Hospital de bonecas

Primeiro foi Dorinha. Veio com vestidinho vermelho direto da loja pra Rosa, pelas mãos do Pai. Os cachinhos dourados, cheiro de nova. Mal pegou já deixou a bicha cair na máquina de lavar roupas da Mãe: “SAI DAÍ, MENINA!”. Pronto. Ficou rosa.

Mas Rosa crescia, e os interesses, esses mudavam, Dorinha de testemunha. Foi ficando de lado. Mesmo. Rosa, novamente, a deixou (coitada!) no sol, a borracha se expandindo no calor de Bangu. No cimento quente Dorinha corou pela primeira vez.

Depois foi Ricardo. Na laje, à noite, ele pegou na mão de Rosa, que desabrochou sob o luar daquele vale da zona oeste. A noite virou, virando cores. Da lua amarela, pro vermelho das bochechas de Rosa, pras artificialmente rosadas bochechas de Dorinha, que a tudo cuidava, uma carranca espantando os males - até o negrume total, eclipse parcial do coraçãozinho ingênuo de Rosa.

As nuances antes tão distintas, corretas, foram ficando turvas em equivalente medida de malícia adquirida e tempo corrido. A boneca de lado. Batom, maquiagem, roupa nova e perfume, que Rosa era flor que se cheirasse. Crescia no ritmo das primaveras que chegavam e partiam, assim como, da estação de trens, pertinho de casa, assistia a chegada e a partida de Ricardo. Todo santo dia.

O mesmo teto, a mesma vida.

Já de barrigão do terceiro menino, Rosa lembrou de Dorinha, já há muito jogada nos fundos do quintal, junto das garrafas, das memórias. Lembrou da Mãe, lembrou do Pai, do dia do presente, da felicidade inocente, essa que a gente perde cedo, cedo.

Lamentar não lamentou, que filho é o que tem de melhor nesse mundo, mas passando a mão nos cabelos da bonequinha viu novamente, direto do passado, o vestidinho vermelho passando pra rosa, de rosa pra amarelo, de amarelo pra roto, e não passando pra mais ninguém; afinal, seus meninos não brincam de boneca.

A natureza interrompida ou: a natureza interrompendo.

Achou justo dá-los agora – quem adivinharia, meu Deus? -, a boneca e o vestidinho, pra Dorinha, a negrinha filha da Sebastiana dali do lado.

Naquela tarde quente em Bangu, Rosa sentiu a bolsa estourar, mas no parto não sentiu dor.

Dorinha toda boba com a xará.

Douglas Evangelista
Enviado por Douglas Evangelista em 29/08/2006
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