O Dom

Salvar-te do nada

“ Rasteja para a Terra, tua mãe! E possa ela salvar-te do nada”

A Terra como uma mãe, Tellus Mater , como protectora contra o nada. Contra o nada, como se o nada fosse algo, ou tivesse alguma importância.

A frase aparecia muitas vezes, mas onde a teria lido?

O mais estranho era aparecer associada à Celidónia, do latim Chelidonium Majus, uma erva ou planta típica dos muros, dos escombros e dos taludes, mais conhecida como a erva-andorinha. Sim erva-andorinha, porque, segundo a crença popular as andorinhas curavam a cegueira das suas crias com esta erva.

Cegueira, terra, nada, mãe, que estranho, que acordar, que sonho...

Mais estranho ainda, quando se acorda, num quarto pequeno, frente a uma cruz de madeira, sem a figura de Jesus, pregada na parede. Uma janela grande do lado esquerdo, por onde entra um sol magnífico e do lado direito uma porta aberta.

Ligado pelo peito a uma máquina que faz um pi, pi, estranho... não é de admirar, quando se acorda deitado de barriga para o ar, numa cama de um hospital.

A parte mais confusa era a de não saber porque estava ali deitado e não na minha cama, como tinha ido ali parar. E pior de tudo não me lembrar de nada, apenas vagamente de um sonho estranho.

E afinal como é que me chamo, qual o meu nome?

– Bom dia Sr. Alberto!

Alberto será o meu nome, nada mal para primeira revelação...

- Então, como se sente hoje?

O tipo de bata branca com uma chapa onde pressupostamente estaria um nome gravado, com três, quatro canetas no bolso, era magro e muito alto, muito alto mesmo.

– Acho que bem, Sr. Dr., apesar de me recusar a ir consigo aos figos, como se costuma dizer, de estar atado a esta coisa que faz pi e mais pi, apesar, de não saber se me chamo mesmo Sr. Alberto, não saber nem conseguir imaginar porque estou aqui, apesar de não sentir ou conseguir mexer qualquer parte do meu corpo para além da cabeça que me dói e desta sede terrível, acho que posso dizer que estou bem. Com muita sede.

– Muito bem. A sede é natural, assim como a dor de cabeça, Sr. Alberto. O Sr. esteve muito tempo em estado de coma, muitos dias e o acordar é sempre assim.

Ao mesmo tempo que falava, escrevinhava algo numa ficha.

– Quando sair vou dizer à Sra. Enfermeira para lhe dar um medicamento para a dor de cabeça e algo para molhar a boca. No seu estado não é possível dar-lhe um copo com água, tem de ser devagar .

A perfeição assusta, não pertence a este mundo é uma causa diferente deste mundo, embora venha até ele, e esta perfeição de não poder beber água começava a enervar-me.

– Dr., mas nem um copo com água...?

– Nem um copo com água! Enquanto dizia esta última frase, pendurou a ficha na cama.

– Mas... vamos resolver esse assunto da sede e da dor de cabeça.

– Desculpe, mas porra! Não consigo mexer-me, não sei onde estou nem o que me aconteceu, quem sou, se Alberto, se Sr. Alberto, que dia é hoje, não posso beber um copo com água, mas o Dr. diz que vai resolver o assunto. Acordo e vejo uma cruz numa parede e o Sr. Dr. à minha frente a escrever, é porra mesmo...”

A erva-andorinha cura a sarna, as úlceras e a tinha da cabeça...

Outra vez parte do sonho, que loucura.

– Sr. Alberto, sim, chama-se Alberto. O Sr. Está no Hospital de S. Pedro , foi vitima de um grave acidente e acordou há pouco mais de 7 minutos de um estado de coma profundo. O tempo neste momento Sr. Alberto é o que menos interessa, o que interessa é que finalmente acordou, por isso agora deve descansar, para que a recuperação decorra devagar, isto é, demore o tempo que for necessário.

– Mas .... se acordei agora, para que é que devo descansar? Acordei estou mais que descansado, e não me levanto e saio por aquela porta porque não sinto o meu corpo, isto é, não mexe, por mais que tente, senão garanto-lhe, que só parava muito longe daqui. O que é que me aconteceu para estar aqui sem me mexer?

– Uma coisa de cada vez. Acordou , e isso era o mais importante.

Nesta altura o médico, cujo nome eu não conseguia ler, porque a placa que tinha pendurada ao peito era, para mim, ilegível àquela distância, tirou os óculos e colocou-os no bolso onde estavam as canetas todas.

– Vou deixá-lo, Sr. Alberto. Daqui a um pouco a Senhora Enfermeira vem aqui ver como é que se está a portar. Quando acabar a ronda pelos outros doentes venho cá. Até já, Sr. Alberto.

E saiu porta fora.

E eu sem me conseguir mexer, ali fiquei, com aquela cruz de madeira à minha frente pregada na parede branca.... branca.....

“ O nome exprime a pessoa e a sua missão.”

“- Caríssimos, não estranheis a fogueira que se ateou no meio de vós para vos pôr à prova, como se vos acontecesse alguma coisa estranha” (Últimas Exortações – 1ª Carta de Pedro)

Tão branca a parede, que se podiam ver as suas rugas mais escuras, mas também era verdade que por mais voltas desse à minha cabeça, não conseguia perceber, saber, a razão de ali estar, qual o meu nome.

Todas as coisas têm um nome, e ainda mais as pessoas, a isso chama-se identidade que nos acompanha até ao fim. Será que nasci assim? Será que por ser grande, logo à nascença, os meus pais , a minha mãe de tão assustada por me haver parido assim grande e sem me mexer, se tenham esquecido de me dar um nome e o médico esteja agora a inventar que me chamo Alberto?

Sim, ele chamou-me Alberto, que raio de nome, não me lembro mesmo.

Os olhos começaram a semicerrar-se.... – Hum .... ainda me lembro do bocejo... pouco mais.

Um dia irei por aí fora

Há de haver um dia em que irei por aí

Não por uma razão,

Mas por todas

As razões

Irei até mais não, até parar

Até um dia haver razão

Para ficar,

Descansar!

Penso que ainda esbocei um sorriso à enfermeira que entrou, o resto do corpo, exceptuando o respirar, não o sentia, que droga.....

A Celidónia floresce com a chegada das andorinhas e murcha na altura da sua partida.

(...)

O Dom

E eis-me sentado, com a caneta preparada defronte destas folhas brancas.

O início da história, ou antes, a história, como todas, tem um tema, não um objectivo, porque esse é deixado à imaginação do leitor onde o maior objectivo do contador é chegar ao fim e ser lido pelo maior número de leitores. Sim, um tema, O Dom, nada mais, nem nada menos que isso.

– A intenção não era mesmo essa. Eu não sabia o que fazer com este Dom, dádiva, presente, virtude, sei lá como caracterizar isto.

– Mas sabias que o tinhas? Sentia-lo, claro!

– Posso fumar? Apetecia-me um cigarrito sem filtro.

– Claro que podes! Aqui, por enquanto nada é proibido, tudo é permitido, possível. Toma!

Nisto esticou a mão onde de um maço de Português aparecia um cigarro mais elevado que os outros. Tirei-o, e com ele entre os dedos a caminho da boca...

– Tens lume?

Estava a ouvir-me . Foi o que repeti vezes sem conta quando me pediam uma broca, um cigarrito e eu o oferecia. Dinheiro nunca, cigarros sempre. E quando pediam em primeiro lugar dinheiro, não dava nada, dizia sempre:

- Enganaste-te!

- O quê? Estava a ouvir-me.

- Já agora, queres que o fume? repeti maquinalmente ..

- O quê? Explica-me.

- Desculpa, são reminiscências deste passado, respondi.

– Lume eu tenho, obrigado. Como tu dizes, aqui tudo é permitido, é só pensar, estalar os dedos, e pronto, já está.

Nessa altura pus o cigarro na boca e chupei o à espera do que iria acontecer.

“ Epur si muove”, exclamei espantado, enquanto o fumo entrava até aos pulmões e saía com a mesma facilidade de sempre!.

- Hum... que agradável!

– Estás a ver como aqui é como eu te disse? Já acreditas agora? Mas vamos ao que interessa.

– Que é? Desculpa, mas é que eu sou assim, quando a conversa não me interessa, volto sempre atrás, para atrapalhar e poder assim pensar e só dizer o que me interessa dizer.

- Isso sei eu, ou julgas que não te estudei e decorei o teu percurso todo? Até sei que, para não pensares nos problemas objectivos que tens de resolver, te sentas calmamente, como se nada fosse contigo, a jogar no telemóvel? Esse jogo parvo vezes sem conta. O que eu acho mais engraçado é que ages e sentes e estás como se nada fosse contigo, como se essa tua vida fosse calma e pacifica, sem problemas, como passear à beira do rio ( o que sei que gostas) a ouvir o sussurrar da água a bater nas margens, num dia de Sol, perdão, num dia cinzento, como tu gostas de afirmar : - Sol não, é muito claro.

– Sol é vida!” que coisa, este tipo sabe muito a meu respeito, e não me dá muito tempo para me concentrar. Vou calar-me, talvez pegue, e fazer ar de desgraçadinho, enquanto acabo de fumar o cigarro.

- Até imagino que te vais calar. Sim, está na altura de te calares, mas a curiosidade em saberes quem sou, o que fazemos aqui, onde estamos, quando chegámos, aquelas perguntas que te perseguem, a tua veia de jornalista, é superior a essa tua teimosia toda, a esse silêncio de menino mimado com birra. Só te falta mesmo é cruzares os braços e bater com o pé no chão, o pé esquerdo, pois és um canhoto falso que escreve com a mão direita.... apanhei-te.”

Tenho de ser muito mais rápido, antecipar-me, mas como, se ele sabe tudo sobre mim...?

- Pronto, pronto, tens razão, diz-me lá o que queres saber?

- Tu sabes bem o que quero saber, continuas com evasivas.... com evasivas.... evasivas..... evasi......

Conseguia ouvir esta última frase, cada vez mais longe, mais longe... mais longe...

Abri os olhos, não me mexi.

O tecto branco, de um branco sujo, causado pelas inúmeras infiltrações de água da chuva, com a grande rosácea em gesso de onde pendia o candeeiro, melhor, de onde pendia o fio de electricidade que segurava a lâmpada, lá estava.

Afinal, tudo não passara de um sonho. Sorri.

Fizeste bem em ganhar tempo, já me estava a sentir mal, o sonho quase que me apanhava, sabia como iria reagir, quais as minhas respostas, lia os meus pensamentos causando-me desconforto. Que intromissão na minha mente.

O mais estranho era a luz branca, não lhe ver os olhos, a expressão, apenas um vulto envolvido por uma luz branca, estranha. O que interessa é que já passou.

A perna mexe, os dedos do pé também, os braços, as mãos e os dedos parecem movimentarem-se bem, pelo menos já tirei a roupa de cima do meu corpo, e esta mania de dormir com as portadas da janela do quarto abertas dá resultado, já é dia e são....., virei-me, peguei no telemóvel ao mesmo tempo que tocando numa tecla ao calhas, a luz do monitor acendeu-se e 6.30m, a claridade no quarto era total.

Está na hora de levantar.

Levanto-me e calço os chinelos, ao mesmo tempo que começo a fazer a cama, afasto a mesa de cabeceira e olho em volta, vendo que está tudo arrumado, mais ou menos, excepção feita para a minha secretária, muito desarrumada.

Abro a janela para entrar ar, o dia está esplêndido, e saio do quarto direito à casa de banho, sem antes ir à cozinha acender o esquentador.

“ Let’s get together/and feel all right.” ouvia se na rádio do vizinho que morava no andar de cima.

A casa de banho é pequena. Do lado direito de quem entra, um armário branco que encosta à banheira. Do lado esquerdo, a sanita, o bidé a seguir, por cima uma janela que dá para as escadas de salvação do prédio, em caracol. Ao fundo o lavatório e o espelho para onde eu me olho todas as manhãs.

A barba é cortada a olhar para ele, qual Pai Natal com espuma branca na cara, a seguir o duche, o secar o corpo, o creme que o percorre, o penteado com mais ou menos cabelo, mas com o risco certinho. A camisa é vestida e a gravata com um nó impecável e apertado, encostado a um colarinho imaculadamente passado a ferro pela minha mãe.

Mas que se passa comigo? Olhos nos olhos para o espelho.

Uma cara que não vi, uma voz que ouvia, ou que me pareceu ouvir, uma quantidade de argumentos, e uma pergunta sobre um Dom. Será que enlouqueci?

O que é que andarei a magicar? Será porque o ordenado já não existe e as contas estão todas para pagar?

As pensões dos miúdos, as penhoras sobre o ordenado por dívidas levam me o dinheiro todo. Isto está engraçado, este mês, e o próximo e o outro, e tenho de andar de cara alegre todo o dia.

Este posto de rádio do vizinho tem boa música, mas daqui a um bocado começam a repetir as músicas, de tal maneira que, se mudarmos de posto, ouvimos o que já ouvimos no anterior, repetições, repetições, elevadas ao infinito. Hoje estou inspirado.

Sim, reconheço que tenho a mania de inventar histórias, mas escrever é muito a custo, queria era mudar a minha história, isso sim, será este o meu Dom, o reinventar?

Tanta interrogação, tanta pergunta sem resposta, uma indicação, um caminho a trilhar, a seguir. Esta conversa/sonho com o Sem Cara envolvido pela luz, nem uma mascarilha, nem nada, se a tivesse podia alcunha-lo de Zorro, assim é o Invisível, que um dia ao fazer uma experiência arriscada foi pelos ares, ficando apenas o seu espírito para incomodar, chatear, um tipo como eu. Com a sorte que eu tenho só me podia tocar mesmo a mim, e vir com a cantiga de que eu tenho um Dom.

Espelho meu, espelho meu, diz-me o que farei com este penado que ressuscitou para me esgotar as ideias, para me moer, atacar, a querer saber tudo, a entrar dentro de mim?

Senti um arrepio, como se o vento frio entrasse pela janela. Não me mexi, esperei. Nada. Que estranho, para inventar histórias estou por aqui, “ Era uma vez...” ri-me a olhar para o espelho “como em todas as histórias..”

(...)

Acordei!

Vagamente lembrava-me da última frase “ Era uma vez...!”

Abri os olhos, e senti alguém do lado direito da cabeceira.

Virei a cabeça devagar, e uma senhora magra, vestida de branco, lá estava, com os dedos de uma mão a segurar o meu pulso, a outra segurava um relógio de onde não desviava o olhar. Se conseguisse mexer ou sentir alguma coisa, de certeza que puxava o braço para mim.

– Calma, não lhe vou fazer mal, apenas estou a medir a sua pulsação, nada mais que isso. Descanse que não sou a Madre Teresa de Calcutá, nem a Lady Di, sou a Enfermeira Guadalupe. A pulsação está normal e o estado febril já passou, o soro que o tem alimentado está na quantidade correcta, o registo do seu coração, apesar de por vezes desordenado, e do aumento de batimentos, é normal. O Sr. Alberto há bocado devia de ir a correr na Maratona, é que os batimentos cardíacos dispararam, e está a suar, curiosamente.

– Tenho sede, muita sede...

– É natural. Vou só molhar-lhe os lábios. No seu estado ainda é cedo para ingerir líquidos, disse a enfermeira, ao mesmo tempo que molhava uma compressa e a colocava nos meus lábios.

Hum, que agradável o fresco, e o escorrer para a língua, garganta, da água que estava naquela gaze... – Só mais um pouco, por favor.

– Já chega, se continuar a recuperar assim, daqui a uns dias já pode começar a beber água e uns caldos de galinha, tudo a seu tempo.

– Desculpe, senhora Enfermeira, mas como é que eu me chamo mesmo, qual o meu nome, como vim aqui parar, o que é que me aconteceu, porque é que não me consigo mexer?

– Tanta pergunta seguida, Sr. Alberto. Chama-se Alberto e sofreu um grande e grave acidente, mas felizmente está vivo.

– De carro? e calei-me, pois lembrei-me de repente que nem a carta de condução tinha. “ – Alberto, então sou Alberto, mas tem graça, não me lembro nada de me chamarem Alberto, António ou João.

– É natural Sr. Alberto, o Sr. esteve em coma durante muito tempo, mas vai ver que a pouco e pouco se irá lembrar de tudo, nem que seja com a ajuda de um psiquiatra. Aqui no Hospital de S. Pedro temos os melhores do País.

“ Que nenhum de vós tenha de sofrer por ser homicida, ladrão, malfeitor, ou por se intrometer na vida alheia” (1ª Carta de Pedro)

Deixei de ouvir a Enfermeira, que continuava a adjectivar sobre o Hospital, o S. Pedro que por três vezes, antes do galo cantar, renegou Jesus, e o meu olhar dirigia-se para a parede e para a cruz que lá estava pregada.

O que era certo é que não conseguia mexer o corpo, excepção feita à cabeça, e que ainda ninguém me tinha dito o que me tinha acontecido, e como tinha ido ali parar, apenas que foi grave.

O nome já não me interessava, Alberto seja.

Virei a cabeça para o lado esquerdo, na direcção da janela, o dia estava claro, o céu azul sem nuvens, ao longe uns pássaros esvoaçavam, pensava eu, olhando para uns pontos negros que subiam e desciam, desaparecendo do meu ângulo de visão. Lembrei-me então da andorinha, porquê lembrar me dela e da Celidónia, mas o de querer saber mais de mim, relembrar-me da minha vida, das coisas que faziam parte do meu dia a dia, relembrar o tal acidente que me pôs aqui nesta cama, neste Hospital, sem conseguir mover qualquer parte do corpo à excepção da cabeça, mas este exercício estava difícil, muito difícil, como que bloqueado.

A Celidónia e a andorinha, e mesmo que entre ambos, planta e ave, existisse empatia, proximidade, ligação, nada disso fazia sentido. Apenas algo lido em tempos, de certeza, mas algo que necessariamente está ligado a mim, a esta cama que me aprisiona, a esta memória que desapareceu como um pôr de Sol, aquele que eu vejo, imagino, quando olho para a janela deste quarto branco com uma cruz pendurada.

“A Celidónia é diurética, tem acção sobre o aparelho biliar, antiespasmódica, em doses elevadas torna-se perigosamente tóxica. Floresce com a chegada das andorinhas e murcha quando elas partem”.

Depois o S. Pedro, devo ter estado mesmo perto dele, tenho de me acalmar..

- Sr. Alberto, o senhor está muito agitado, vou-lhe ministrar uma injecção com calmante, era a voz do médico.

- Sr.ª. Enfermeira, depressa....

Claro que não senti nada, de um momento para o outro, vi nuvens onde existia o azul, a erva verde, a andorinha negra, uma luz branca intensa, ao longe ouvia o apito agudo, cada vez mais perto, mais perto...... mais perto.

(...)

Não, hoje não vou trabalhar, vou me sentar à secretária no meu quarto, e vou escrever, contar, inventar uma história, esperar que o invisível não me apareça até porque é de dia.

Desapertou o primeiro botão da camisa, alargou o nó da gravata, saiu da casa de banho corredor fora. Passou pelo quarto da irmã onde ela e o cão, um pastor alemão já velho, dormiam. Lindo, pensou, parado a olhar, mais parecia um concurso de roncos, de ressonar, a dúvida estava em quem iria ganhar, o animal ou o humano, o animal levava vantagem. No final do corredor abriu devagar a porta do quarto da mãe,

- Mãe, mãe, estás a ouvir? disse baixo.

- Sim, diz lá. Que coisa estava a dormir.

- Não te preocupes mãe, que eu hoje não vou trabalhar. Vou para o meu quarto tratar de uma papelada. Se telefonarem a perguntar por mim, diz que não estou.

- Estás bem, não estás doente pois não?

- Não. Estou bem, agora dorme.

Fechou a porta com cuidado, passou pelo velho armário, entrou no quarto e trancou a porta por dentro.

A luz do dia entrava pela janela entreaberta, os cortinados esvoaçavam levemente deixando entrar aquele aroma do dia. A cama estava feita com a colcha laranja posta. Por cima um velho cartaz, amarrotado, da Revolução dos Cravos, onde um garoto de caracóis louros, descalço, põe um cravo vermelho no cano de uma metralhadora segurada pela mão de um militar.

- Este cartaz está velho.

Por baixo um papel azul, vermelho e amarelo que o filho de seis anos o obrigou a colar na parede.

- É a nossa casa e tem o meu nome escrito.

- Está bem. o pai cola o aqui, pode ser?

- Sim!

Na parede do lado esquerdo, outro cartaz grande quase a ocupar metade da mesma. Estavam lá todos os bonecos do Disney’s Magic English, à frente o Mickey, a fechar a fila o Bambi. Mais uma das invenções da criança. Ao lado uma cerca como se uma janela fosse, com um boneco e um pseudo poema escrito a carvão, que por estar ali há tanto tempo já não se conseguia ler.

Do lado direito do quarto a confusão era total. Na parede um quadro com seis aguarelas que representam as mulheres de Corto Maltese de Hugo Pratt, por baixo um mais pequeno com uma pintura abstracta, em tons escuros, com um papel escrito à mão, onde com uma letra bem desenhada estava uma transcrição da Tabacaria de Fernando Pessoa, “ Não sou nada/nunca serei nada/não posso querer ser nada/à parte isso, tenho em mim/todos os sonhos do mundo...”

Uma cortiça grande com fotos, postais, bilhetes, desenhos, rascunhos, uma estante completamente cheia até ao tecto com livros, cada um para seu lado. Outra estante com livros e mais livros, bonecos, canetas, papéis desalinhados, recordações, uma confusão total. No chão os brinquedos do miúdo a monte, de onde se destacava uma garagem meio partida.

No meio da parede a secretária, grande.

Desde uma telefonia Schaublorenz antiga ainda a válvulas, passando por uma tartaruga de madeira branca, um Homem Aranha de plástico, papéis, maços de tabaco vazios, dicionários, livros, CDs, canetas e mais canetas, um candeeiro, estava de tudo, de tal maneira misturado que só eu entendo.

É aqui que eu me sinto bem, em sossego e acompanhado.

- Acompanhado?

A luz e a voz voltaram.

– Mas é de dia, é dia claro e de Sol. O que fazes aqui a esta hora, já estou acordado? Se ao menos essa luz fosse escura, negra mesmo, até poderias ser a minha sombra.

- Sou quase como a tua sombra. Já te disse que bastava pensares, e pronto, eu apareço. Pensa!

- Nem pensar, se agora já falo para uma luz que esconde uma pressuposta imagem, figura, invisível, se penso, qualquer dia começo a comer polvo com uma colher de sobremesa.

- Será que estou louco? Será que o louco tem visões e que a loucura está a tomar conta de mim?

- Hoje resolvi não ir trabalhar, ligar para o emprego e dizer que estou doente, mal disposto, de “soltura”, com uma dor de cabeça horrível, com a finalidade de estar aqui, a ler, a escrever, a inventar, a gozar no meu quarto arrumado de um lado, desarrumado do outro, daqui a um bocado ir beber um café curto, e logo tens de aparecer..... podias ficar pelo sonho, assim, em vez de acordar com sono, acordava pensativo, introspectivo, que mau gosto.

- Mas, quem te disse que eu era um sonho e que só à noite, quando estás a dormir é que apareço? Eu apareço quando tu pensas em mim, e desde que acordaste, não tens feito outra coisa senão isso.

- Isso...?

- Sim, só tens pensado em mim, quem eu sou, o que quero, de onde venho, porque apareço, essas tuas manias de jornalista sem jornal, de pirâmide invertida, o Dom que tens e que não sabes qual é.

- Eu tenho pensado em ti? Só me faltava mais um pensamento para juntar a outros tão difíceis e complicados como a falta de dinheiro, arranjar um part-time, o trabalho, a minha vida parva e sem futuro, as minhas indecisões e mais, muito mais.

- Tocaste em quase tudo, menos no que te move, no que te faz fingir, no que te faz levantar todos os dias, e porque é que não utilizas o Dom que tens em prol dos outros, do bem dos outros? Sim, tu tens a mania de dizer que gostas de ajudar os outros.

- E o que é que tu tens a ver com isso? Se me apetecer ajudo, pronto! Lá vamos começar outra vez, mas desta vez serei mais rápido.

- Não tenho nada a ver com isso, até porque sei que tentas ajudar os outros, mesmo que isso te aborreça, interrompa a tua comodidade, mas só os prejudicas. Ajudas sempre, sem quereres nada de volta, apenas o reconhecimento e dizerem que és o maior, mas será mesmo assim? Não faças essa cara e fica para aí sentado nessa secretária, que tem tudo, como na tua mente, misturado, confuso.

Enrolei o cigarro, acendi o, fumo.

- Não me apetece tanta claridade em meu redor, estou inspirado, vou escrever.

- E estragar mais umas linhas, mais alguma vida?

- Estás doido ou quê?

Uma baforada no cigarro, fumo.

Enrolei o cigarro, acendi-o

Vi o fumo subir até ao tecto. Começou então a escrever.

Olhei parado, a olhar

estranhas silhuetas o branco da parede

caraças de figuras mais a sombra

que se desfazem, que projectava

voam ao sabor só queria ser fumo

de um ar que corre, e ir empurrado

desta brisa que me pela brisa

arrefece que me ensinava

arrefece a alma, a ir para longe

o cigarro queimou sem a pressa em voltar

todo, até aos dedos mas com esta vontade

que, de amarelados de regressar a mim

já não sentiam de sentir a minha sombra

o queimar escura

daquelas figuras separar-se de mim

que nasciam e desapareciam para me contar

Como é belo o dia

E a noite que o segue.

- Muito bem, merece palmas.... um bocado aéreo, não concordas?

- Eu não tenho de concordar com nada, e muito menos contigo. Como é que consigo estar sossegado nesta secretária de que eu gosto, a escrever, a inventar, contos, histórias, sim, a inventar a única coisa de que gosto, se tu passas a vida a aparecer, a desaparecer? É que nem me concentro, nem consigo estar sossegado e tranquilo.

- Ainda não percebi porque é que escreves essas histórias, ou esses poemas se assim lhe posso chamar, se a partir de certa altura te maçam, enfadonham, e nessa altura paras e pensas “ Isto da inspiração... tem muito que se lhe diga” e só passado muito tempo é que voltas a esboçar um pseudo livro, ou melhor um pseudo texto, deixando tudo em suspenso por um final? É maquiavélico. Mais valia dormires. Sabes que o descanso acalma o cérebro e faz bem à pele.

- Tens muita graça. O grande problema é que eu bloqueio, páro, não me apetece escrever mais. Chego à conclusão que escrevo para mim, nada mais.

- Só para ti? E nunca pensaste que isso pode trazer consequências boas ou más para outras pessoas? Nem que seja para dizerem “ Como escreve bem, porque é que não continua?” ou então “ A mim aconteceu-me pior, como se fosse a continuação da sua história”. Já pensaste se a tua escrita poderá influenciar uma vida, se for lida ou não ?

- Influenciar, consequências, para outras pessoas, que lêem ou não? Eu escrevo para mim e isso quase me satisfaz.

- Escreves quando estás falido, isso sim, como se fosse um refúgio, um esconderijo mas pensas sempre que a publicação dessas palavras todas te vão fazer sair do anonimato, te vão dar reconhecimento, e claro que irás dar uma série de autógrafos “ “para a Maria ou para o Manuel com um forte abraço ..”, entrevistas. Claro que pagavas as contas com o pecúlio da publicação, e distribuías o dinheiro pelos amigos, familiares, ajudavas como gostas de dizer. Mas nessa cabeça oca não passa que o Dom que tens pode ser terrível, pode transformar, influenciar.

- Mas que mal fiz eu? gritou, berrou.

- Passa se alguma coisa? perguntou a mãe lá ao longe.

- Não, não mãe, apenas queimei os dedos com o cigarro.

- Vê lá se incendeias o prédio. Que mania de fumar no quarto, já o teu pai era a mesma coisa! a voz da mãe ia desaparecendo.

A luz tinha desaparecido, a voz tinha-se calado. Ainda bem, pensou.

Abriu outro bloco e enrolou um cigarro, olhou em frente e pegou num livro que tinha do lado esquerdo da secretária. Pegou noutra caneta e transcreveu para o bloco, “ texto védico que se dirige ao morto: “ Rasteja para a terra, tua mãe! E possa ela salvar te do nada!”, a Terra considerada como mãe, e como protectora do nada”. Fechou o livro, arrumou o e pegou noutro que estava ao lado. Abriu-o e voltou a escrever no bloco: “A Celidónia é uma planta típica dos muros, escombros e dos taludes, sobretudo nas cercanias dos locais habitados, a Celidónia ou erva-andorinha não passa despercebida. Floresce com a chegada das andorinhas e murcha quando elas partem.”

Bonito, pensou, mas não têm nada a ver um com o outro, ou com a história que quero escrever. Arrumou o segundo livro, de seguida debruçou se, e num ápice começou por baixo a juntar as letras, a formar as palavras, a escrever as ideias que não paravam, o preto da tinta fazia o resto.

(...)

Abri os olhos, estava a suar. Estava noite, pois só um candeeiro estava aceso no quarto, e sentia uma grande azáfama à minha volta.

- Sr. Doutor, acordou, a febre está a subir e não consigo controlá-la, dizia a enfermeira.

- Ministre outra injecção de.....estamos a perdê-lo. Dê me o registo do coração, quase que gritava o médico.

Sim, isto para o meu lado não deve andar nada bem. Estou cheio de sede, a tal luz, o tal tipo que está a escrever, sim estou a lembrar-me, finalmente vou recordar o que se passou. Fechei os olhos, a azáfama continuava à minha volta, de repente voltei ao sonho.

(...)

É melhor começar o conto por não saber o porquê da situação, sim é melhor, e finalmente a luz e a voz pararam, mãos à obra. Nesse instante a mão recomeçou a juntar as palavras.

Não sei por que se suicidou.

Ou porque é que avisou o marido que “- Agora é que vai ser.... Agora é que é...”

Ou porque é que as pessoas com quem trabalhava foram à missa do sétimo dia, depois de plantar uma laranjeira, algures, num campo qualquer.

Não sei porque é que depois de todos dizerem que era a melhor secretária, uma excelente profissional, muito competente, um exemplo para todos, avançou, determinada.

Também desconheço porque é que às seis da tarde, a caminho de casa, se atirou para a linha do comboio, ficando trucidada, despedaçada, desfeita.

Plantou-se a laranjeira, ficou o silêncio.

Quando saí de casa naquele dia, tudo corria mal.

O amor já não existia, cumpria-se o ritual dos sons, do prazer, só me apetecia dizer adeus, até um dia, numa esquina qualquer.

O Rodrigo dormia, o António estava inquieto. É uma criança cheia de vida, que absorve, que obriga a cuidados. Tem quatro anos.

Um beijo na testa, até logo!

Porque é que me sinto assim, tão longe, tão perto, tão distante, tão só?

Os habituais do comboio, sempre os mesmos, a dormir, a ler o jornal, a olhar para o infinito, tentando, ou talvez não, compreender o dia que começou há pouco, sem grandes preocupações.

Eu quero que o dia se prolongue até amanhã à mesma hora, no mesmo sítio, sem ter de chegar, arrumar, fazer, fingir, aturar e cumprir.

No mesmo café:

- Bom dia, hoje está de chuva!

- Bom dia, uma italiana se faz o favor. E sempre aquele hábito de pagar antes de ser servida.

As cartas já estavam escritas, o que é que me podia fazer parar?

“Querido Rodrigo

Amanhã já cá não estarei.

Sei que vais sentir saudades minhas e que vais olhar para o espelho e perguntar, porquê?

Não fiques assim, eu, pura e simplesmente parti. Fui à procura daquilo, que aqui, por mais voltas que dê, não consigo encontrar.

A culpa (se é que existe) não é tua, é minha, só minha.

Não me aches cobarde, até porque, com conversa, se calhar tudo se resolvia, com remédios, doutores.

Fui egoísta, eu sei, mas tenho ainda tanto para procurar.

Protege o António, conta-lhe que a mãe partiu, foi à procura, e que esteja onde estiver, pensará sempre nele, e que quando ele precisar, eu lá estarei a seu lado.

Adeus Rodrigo, desculpa ser assim, mas não encontrei outro caminho.

Beijos.

Parece-me que a carta está bem, é bonita e ele irá compreender, mas aturar estes doutores, engenheiros, arquitectos é que vai ser complicado, pelo menos até à altura certa de partir.

Perfumes diversos, fatos e vestidos, uma gravata nova.

- Hoje tenho muito que fazer. - Marque um almoço com o Sr. Dr. . - Ligue-me para casa . – Se ... telefonar diga que não estou. - Então já tirou as fotocópias?

Ligo o telefone, desligo. Falam-me da televisão de ontem, do que se passou, mas não me lembro do dia de ontem, não quero saber, só que o trabalho aumenta e que a minha colega hoje não apareceu.

- Muito bem, hoje está com um óptimo aspecto.

- Obrigado Sr. Dr. , às vezes é só preciso dormir, descansar.

- Olhe, não se esqueça de marcar a minha reunião com o Sr. Presidente.

- Com certeza!

As horas começam a passar, não me apetece almoçar, vou até lá fora.

O Sol aparecia por entre aquelas nuvens que me esperavam.

- Deus, se existes ajuda-me, faz com que tudo fique perfeito, que a seguir ao dia, venha a noite. Eu não acredito especialmente em ti, mas se todos te pedem, porque é que não hei-de experimentar ?

Mais telefones, fotocópias, café, trabalho, mais ...

Estava na hora, eu sabia, um adeus até mais não ver. Estava na hora e eu sabia-o como mais ninguém.

Não sentia remorsos, pena, culpa. Acho que não sentia nada.

“António, meu querido filho.

Só tu é que vais compreender a mãe, quando leres esta carta.

A mãe adora-te, mas vai-se embora.

Vai à procura do sonho e, se não o encontrar, vai tentar outro e outro, e um dia vai encontrá-lo e ser feliz.

Tenta compreender a mãe, porque todos têm direito a serem livres de decidir bem ou mal.

Se calhar sempre mal, mas, uma vez tudo irá correr bem, vamos ser nós, vamos ser felizes.

A mãe estará sempre a teu lado, quando rires, chorares, amares, com problemas, sem problemas, a mãe estará sempre lá, orgulhosa, contente por ti.

Adeus filho.”

O comboio tinha chegado à estação, as pessoas empurravam-se à saída, estava tudo com pressa em chegar, eu, com pressa em partir.

Atravessei a linha do comboio, olhei para o céu e já não vi o Sol, porque só as nuvens é que lá estavam.

Como é que será? Será imediato, vou sentir alguma coisa, não vou conseguir?

Como é que será depois, o nada, o tudo, o sonho?

O comboio ainda vinha longe, mas já o ouvia a apitar, porque era rápido.

Acho que não estou a pensar em nada, as pessoas do outro lado da linha não estão a olhar para mim, é só mais uns segundos, que me parecem a vida.

Não pensei em mais nada quando já estava na linha do comboio, só ouvi o apito.

Não estava de frente para ele, mas sim de lado, e, só senti um toque leve, furioso, não senti dor.

Porque que é que o meu coração se sentia tão bem?

(...)

Acordei novamente, e entre médicos e enfermeiros, o quarto parecia uma reunião hospitalar, falavam, falavam.

“- Acho que já não podemos fazer nada, apenas esperar que reaja. Acordou agora, mas vai regressar ao estado de coma, as hemorragias internas não param, ouvia lá ao longe as palavras do médico. Continuava era com muita sede, mas estava quase a saber o que se tinha passado. Já não me importava nada, continuava a não conseguir sentir o corpo, só queria saber mesmo o que aconteceu.

Senti me a desfalecer, a ver com os olhos fechados...

Tinha acabado de chegar à estação dos comboios depois de um dia de trabalho na Repartição. Estava cansado, e o comboio já se via lá ao longe.

- Vai dar entrada na linha número dois o comboio com destino.. ouvia se pelos microfones.

Olhei em frente e foi quando vi. Uma rapariga no meio da linha do comboio, parada, como que a sorrir.

- Senhora, saia daí, o comboio vem na sua direcção, saia daí. gritei.

Ela não se mexeu, eu gritei-lhe outra vez e quando me virei, o comboio já estava muito, muito perto, à minha volta ninguém, só as pessoas lá ao longe, que gostavam de entrar nas primeiras carruagens.

Só havia uma hipótese, tentar saltar e empurrá-la, assim decidi. Larguei a mala, e comecei a correr na sua direcção, ela nem para mim olhava, era como se estivesse anestesiada, inerte, continuei a gritar, e a esbracejar que nem um doido, o apito do comboio estava cada vez mais perto.

Saltei em sua direcção. Foi aí que senti o embate do comboio, e então voei, sim, fui pelos ares na direcção a um muro. No chão, abri os olhos, e não sentia nada, apenas um estranho chilrear à minha volta, eram as andorinhas que picavam uma planta verde viçosa que cheirava mal. Acho que desmaiei.

Abri os olhos devagar, no quarto não estava ninguém, olhei em frente e vi a cruz pregada naquela parede branca, da janela vinha a escuridão, já devia ser noite.

Continuo cheio de sede.

- Para onde vais nunca irás ter sede, ouvi ao longe uma voz que soava do meio de uma luz clara, muito clara, que me encandeava. Estava na altura de a seguir. Fechei os olhos, fechei-os sabendo que nunca mais os iria abrir. Ouvia cada vez mais longe o som continuo da máquina que estava no quarto, e à qual o meu corpo ainda continuava ligado.

(.)

- Nunca pensei que isto saísse à primeira, excelente.

- Como tudo o que escreves, sai à primeira. É para não releres, aperfeiçoar a escrita, os diálogos, o Dom.

A luz e a voz tinham regressado. Virou se para a janela, era de lá que o som e luz vinham.

- A solidão que procuras é uma lembrança de momentos, alturas em que tu estavas de bem com a tua vida, não direi felicidade, direi apenas alegria.

- Sim, alegria, tens razão. Alegria de momento, do que estava a assistir, a pensar, e que queria que não acabasse, que não queria partilhar com mais ninguém.

- Mas depois fugias, como se só o momento contasse e como se não o quisesses prolongar indefinidamente, como se te tocasse de tal maneira que te querias longe dali, como se esse teu Eu entrasse em conflito com o outro teu Eu e vencesse essa guerra entre o ir e o ficar, entre a partilha e o egoísmo.

- E por norma eu vou.

- Sim, mas ficas sempre, sais, mas ficas de fora. Sim, é isso, vias e continuavas a participar, mas vendo te lá como se fosse uma câmara a filmar. Como essa colecção de contos, de histórias guardados dentro dessa gaveta, que começam com um soneto e uma espécie de diário com dias e meses que nada significam, que não te dizem nada, mesmo nada.

- É difícil de explicar como tudo se passa, o querer ficar e o querer ir, como se fosse uma solução para o querer. Sabes, quero ser feliz, e para mim a felicidade passa por coisas simples, mas têm de estar todas juntas. Essa relação, dinamismo do todo junto é a minha felicidade, se falha algum dos elementos, apenas um que seja, nada feito.

- Sim, se te falta um lá vais tu para esses pensamentos negativos, onde as personagens dos teus contos morrem antes de serem inventadas. A brisa em vez de entrar, sai, acho que queres de mais, queres tudo. O Universo não é perfeito, é apenas um conjunto de forças que se equilibram, se atraem, ou afastam para serem atraídas e atraírem outras, mas que se equilibram. O teu egoísmo faz com que o Dom que tens, se transforme num mal para outros, mesmo que não leiam, ou desconheçam a tua existência, a vida vai ser influenciada pelo que escreves nesses papéis, existe então um desequilibro. Um mau Dom, egoísta.

- Por vezes não consigo entender-me . Tenho a certeza de que me conheço, de que sou capaz de reagir, de estar bem comigo, gostar de mim, ser vaidoso e, quando aí chego, detesto-me, volto ao principio sempre mais fundo, intenso, escuro.

- Agora, vais pensar que vou dizer, se não gostas de ti, então como vais gostar dos outros?, mas não, tu não gostas dos outros, tens a mania que és o maior, embora não o digas abertamente, esqueces que não és o único e os outros, os que tu te referes com desdém, são melhores que tu, mais puros e honestos, e isso para ti é um drama, pensas que querem usurpar o teu canto, e mesmo assim continuas a pensar que és o maior.

- Nalgumas coisas sou o melhor, na escrita, sou o melhor.

- O melhor só para ti, mesmo nessas coisas em que te julgas o melhor, não as defendes, não as comparas com outros que também escrevem e têm os textos escondidos, ninguém te conhece. O problema é que esse teu Dom, por ser feito de raiva e de egoísmo influencia outros que nada têm a ver com os teus estados de espírito, nem com o pessimismo. Acabaste de escrever, acabaste de influenciar algumas vidas, pela negativa claro, se fosse a ti, ia para o trabalho e por uns tempos não pensava nessa tua escrita negativa e egoísta, parava com esses contos sórdidos de morte e suicídio, talvez melhores na apreciação que tens dos outros, talvez daqui a uns tempos o teu Dom se torne um bom Dom. Agora vou me embora, estou saturado de ti.

- Mas espera....! a luz tinha desaparecido, uma leve brisa entrava pela janela.

Olhou em frente, arrumou a secretária, os contos na gaveta que fechou com violência. O botão da camisa apertado, o nó da gravata bem junto ao colarinho, vestiu o casaco e saiu do quarto.

- Mãe, afinal vou trabalhar, até logo, disse enquanto fechava a porta da rua e saía de casa.

(.)