primeiro suspiro ao nascer e berrar com a força primária dos pulmões. A inocente formiga aparece solitária depois de alguns minutos de procura. Ri com desdém ao vê-la. Clara suspira... Acompanha a formiga em sua trajetória. Ela traz um farelo de algo. Clara lembra-se de quando sua mãe lhe contava que as formigas são exemplos de trabalho e dedicação. Nunca se importou com formigas, nunca matou uma sequer, voluntariamente. Estava diante de uma oportunidade. Era o primeiro passo para sua resposta, positiva ou não. A força maior que pulsava dentro dela iria agir livremente. Ela estava perdida dentro dela mesma.

A formiga pára. Sente que a morte está próxima. Pressente a mudança no ar. Vê a sombra cada vez maior sobre ela. As antenas petrificam num instante macabro e de espera. Uma espécie de mão gelada envolve a coluna vertebral de Clara. Quanto vale uma formiga? Quanto vale um ser? Existem milhares de milhões delas e existem milhares de pessoas de humanos que têm a essas uma resposta simplista e desdenhosa. Clara enfrenta a si mesma e a formiga jaz despedaçada debaixo do seu dedo impiedoso. Esmaga e faz questão de arrastar contra a parede deixando um rastro negro, um rasgo da alma. A formiga é a tinta negra na parede branca, a mácula da aniquilação, à tendência ao mal e à maldade.

Clara, tardiamente, chora a experiência da morte da formiga. Piegas. Não a morte simples, corriqueira, mas a pungente, vertiginosa, impregnada de energia, taça de sangue e embriaguez. Aquela que nasce do impulso vivificante de êxtase e gozo. Não a que leva ao inferno ou ao céu ou a qualquer outra destinação, não. A que apenas completa, inicia. Clara estava germinada qual semente que rebenta a partir da morte. E ri depois da última lágrima. O novo amedronta. Ela começa a se descobrir, o novo não era mais tão novo assim. O novo fascina. Pega a caderneta, assinala um xis no item um. Depois corrige: sou o que sou, interrogação.

Naquela noite, ela dorme como jamais antes.

Acorda com a campainha do telefone, insistente. Sonolenta, tateia a mesinha de cabeceira. Hum... O quê? Gustavo? A conversa ao telefone dura uns dois minutos. Clara diz apenas mais quatro palavras. Levanta-se com dificuldade e em meia hora está na praça em frente ao seu prédio. Lê o jornal exposto na banca sem muito interesse. Sim, só os nomes mudavam, os fatos eram os mesmos. Apesar de Clara ter aparentemente mudado, o mundo à sua volta não. Ela sente-se uma extraterrena, um anjo decaído, uma abduzida que retornou a casa. Ela não queria mais saber do mundo enquanto não se resolvesse. Que Clara era ela, afinal? Um tipo de maldade encarnada? Não, aquilo eram apenas pensamentos tolos de mente recém-acordada. Palavras vãs, putz! Mamãe, a sandrinha me xingou de chulé, uma criança dedura a irmã à mãe e Clara ri. Como as crianças são imbecis! Na verdade, tudo à sua vota naquele momento era imbecil. O mundo todo era insuportavelmente imbecil. Um tédio elevado à milésima potência. Saco! E esses pirralhos? Clara observa mais atentamente as mães com seus filhos no parque. Raras, as mães. Na maioria eram babás. Psiu, Clara chama o menino. A sandrinha disse que você era chulé? Belisca ela bem forte no bumbum, vai lá, vai. E o menino vai, contente e sádico. Beliscão, choro, tapa, castigo, fim de passeio. Clara balança a cabeça, vitoriosa. Chega a casa, o sorvete está bom, marca outro xis na caderneta, item dois. Deturpar, independente da proporção, a inocência, plantar a semente, escreve.

Espelho? Objeto mais fútil! Refletir vazios humanos cobertos de viva pele. Aciona a secretária eletrônica, mensagem do Gustavo, Clara, será que poderíamos conversar um pouco sobre nós? As coisas não ficaram bem explicadas na última vez, beijos.

O estômago reflete o mundo de Clara, e ela toma uma pílula contra a acidez. Escolhe um livro na estante e lê durante toda a tarde. À noite, decide encontrar-se com Gustavo.

Ele. Ela. Eles. Ele, um quadro inacabado. Ela, as pinceladas não tão suaves. Eles, uma pintura abstrata, sem significado, solta, livre, incógnita. Conversam sobre eles mesmos, trivialidades e sobre o amor, sem na verdade, conhecê-lo. Quem o conhece? Clara, à beira da significação, descobre sentir-se bem ao lado de Gustavo. Ele parece entendê-la quando ela mesma não se entende. Ele deixa-lhe escapar uma lágrima que Clara instintivamente recolhe cuidadosa. Aquele gesto mínimo a acorda de um estágio do incompreensível. Enquanto ela se enveredava pelos labirintos da descoberta de um novo eu, antagônico, mas sedutor, mais forte, poderoso, confiante, realista, porém sem identidade, um fantasma da existência, um pseudo-eu, um eu que num instante não existe e no outro já domina o mundo, ele mostrava-se, ele revelava o Gustavo, o humano sem coisificação, o homem que vive a plenitude de não saber quem realmente é de verdade e que busca sua verdade no desconhecido do outro eu, no desconhecer de Clara.

Procurando nas alamedas infindas do jardim outrora semeado de certezas, longe, perto, a resposta incerta, Clara convida Gustavo a ir ao seu apartamento, depois de semanas que isso não ocorria.

Aceita uma água com gás ou..., pergunta Clara a ele ao fechar a porta atrás de si. Água, normal, responde, acomodando-se no sofá enquanto ela se dirige à cozinha. Clara vê quatro formigas em cima da mesa. Vai ao armário, pega dois copos. O primeiro, enche-o com água. Com o segundo, aprisiona as quatro formigas, formando uma redoma.

Gustavo toma o ultimo gole e deposita o copo na mesa de centro. Clara, sem esperar, atira-se sobre ele com sofreguidão. Sorve não somente os lábios de Gustavo e, sim, quase todo o fôlego, a alma, a bondade, ela precisa equilibrar-se. Mesmo entregue ao beijo sôfrego, sua mente está presa à racionalização. Premedita cada ato seguinte. Ouve cada ruído do apartamento, até o ruído de seu silêncio gritante, o silêncio que não mais se continha. Num impulso, ela afasta com ambas as mãos o corpo de Gustavo. Respirando, descompassadamente, preciso fazer algo, diz.

Na cozinha, olha para as formigas aprisionadas. Elas procuram uma saída. Clara acende um fósforo e deixa queimar até extinguir a chama. Logo, um filete de fumaça serpenteia em direção ao céu. Clara deposita o palito dentro do copo que aprisiona as formigas. A fumaça enche todo o copo. Clara sorri satisfeita com o fim delas, asfixiadas. Maldade.

De volta, Clara joga-se nos braços de Gustavo, prendendo o choro. Com voz embargada, ela deixa escapar, eu te amo, Gustavo. A porta do desconhecido estava aberta, o inferno estava aberto, o Éden estava igualmente aberto, a humanidade estava aberta. Não existiam mais labirintos, só passagens. Vem, me ama, Clara puxa Gustavo.

Ele toma Clara em suas mãos, contempla-a em sua totalidade, beija seu ventre com doçura. Clara chora e suas lágrimas banham-na de desejo.

Ela sente-se plena em seu vazio. O amor esvazia completamente. A totalidade do amor, descobre, é o vazio. Ela flutua, sente-se livre, sem rumo, desconhecida, voar, longínquo. Clara quer, não. Não. Não e não. Ela quer o peso sobre o mundo, a incompletude, não esse vazio.

Clara desvencilha-se do rapaz, dá-lhe um tapa na cara, pede que ele se vista e vá embora. Surpreso, contestando sem nada compreender, Gustavo obedece. Lança sobre ela juras de amor, mas Clara não se rende.

Sabe que está apaixonada. Gustavo lhe mostrou a verdadeira Clara. Talvez. Mas ela quer a escuridão lúcida, não a verdade, não a normalidade, tudo isso dá a sensação de dever cumprido e vida acabada enquanto ainda havia vida. Ela quer a busca constante, a renovação, as descobertas. Ela quer viver, saber que está viva e sentir isso... A porta fecha-se levando Gustavo e levando parte de sua vida, Clara está incompleta agora. Isso dói. Mas, a dor a faz consciente de sua existência, o sofrimento a alerta de que sangue ainda corre nas veias e ela precisa viver.

Clara sabia a resposta, agora. Abre a caderneta e anota o ultimo xis no item três. Completo. Machucar profundamente alguém. Não o Gustavo. Ela própria. Nenhuma maldade é maior que magoar a si mesmo, conscientemente. E ela sorri da dor que sentia e apertava o peito, cada vez mais a paixão crescia e cada vez mais doía, cada vez mais ela estava viva, sem entender, mas completa em sua dor e em sua certeza de vida. Rejeitaria Gustavo até o ultimo instante e seria completa. A maldade perfeita seria sua conduta. Ai, grita, não contendo o aperto, o nó na garganta, o soluço. Sim, a resposta, ela é má.

A maldade é plena, cheia, pesada, tem sabor humano, tem vida.

Respira fundo, esbofeteia o próprio rosto inúmeras vezes e sai.

Na praça, recosta-se em um poste. Não lhe conheço de algum lugar, pergunta um rapaz aproximando-se dela. Clara sente um frio na espinha, um gosto azedo na boca, é a maldade. Acho que sim, responde. Clara beija suavemente o rapaz. Suga seus lábios. Depois, sutilmente, cospe todo o azedo da maldade no paladar do rapaz.

Ele se afasta e fica olhando Clara. Enquanto olha assustado, degusta a saliva recebida como quem prova um prato desconhecido. Sua expressão assustada torna-se um riso safado. Gostei disso, diz.