DO CAMPANÁRIO AO CEMITÉRIO

O jogo de sinuca em mesa oficial, sempre foi considerado um jogo de xadrez com bolas tal o rigor das regras e a disciplina que exige do jogador além é claro de muito treino. Aos 18 anos eu era um jogador razoável e passava a maior parte do tempo quando não estava estudando, treinando. A associação dos ferroviários possuía uma mesa considerada uma das melhores do mundo. A base era em lousa portuguesa e isso fazia com que praticamente não houvesse qualquer desvio no trajeto da bola. Alguns abastados fazendeiros da região costumavam trazer adversários de outras cidades para me enfrentar e rolavam altas apostas. Claro que isso me rendia gordas gorjetas além da comissão acertada. Eu não era profissional e simplesmente gostava do jogo e costumava sempre repetir antes de aceitar o desafio, que iria fazer o meu jogo e pouco me importava se eles iriam ganhar ou perder.

Naquele domingo, 10 h da manhã, eu estava decidindo a melhor de 3 contra um castelhano trazido pelos adversários dos meus apostadores. Eu costumava usar a primeira partida para estudar o adversário. O gringo era do tipo matador que se atira em bolas altas tentando somar muitos pontos, mas ao mesmo tempo sujeito a erros e conseqüente perda dos mesmos. Obviamente eu enfrentava este tipo de jogador, atuando na defensiva. Perdi a primeira partida e na segunda mudei de tática e venci o gringo com boa margem. A partida final estava indefinida e restavam poucas tacadas. Então o gringo me colocou numa sinuca das boas. Eu teria que acertar a bola 5, mas a 6 estava na frente. Eu poderia recusar a sinuca devolvendo-a a ao adversário, mas isso poderia causar a minha derrota. Então eu estava concentrado e tinha em mente uma tacada muito difícil, mas que me permitiria vencer o jogo. Cantei um corte ao canto com uma tabela intermediária. Ficaram todos se entreolhando e baixou um clima de tensão que dava para ouvir a respiração das pessoas.

– Se você errar eu te mato! Era a voz de Martinha quase no meu ouvido.

– Martinha! É pra valer! Senta lá do outro lado ta? Ela obedeceu e fez o que eu queria. Uma referência para a tabela. Eu teria que fazer a bola branca tocar a lateral oposta da mesa com efeito e velocidade para voltar com força suficiente para fazer a bola cinco bater na tabela e rodopiar girando ao contrário. Isso a levaria direto a caçapa do canto oposto. Dei a tacada usando o nariz da Martinha como referência e a jogada foi um sucesso. A bola 5 rodopiou e bateu na borda da tabela aninhando-se mansamente na caçapa. Isso deixou a 7 na reta e depois eu só precisei fazer a 6 para encerrar a partida.

Fui erguido nos braços de meus apostadores que comemoravam e a cerveja rolava farta regada com um churrasco que prenunciava que o dia seria de festa. Naquela época com 700 cruzeiros no bolso, quase o tripulo do que eu ganhava, convidei Martinha para um jantar no melhor restaurante da cidade.

– Tudo bem, mas antes nós vamos à missa!

– Missa? Das 8?

– Claro! Na igreja de São Francisco!

Só então lembrei-me do campanário. Isto já estava na cabecinha dela há bastante tempo. Eram umas 18 h quando chegamos à igreja que no domingo mantinha-se com as portas abertas. Entramos cumprindo o cerimonial de praxe que exigia o sinal da cruz com água benta disponível logo a entrada. À direita uma porta entreaberta levava à escada de acesso à torre onde ficava o sino. Percebemos um padre indo para a casa paroquial anexa abraçado a uma garota de saia colegial o que não deixava dúvidas sobre o que tinham em mente. Conta-se que ao ser transferido foi encontrado com duas garotas locais. Uma significativa reunião íntima de despedida. Subimos com cuidado os velhos degraus que rangiam a cada passo. Elegemos o peitoril do lado oposto construído com paredes largas, herança de uma época farta em que as paredes tinham no mínimo 50 cm de espessura. A igreja ficava no alto e não havia vizinhança próxima de forma que nos acomodamos sobre o peitoril e demos inicio ao que mais gostávamos de fazer. Completamente embevecidos ao final fomos surpreendidos pelo ranger do carrilhão que indicava que o sino iria badalar anunciando a missa das 8 h. O sacristão pendurava-se ás cordas e o estrondo do sino deixou-nos aturdidos por um bom tempo. Descíamos vagarosamente a escada ainda com um forte zumbido nos ouvidos e deparamos com o padre ao pé da escada. Eu ainda abotoando a camisa e Martinha ajeitando os cabelos completamente desalinhados.

– O que vocês faziam lá em cima?

– Hora padre! O mesmo que o senhor! Isto é, namorávamos.

Martinha era assim. Não mandava dizer e antes que eu pudesse arranjar uma desculpa, ela já havia fulminado o padre com a resposta direta. O padre enrubesceu e falou meio sem jeito.

– Está bem! Está bem! O senhor abençoará a união de vocês. Espero vê-los na missa e gostaria de casá-los aqui nesta igreja. Concordamos humildemente com a sugestão do padre e fomos para o restaurante. Os perdedores da aposta estavam ali jantando com o gringo que eu abatera e certamente planejavam a revanche. O gringo aproximou-se e me apertou a mão comentando.

– Você foi arrojado! Eu não teria aceito aquela sinuca.

– Claro! Respondi. Era o que você esperava. Mas eu tive de arriscar ou você encerraria a partida. Faz parte do jogo não? Ao final da janta, haviam decidido que a revanche seria no domingo seguinte.

– E agora? Você acha que pode ganhar de novo? Perguntou Martinha com os olhinhos brilhando e eu já me preparando para a próxima loucura que viria.

– Quer apostar como eu mato o gringo em duas?

– Esta eu quero ver! Aceito a aposta. Se você ganhar nós vamos fazer amor no cemitério municipal.

– E se eu perder?

– Bem aí você me leva em Santo Amaro e vamos fazer amor no banco da praça a meia-noite.

– Puxa! Assim não vale! Não dá pra fazer uma aposta em que eu leve alguma vantagem se ganhar?

– E daí? Se você ganhar eu sou o seu prêmio. Se você perder eu sou o prêmio de consolação, quer mais?

Bem! Não havia como dissuadi-la mesmo porque ela teria inventado tudo mesmo que não houvesse uma aposta. Selecionei dois dos meus melhores adversários locais e passei a semana treinando. Entre as duas opções eu ficaria com o cemitério por ser um lugar completamente deserto à noite. Chegou finalmente o dia do jogo e o gringo estava nervoso. Para mim era uma vantagem, pois comecei a tocar flauta o que o deixava ainda mais nervoso. Venci a primeira partida e na segunda estávamos na dependência de duas bolas finais. O gringo teria que fazer a bola 6 que era a da vez, mas não resistiu e cantou a bola 7. Eu estava 2 pontos a sua frente e havia 13 pontos em disputa. Se o gringo acertasse a bola 7 poderia fazer 20 pontos numa tacada. Então ele errou. Ganhei 7 pontos. Fiz a bola 6 e isso encerrou a disputa. Eu havia ganho de 2 a 0.

Depois da inevitável festa com churrasco e sarau dançante o resto da tarde, chegamos ao cemitério cerca de 10 h da noite. Então percebemos dois vultos abraçando-se junto a um jazigo.

– Hei! Cochichou Martinha, temos companhia. Então eles andaram em nossa direção e para alívio geral eram o Olímpio e a Claudinha que haviam nos seguido sem que percebêssemos.

– O Olímpio trazia uma garrafa de vinho tinto, provavelmente da adega do pai.

– Como vocês nos seguiram? Perguntei.

– Hora viemos no mesmo ônibus, mas quando vocês estão namorando o mundo pode desabar que vocês não percebem. Comentou Claudinha.

– E como chegaram aqui primeiro? Perguntou Martinha.

– Porque vocês pararam pra beijar umas 5 vezes. Respondeu Claudinha.

Depois de uns goles de vinho e comentários sobre a partida etc. cada um foi procurar seu túmulo ou jazigo. Ao final de mais um ato profano de amor desta vez afrontando os sagrados preceitos religiosos, voltamos à nossa garrafa de vinho que ainda estaria pela metade. Para espanto principalmente do Olímpio a garrafa havia sumido.

– Droga nem aqui escapamos?

– Será que foi alma penada? Perguntou Olímpio fazendo o sinal da cruz.

– Cara, deve ter sido o zelador. Alma penada não leva a garrafa, só o vinho. – comentei.

– Será que ele espiou a gente? Perguntou Martinha.

– Bem, se ele viu, chamou a polícia. Acho melhor sair pelos fundos e ganhar os trilhos da ferrovia. Assim fizemos e ainda descendo o morro que levava aos trilhos ouvimos sirenes. Poderia ser coincidência ou será que não?

Lauro Winck
Enviado por Lauro Winck em 23/05/2010
Código do texto: T2274503
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