VOVÔ LELÉ

VOVÔ LELÉ

Nunca tínhamos visto um cadáver antes. E não sei por que razão Deus (ou, para aqueles que não acreditam em sua existência, qualquer força superior a nós) decidiu que deveríamos ver nosso primeiro cadáver juntos. E eu já tinha perdido dois avós paternos, um tio paterno e ainda um tio-avô materno. Isso só contando os mais próximos. Ele também tinha perdido um avô, que eu soubesse. Mas nunca tínhamos visto um cadáver. E tínhamos vinte e vinte e um anos, respectivamente, eu e ele. Já tínhamos vinte anos, e ainda não tínhamos visto um cadáver.

Acho que foi por isso que num domingo de sol de outono em Porto Alegre fomos informados que o avô dele, de setenta anos, pai da mãe dele, tinha falecido. O pai dele foi quem ligou avisando. Os pais moravam longe, em Recife, e ele morava com a avó em Porto Alegre, onde fazia a faculdade de direito. Éramos colegas de faculdade, amigos, jogávamos futebol de botão e banco imobiliário juntos, e, o mais importante de tudo, éramos namorados.

Nunca me esquecerei do rosto dele quando veio nos dar a notícia da morte do avô. Estávamos todos, tios, primos, irmãos, amigos, reunidos ao redor de uma mesa na casa do meu padrinho, na Rua Cel. Bordini, 28, no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre. Contávamos piadas e histórias quando ele veio com cara muito séria e disse, “Meu pai telefonou dizendo que meu vô morreu”. Todos rimos. Sim, rimos, porque ele era dado a inventar coisas, a falar ironias e maluquices. Menino maluquinho... Um guri muito criativo. Achamos que era brincadeira. Ele manteve o rosto inalterado, parecia mesmo chocado, sem ação. Nem parecia mais ele, depois eu notei. Logo vimos que era verdade. E então tudo começou, começaram os momentos que antecederiam a nossa primeira visão de um cadáver.

Tínhamos que ir até a casa do avozinho, que morava sozinho no centro da cidade, em uma rua que dava quase no Rio Guaíba. Dava para ouvir o barulho da água, fazendo-se um esforcinho. Meu padrinho foi conosco. Meu padrinho, um grande companheiro nosso, mas um homem que não era (e creio que ainda não é) nada chegado no assunto morte. E alguém é?

Entramos no pequeno edifício, frio e escuro. Era abril, ainda não tinha chegado o gelo do inverno verdadeiro do Rio Grande, com aquele cheiro de lenha queimada no ar, mas havia prenúncios do frio congelante, de cortar as orelhas e o nariz. Havia um vento já meio cortante. Eu lembro de sentir meu coração meio apertado enquanto caminhava em direção à porta do apartamento. Lembro de que não observei a reação dele e nem a do meu padrinho. Eu podia ouvir o barulho surdo dos nossos passos, entre apressados e sem vontade de entrar lá. Seguimos, apenas, os três, cada um com seu pensamento em algum lugar. O meu estava no meu avô materno, que costumava me ensinar matemática e que falecera cinco anos antes, mas que eu não tinha visto morto, “Sabe por que é que as crianças não gostam de matemática? Porque os professores não sabem ensiná-la”, dizia, entre uma risada grande e outra maior ainda. O do meu padrinho, certamente, estava no pai dele, meu avô paterno, falecido subitamente de infarto aos cinqüenta e quatro anos e também no irmão caçula dele, meu tio, que faleceu quando era muito jovem, “Não me deixa sozinho, não me deixa sozinho”. O do neto, provavelmente, no próprio avô que ele visitara tantas vezes naquele mesmo lugar, naquele apartamentinho para o qual estávamos indo agora, rumo à visão ainda não conhecida do primeiro homem morto. O avô sempre lhe dava um dinheirinho. Todos, em realidade, estávamos pensando na mesma coisa, e esse fato me deixa agora bastante tranqüila. Não é sempre que você é capaz de compartilhar ao mesmo tempo um mesmo pensamento com pessoas que ama.

Quando entramos, meu coração batia tão forte que eu mal podia ouvir as palavras do senhor que nos recebeu à porta, vizinho do avô, que falava muito e gesticulava forte. “Falam as mãos dele”, pensei. Nossos olhares, creio, devem ter sido de choque quando vimos, sentadinho em um sofá bem velho, o avô. Sim, o cadáver do avô estava sentado no sofá. Logo o vizinho nos explicou que ninguém tinha mexido nele, porque, como morreu sozinho, um policial que chamara mandou que não mexesse no pobre velho. A única coisa que pensei foi “Que coisa mais louca, por que alguém teria matado aquele velhinho de rosto sereno, que era cardíaco, e quem um dia tinha me falado em uma viagem a Buenos Aires que ele tinha feito há muitos anos?”. Um cara que sabia dançar tango em plena Porto Alegre dos anos 30 ou 40 não poderia ser assassinado, onde esse pessoal pensa que está, em um filme de Hollywood?”. Eu, na verdade, queria era dizer, “Gente, vamos tirar o velhinho daí, o que é isso, deixem ele ficar morto decentemente e em paz, coloquem-no numa cama, deixem-no descansar!!!”. Mas eu nunca teria tido coragem. Não aquela menina de vinte anos que eu era. A mulher de trinta anos que sou hoje pede desculpas ao Vovô Lelé por não ter falado nada.

E assim ele continuou, daquele jeito mesmo, porque obviamente dali nem sairia. Assim ele continuou e nós nos sentamos nas cadeiras e poltronas que estavam ao redor, nós três e mais uns quatro ou cinco caras, incluindo o vizinho e o policial. Lembro-me de que o neto entrou no banheiro logo depois que viu o avô sentado morto e ali demorou um tempo, e lembro-me que jamais perguntei o que ele foi fazer ali. Sei que ele saiu dali com forças suficientes para escolher o caixão do avô, separar as roupas do avô (lembro de que o neto me contou depois ter escolhido um terno que parecia novíssimo, e também um par de sapatos que estavam em uma caixa, separados dos demais pares, deveriam ser novos, pensou o neto, nunca deviam ter sido usados, e agora seriam, e o coitadinho do velho nem ia poder vê-los e sentir-se lindo com eles, ou poderia, eu sei lá, quem pode saber? Só quem já partiu.), ajudar a vestir o avô, falar com diversas pessoas ao telefone, contratar todos os serviços que devem ser contratados neste momento, inclusive a van que levaria o corpo até São Gabriel, quase na fronteira com a Argentina, cidade-natal do avô e onde ele desejava ser enterrado. Acho que o neto não esperava ter que fazer tudo isso com vinte e um anos. E quem espera?

Só depois de mais ou menos uma hora resolveram cobrir o morto com um lençol, o que piorou ainda mais, porque agora não tínhamos mais um morto sentado no sofá à nossa frente, tínhamos um morto sentado num sofá coberto com um lençol, como se fosse um fantasma, ou um móvel velho, que vai ser retirado da casa no dia seguinte.

Eu queria era sair dali o mais rápido possível, mas, o mais estranho foi que depois de mais alguns minutos, creio que todos ao redor começaram já a se acostumar com o cadáver no sofá, conversavam normalmente, telefonavam, decidiam coisas. Parecia mesmo que ele já não estava mais ali. Mas estava. Eu sabia que ele estava.

Lembro-me do rosto do meu padrinho, de uma consternação indescritível, mas escondendo-a de um jeito que creio que só ele poderia fazer. Estava ali, ao nosso lado, sendo o grande apoio naquela hora. Era o adulto que precisávamos. Sim, porque, numa hora dessas, você tem vinte anos, mas se sente com cinco.

Lembro-me do rosto do neto, quando saiu do banheiro. Estava tranqüilo, calmo e decidido. E foi com toda essa calma que lidou com tudo aquilo. Encomendar o avô para algum lugar que nenhum de nós conhecia. Auxiliá-lo na passagem.

Meu pai emprestou o carro para que acompanhássemos a van da funerária até São Gabriel, e fomos, nós dois e também a tia e a avó do meu marido, ex-mulher do avô. Saímos de Porto Alegre já tarde, iríamos pegar a estrada durante a madrugada, e lembro-me claramente do meu pai dizendo para que tomássemos cuidado, e que conversássemos e ouvíssemos música todo o tempo, para não dormirmos. Fomos ouvindo Elvis durante toda a trajetória, e eu pedi desculpas às senhoras pela música, expliquei que era para não dar sono no motorista. Eu acho que fomos calados o tempo todo. Na verdade, não me lembro bem. Só me recordo que seguimos a van durante todo o percurso, e que podíamos ver um pedacinho do caixão lá dentro. Confesso que fui arrepiada até lá. “Ao menos”, pensei, “agora o coitadinho está deitado”.

O enterro transcorreu normalmente, nada de mais. Um enterro. Perto de tudo que já tinha acontecido antes, aquilo realmente não era muito, ao menos para mim, que era uma mera expectadora acompanhante do neto do morto. Eu só consigo me lembrar da chuva fina que caía na hora do enterro, e que me arrependi por não ter ido com uns sapatos mais velhos, porque os meus, de camurça marrom, estragaram todinhos no barro do chão batido do cemitério.

Na cidade, o avô era conhecido e falaram dele até na rádio local. Achei bem legal aquilo. Antes, era só um desconhecido morando sozinho em um minúsculo apartamento em Porto Alegre, às margens do rio. Na morte, virou uma pequena celebridade.

Não tenho imagens da nossa volta à Porto Alegre. Mas voltamos, mesmo sem saber como. Só o que é certo é que voltamos diferentes. E mais cúmplices.

Alguns dias depois do enterro, o neto teve que ir ao apartamento do avô para organizar suas coisas, e retirá-las dali. Disse-me que foi uma experiência única. Nada agradável, estranha: mexer nas coisas de alguém que não pertence mais os nosso mundo. Vasculhar a intimidade de alguém sem ser solicitado. Fotos, roupas, bilhetes, miudezas, lembranças, vários fragmentos de uma vida. Uma vida que ele mal conhecia. Mas, que contavam uma história, ah, contavam. Deveriam contar histórias sobre a sua infância e sua juventude, sobre as mulleres que amou, sobre tudo que fez, sobre os tangos que dançou.

Em um dos bolsos de uma das calças do avô, o neto encontrou algum dinheiro. Contou-me a respeito, confessando não saber o que fazer com um dinheiro que não era seu. Eu não pensei duas vezes antes de dizer “Fica pra ti, tenho certeza que ele gostaria que ficasse pra ti”; e ele, concordando, foi no dia seguinte comprar um livro com o dinheiro, um livro em cuja primeira página assinou seu nome e escreveu, “Comprado com o dinheiro do vovô”. Fiquei pensando o que significaria essa frase para alguém que fosse, décadas depois, ler este livro.

Isso aconteceu há mais de dez anos, e nós nunca mais vimos nenhum cadáver juntos. Queria poder morrer sem ter que dividir isso de novo com ele. Queria compartilhar a alvorada e o pôr-do-sol, e queria ver filhinhos nascendo e crescendo, e dividir a música, as alegrias e a velhice, mas, não queria mesmo nunca mais ter que compartilhar a morte com ele.

Clarice Casado
Enviado por Clarice Casado em 24/01/2005
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