Biriba

BIRIBA

Era década de mil novecentos e setenta. Na época um lar muito mais simples. Não havia varandas. As paredes ainda sem emboço. O banheiro e a cozinha eram minúsculos. Não havia água encanada. Abastecia-se dum poço de onze metros de fundura cujo líquido precioso ainda jorra. Naqueles dias considerava-se afortunado quem possuísse fonte d’água. Eram poucas as residências com esse privilégio. O bairro do Porto do Rosa era muito menos habitado. As ruas não eram asfaltadas. Na época não se ouvía falar em escassez de água, porém quem morava nas ruas mais altas tinha dificuldade para se abastecer. Precisavam caminhar para encher seus reservatórios. Não havia dinheiro para comprar pipas e nem para cavar poços artesianos. A casa se transformou numa central de abastecimento improvisada.

Era interessante ver as pessoas descendo o morro pelos terrenos baldios. Elas se dividiam em grupos. Parte dele ia para a casa. Nosso personagem-título também.

Ele era jovem branco, alto, e com barba. Possuía ar debochado de Clark Gable em “E o vento levou...”. Como tinha problemas mentais nunca se soube se conseguiu sua Scarlet O’Hara. Andava sozinho embora tivesse família. Tinha o olhar vago típico dos loucos. Em descompasso com o sorriso. Parece ser esse traço comum a quase todos os loucos. É o olhar dos presentes ausentes no tempo e no espaço. É o olhar dos que têm direito a criar sua própria história e mundo fantásticos. Não tenho espontaneamente esse olhar. Tento recriá-lo através do teclado para quem me lê.

Palmas fortes. “Moça! Moça!”.

“Já vou! Já vou!”.

“Vou abrir o portão, mãe”.

“Espera aí, menino!”. Foi bastante rápido e chegou antes da mãe. Biriba estava ali na minha frente.

“Sua mãe taí?”

“Tá!”

“Mãe, Biriba tá no portão!”

A mulher foi correndo. O outro filho e a filha iam atrás. O pai saíra. A avó ficara dentro de casa.

“Dona, posso pegar uma viagem d’água?”

Silêncio...

“Seu marido taí?”

A mulher ficou branca. A vó veio de dentro e falou: “Nora, teu marido já acordou e tá chamando”. Alívio! Foi só ouvir a voz de avó e pernas pra que te quero. Sumiu da frente do portão. Não era perigoso, apenas desequilibrado mentalmente. Nunca fez mal a ninguém. Não se sabe exatamente porque tinha grande medo do dono da casa e da mãe dele.

Os meninos atiravam pedras. Xingavam-no. Instigavam-no fazer coisas absurdas. O maluco era ele. Uma vez mandaram-no apanhar água na casa. Encheu suas latas e pôs as sandálias de dedo por cima da água. A dona da casa disse que tirasse as sandálias da água porque estavam sujas. Disse as haver colocado de cabeça para baixo. A sujeira estava, portanto, acima da superfície. Outra vez bebeu grande quantidade de remédio vencido jogado fora. Todos ficaram apavorados. Estava se prevenindo contra doenças futuras. O maluco era ele.

Biriba, na maioria das vezes, era muito engraçado. Aprenderam a lidar com ele. Abriam o portão se o chefe da casa estivesse. Entrava e falava “Bom dia, moço!”. O homem respondia com olhar sério e respeitoso. Quando perguntava, a resposta era com um mínimo de palavras. Enchia suas latas. Punha-as na cangalha e as carregava nos ombros. Ia embora com seu sorriso enigmático. O dono da casa, sério, nunca achava graça de nada do que Biriba fazia. Penso talvez serem esses os raros momentos de lucidez desse rapaz.

Sempre houve pessoas com problemas mentais. No Galo Branco não eram considerados loucos. Eram, em verdade, idiossincráticos. Por terem família e personalidade forte não eram chamados de loucos. No máximo, esquisitos, estranhos. Já no Porto do Rosa a situação era diferente. O bairro era bem menos povoado e a dificuldade para se chegar ao Centro da cidade naquela época criava um certo isolamento que favorecia a fragilidade de algumas pessoas e a agressividade de outras. Felizes eram os que se mantinham em equilíbrio. Nem presa nem predador. Agora a situação mudou assim como o bairro. A população deu um salto vertiginoso. As áreas verdes diminuíram drasticamente. Da fauna restam, além das aves, calangos, insetos e aranhas. Os sentimentos nobres também estão entrando em extinção junto com as boas maneiras e com a sensibilidade. O bairro está cada vez maior e menos aconchegante apesar dos omissos moradores de bem. Não há mais tempo para ver. Não há mais interesse em se ver. Os malucos estão soltos com ares de grandes imperadores, generais, bandidos... Todos com a armadura da arrogância. Há os impiedosamente hilários com lanças capazes de produzir ferimentos engraçadíssimos aos outros loucos sedentos de espetáculo. Há também os fantasiados de religiosos cantando e brandindo os chicotes por todo o lado. Nos manicômios invisíveis e cruéis dos olhares embrutecidos estão os mansos compreensíveis, os lúcidos sensíveis e os justos compassivos. Soltos estão aos olhares ditos maduros e sérios os egoístas e individualistas insensíveis, os predadores implacáveis juntamente com os piegas, fúteis e frívolos consumistas. Nenhum deles seria capaz de lembrar de ninguém porque esses normais não se lembram de nada. Só os loucos têm memória. Deus abençoa os loucos. Eles podem inclusive ficar eternizados mesmo numa página por enquanto.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 29/05/2010
Código do texto: T2287831
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.