SOB O PANO DE RODA

A praça tinha sido muito fraca, três semanas só dera para a bóia. Para que esperar? Milagres não acontecem todo dia, principalmente para aqueles que contam apenas com a realidade. É ruim alterar a programação, sair às pressas, meio fugido, juntar tudo de qualquer jeito e partir. Sina dessa vida, primeiro é emoção, depois costume. Isso de deixar levar pelo que se apresenta sem pensar em fazer diferente. Quer por hábito ou acomodação, difícil de explicar. Nascer e viver, seguindo o que antes já fizeram sem questionamentos. Prazer? Como responder se tudo está intimamente misturado: vida, trabalho, sonhos, vocação, futuro. Sim, futuro é partir agora, antes que não tenha nem para a gasolina.

Em cada cidade o mesmo ritual: Tonho vai de moto na frente, escolhe o lugar, fala com as autoridades competentes (na maioria das vezes tão incompetentes), puxa água, energia, vê se tem escola por perto e começa a divulgação. Quando chegamos já tem uma certa estrutura - desmontar e montar; buscar um ponto de equilíbrio dentro do caos. Assim a medida de tempo do nosso calendário são as temporadas, aproximadamente dois meses em cada cidade, podendo aumentar. Sair assim apressado, com três semanas é correr o risco de alterar a rotina. É, rotina. Mesmo frágil é ela que nos mantêm.

A viagem seria de 250 quilômetros, da capital para o interior, por uma região de agreste: sol, poeira e mato rasteiro. Parar em cidade muito pequena não compensa, pouco dinheiro e com uma semana não tem mais público. Normalmente esta distância poderia ser alcançada em três horas ou menos, no nosso caso é diferente. Os veículos são velhos, alguns muito grandes, duros de manejar por estas colchas de buracos. Aliás, por segurança vamos em combóio, o que nos torna mais lentos. Cinco ou seis horas de viagem, sacolejando dentro dos carros.

Era dezembro, sol com toda carga do verão: nascia pelas cinco, já imponente rei da claridade, decidido a queimar tudo que tocar, um Midas talvez, com mãos de brasa. Assim é o sol na sua estação; o apogeu da coroação deste dia de dezembro: a partida.

No meio da viagem um trailer encosta, penso que é defeito. Vejo Pepe - um uruguaio falsificado no Paraguai que preserva o sotaque só para fazer bonito na apresentação – com os olhos vermelhos dizendo que a Ìndia está com muita dor. Pelas contas são quase oito meses, mas sem médico ou ultra-som é impossível acertar de quanto tempo é aquela pança. Entre gritos, penso no que fazer: falta muito para o nosso destino, fico com eles e procuramos uma maternidade, os outros seguem. Vou de um lado para outro, agilizando para sair daquele acostamento, ninguém quer seguir, vamos juntos para a cidade mais próxima. Não há escolha.

A cidade era menor do que eu esperava; hospital sem leitos, o medico mandou para casa. Sem condição de seguir, montamos acampamento e veio a noite. Ficar zanzando no meio dos carros e da bagunça. Aquele esqueleto de ferro no centro do campo, sem vida sem cor, parece um monstro, um caranguejo de patas para cima, inerte, assustador, sombrio e só. Esta é a hora da solidão: cordas de roupa ao vento e algum vira-lata dão sinais de vida.

Amanhece, o panelão avisa que é hora de começar o dia. Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor! Veste-se o lugar das cores da alegria: azul, branco e vermelho, é a nossa bandeira. Letreiro luminoso, pipoca, algodão doce, amendoim torrado salgado e caramelizado, balões, lembranças. O viver se agita e fervilha na profusão de tons e brilhos. Pinto o rosto e espero a minha deixa.

Seis horas, tudo vazio. Sete horas, ninguém na bilheteria. Será que o prefeito morreu? Último capítulo da novela dos oito? Passa um menino, o que houve? Ah, véspera de natal... Famílias reunidas, missa do galo meia-noite (será hoje ou amanhã), confraternização, neve e pinheirinhos. Estamos prontos no picadeiro, as cadeiras vazias nos esperam, o vento na lona nos aplaude.

Gritos de socorro, a Índia está sofrendo, traga para cá, vai nascer.

Não deu para ver se há estrelas, nem uma que brilhe mais que as outras; presentes eu sei que não chegaram, tampouco reis magos. Cercado por palhaços, mágicos, cospe-fogo, dançarinas e malabaristas; visto de perto por cavalos, micos e macaco; nasceu um menino. Semelhanças com aquele outro? Muitas, a pobreza, as desigualdades sociais, o preconceito e a exclusão. Diferenças? Algumas, este se chama Pepito, o outro Jesus.

CrisLima
Enviado por CrisLima em 27/08/2006
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