E AGORA?

Lembro bem daquela tarde que conheci o Natal; era setembro, melhor, final de setembro, corria uma brisa e as árvores estavam florescendo. Calor havia, mas a proximidade do mar acalmava a temperatura do quase verão; céu sem nuvens, tons de azul claro, estava bonito.

Cheguei na sapataria – aquela de consertar, chamei da porta, bati palmas e nada. Verifiquei o número da casa, corri os olhos pela vizinhança, chequei o relógio: quase duas da tarde, hora da sesta – descanso do meio-dia levado a sério pelos italianos. Peguei meu embrulho e ia embora quando uma voz respondeu: “Espere, já vou”.

Magro, baixo, sem bigode ou barba; apenas os cabelos brancos denunciavam a idade. Voz agradável, olhar simples, a mão firme apertou a minha e me mandou entrar: “É, estava dando um cochilo; a porta fica aberta, não precisa bater, só entrar”.

Mostrei-lhe as peças de couro: duas maletas e um par de botas, coisa fina que minha filha comprou no sul, carecia de uma costura bem feita, indicaram o senhor, será que tem conserto? “Sempre tem, a morte é o único mal irremediável”. Deixei as peças e saí pensando naquela sentença: haveria remédio para a morte, seria mesmo um mal? Aquele pensamento filosófico não combinava com o lugar nem com a boca que o proferiu. A frase tem a aparência de lugar comum, escrita ou falada por qualquer um, mas a ênfase, a gravidade e a força na qual foi proferida, deu-me a sensação de revelação. Fazer barulho é fácil, basta que o ar passe pelas cordas vocais e estas vibrem, saí o som; gritos, sussurros, assobios são formas de comunicação. Falar é mais difícil, necessita a articulação dos sons de uma forma compreensível através das letras, já impressionar...

Voltei dias depois, cheguei cedo, sabe como velho é: cochila no jornal nacional, não vê nem uma parte da novela, vai para a cama perde o sono e as cinco da manhã está de pé. Mania de fazer tudo pela manhã, ficar livre o resto do dia, livre para que? Não sei, quando me vejo vou à padaria e tudo fechado. Disfarço, procuro o moleque do jornal e espero até as seis.

Ele estava trabalhando. Observei os pontos, chequei pelo lado de dentro, tudo perfeito. Paguei, agradeci e continuei sentado, imóvel, sem jeito de começar a conversa:

- Faz tempo que trabalha nisto?

- Faz.

- E a praia é movimentada?

- É

- Ah, como é o seu nome?

- Natalício.

- Nome interessante, o senhor nasceu no natal?

- Não.

- Então nasceu na capital do Rio Grande do Norte.

- Sou paraibano.

Fui levantando para ir embora, sem mais conversa atirei: “E sobre a morte, o senhor quer conversar?” Ele levantou a cabeça, encostou as costas na cadeira, respirou fundo e falou:

- Querer eu até queria, mas não posso falar do que não conheço.

Fiquei sem jeito com a resposta, dei uma risadinha e fui saindo. Já no portão ele gritou:

- Quando eu morrer volto aqui para lhe contar...

Não dei importância, toquei em frente, a mesma rotina sem novidade: acordar cedo e pensar. Vez em quando lembrando da conversa com o sapateiro, achei graça, contei pros colegas da praia até que tive coragem de assumir o desconforto daquela história. Resolvi desfazer o mal entendido e fui procurar o Seu Natal.

Na porta da casa uma faixa preta. A vizinha me informou do falecimento: “de um dia para outro, o coração, o senhor sabe como é...”.

Dei meia volta, sem saber para onde ir, as pernas bambas sem obedecer à vontade de correr, a cabeça doendo, martelando: e agora?

p.s. - continuo aguardando comentários.

CrisLima
Enviado por CrisLima em 25/08/2006
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