O CACHORRO

Tupã era de uma mistura intermediária entre alguma raça e o vira-lata, era daquele tipo que todo mundo gosta: manso, solícito, come tudo e não suja nada. Tinha o pêlo preto lustroso, gordo e as pernas curtas, o rabo era cumprido, meio desproporcional ao resto do corpo, olhar baixo e um jeito de quem sempre estava esperando algo. Vivia pela vizinhança, gostava de dormir embaixo do sapotizeiro - aliás, este foi o único pé de sapoti que vi na vida, numa sombra gostosa onde Vô consertava o caminhão, tinha um banquinho e um cepo sujo de óleo, além de porcas, parafusos e outras peças perdidas pelo chão.

O rio Ipojuca corria um pouco abaixo do final da rua – uma maneira de dizer, a fileira de doze casas sem meio fio não podia ser considerada um logradouro, fazia uma curva e passava pelo quintal das casas, na parte rasa um caminho de pedras chamado ponte e nas margens a vegetação rasteira típica do agreste.

Era um descampado só: poeira e sol no reino de Tupã. Acordava abanando o rabo e acompanhava um a um até o pé da ladeira que dava pro Alto da Banana onde se tomava o ônibus para ir trabalhar. Comida, todo mundo dava; água, ele se arranjava, brincava com os meninos e ficava perto do caminhão esperando Vô João chegar, passar a mão pela orelha, dar uma tapinha nos lombos e abrir a porta pra entrar na boleia. Passavam o dia juntos, carregando merenda escolar do depósito para os sítios e povoados vizinhos. Almoçavam pelas escolas: angu, feijão com charque, sopa ou qualquer coisa que tivesse. Sempre tinha um bom bocado para o ajudante, além do cochilo antes de recomeçar o trabalho.

Lá pelas quatro voltavam pra casa, Vô ia tomar banho e Tupã começava a ronda: casa por casa, pelos quintais, pelo campinho e na beira do rio. Cabeça baixa e rabo em pé, corria ligeiro, fuçava por todo canto, inteirando-se dos acontecimentos, escutando conversas e finalmente, parando na calçada para esperar Vô vir descansar o café na cadeira de balanço.

Ninguém sabia de onde ele veio, quantos anos tinha ou quem pusera o nome, vivia por lá. Quando perguntavam de quem era, Vô ficava em silêncio e fazia um gesto vago. Parecia que ele havia sido formado com a rua. As casinhas escoradas umas nas outras, a calçada, a falta de muros, duas janelas e uma porta. A nossa casa era a diferente: tinha uma varanda grande, o tanque dos gansos, e a garagem onde pai trabalhava. Tinha uma roseira na frente que nunca dera rosas.

Tupã tinha um olhar triste, mesmo quando estava perto de Vô, devia ser a idade, ninguém sabia definir a idade dele, parecia velho. Não que fosse preguiçoso, era disposto e acompanhava o Vô em todo lugar. Na igreja ficava dentro do caminhão esperando o culto acabar; ia pra feira, além do trabalho de segunda a sexta-feira. Andava muito, acompanhando Vô num acordo silencioso e contínuo.

Chegou julho e choveu demais, o rio deu uma enchente e foi aquela correria para tirar todo mundo e salvar as coisas. O caminhão esperava encher e corria, voltava enchia de novo e voltava até que a água chegou na calçada e juntou com a que vinha por trás e inundou tudo. Quem tinha família, buscou abrigo, quem não tinha ficou em cima do Alto olhando pra baixo e contando as perdas. O que a enchente não levou a chuva destruiu, no meio da confusão alguém lembrou de Tupã, começa a procurar e nada dele. Ninguém viu, mas foi tanta água...

Três dias depois, a água começou a baixar, lavar, limpar e tentar voltar a vida normal. Vô estava muito ocupado ajudando a trazer os troços de volta, consertando e salvando o que restou. Já era noite quando um vulto veio dos lados do rio: era tupã mancando de uma pata traseira e todo sujo de lama. Depois de lavado, remédio no ferimento e aquele carinho na orelha que Vô dava sempre, ele foi melhorando.

A enchente deixou muitas marcas: quem tinha alguma coisa ficou com pouco e quem tinha pouco ficou sem nada. O caminhão trabalhou muito e com desgaste de várias peças parou, ficou uns cinco dias sem trabalhar até que Vô trouxe um mecânico. Com o passar do tempo tudo foi se acomodando, menos Tupã que mesmo curado da pata, nunca mais foi o mesmo.

Vô foi quem mais sofreu com a água: o caminhão quebrando, muito trabalho em casa, não foi mais trabalhar. Disse que ia vender o caminhão e ficar só com a aposentadoria, estava cansado. Sem ter o que fazer ficava na cadeira de balanço no quintal pela manhã e à tarde na sombra dos sapotis, porque a calçada tinha sido arrastada pela enchente.

Tupã também se aposentou: deixou de fazer a ronda, de entrar em todas as casas e de acompanhar os trabalhadores. Tornou-se mais melancólico como os olhos e a cabeça baixa. Começou a tossir, passava todo o tempo deitado, olhos fechados e só o rabo se movimentava abanando as moscas.

Aquele carinho rude, de coçar as orelhas era o que unia Vô a Tupã, um compreendia o outro, naquele silêncio/isolamento que era a vida deles. Quando Vó morreu, ele continuou morando sozinho. Cozinhava e tomava conta da casa, não queria ninguém mexendo nas coisas dele.

Um dia Tupã não se levantou, já era meio dia quando Vô chamou e ele não atendeu, nem levantou o rabo ou virou a cabeça. Ele foi ver e encontrou-o doente, pegou nos braços e levou pra casa. Cuidou dele até com um zelo de pai, dava comida na boca, chá e xarope para tosse. Estava até disposto em levar ao veterinário, saía para comprar comida, ia à feira, levava para tomar sol e acredito que dormiam na mesma cama.

Pelas circunstâncias, ficaram morando juntos, os dois se entendiam bem, partilhavam a vida e a companhia um do outro. Viveram assim mais uns anos, até que uma dor levou Vô para o Hospital, ele lutou muito, mas não sobreviveu.

A casa restou abandonada, não tinha nada de valor; ficou com as portas abertas e os vizinhos pegaram o que ainda podia ser usado e o tempo se encarregou do resto.

Tupã se deitou na sombra do sapotizeiro, virou o focinho para o lado da rua, deixou os olhos abertos, mantinha um ar triste, talvez continue lá, esperando o velho amigo voltar.

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CrisLima
Enviado por CrisLima em 25/08/2006
Código do texto: T225124