Um dia adiado

O café não estava com o sabor de todos os dias. Ela sorriu por dentro, pois já sabia: era prenúncio do que se avizinhava. Esmerou-se ao espelho um tanto mais que o normal, usou o batom "Pêssego Perolado" (o das ocasiões especiais) e o perfume francês. Merecia.

O ônibus demorou o mesmo tempo de sempre, mas para ela havia chegado instantaneamente. Mergulhada em seus pensamentos, tentando imaginar o que estaria por vir, não sentiu o tempo passar. Como sempre não havia lugar para se sentar, mas em alguns minutos ela desceu na estação do metrô.

Assim que entrou no trem e aquele homem alto de gravata a olhou, ela entendeu: era isso! O encontro de sua vida, casual e inesperado, que se daria em circunstâncias comuns – exatamente como a cartomante lhe dissera certa vez. Ficou imaginando como sorrir sem se oferecer, como começaria a conversa, como lhe passaria seu telefone... mas, enquanto imaginava cenas esforçando-se em parecer natural, ele desceu na Sé cheio de pressa e se perdeu na multidão.

Ela ficou confusa, mas nem teve tempo de pensar sobre o acontecido, pois a estação Liberdade se anunciou em seguida. Desceu praticamente empurrada e seguiu pela avenida paramentada com suas lanternas costumeiras. Chegou ao escritório, cumprimentou seus colegas, sentou-se à sua mesa e começou seu trabalho de sempre. Quando o telefone tocou, ela olhou fixamente para ele antes de atender: sim! O resultado do concurso! Só podia ser, já que ligações externas eram raras para ela. Sentiu um breve frio no estômago antes de dizer alô, mas quando reconheceu a voz da mãe, a sensação mudou. Apreensiva com uma possibilidade especialmente ruim, quase gritou: aconteceu algo, mãe? Mãe, você está bem?

Estava. Era para avisar que sábado o tio Edu fazia aniversário, e pediu-lhe desculpas por ligar no telefone do trabalho, mas seu celular estava desligado. É mesmo, pensou. Tão distraída esteve até àquela hora da manhã que se esqueceu desse detalhe. Mais que depressa, sacou o telefone da bolsa e ligou-o, para imediatamente notar que havia um recado na caixa postal. Um recado... de Diogo! Era esse o brilho do dia especial! Finalmente, Diogo havia entendido a bobagem que fizera. Diogo pedia-lhe desculpas, Diogo queria voltar, Diogo a amava...

Não. Telemarketing.

Almoçou sozinha no lugar de sempre. Comeu a comida de sempre. Tomou o suco de sempre, mas comprou um chocolate para sair da mesmice. Enquanto o saboreava, avistou uma lotérica. Entrou, procurando na bolsa o bilhete que havia comprado dois dias antes. Conferiu, um tanto nervosa, e constatou: o bilhete estava premiado. Sorriu, olhos brilhando. Ah! Tudo justificado. Centena!! Vibrou um tanto antes de perceber que havia conferido o resultado do jogo da semana anterior. Neste, nada.

Amassou o bilhete e atirou-o ao cesto; voltou ao escritório e a tarde transcorreu normal e monótona. Depois o metrô, o ônibus, a caminhada a pé do ponto à casa, tudo absolutamente sem novidades. Ao colocar a chave na fechadura, o celular tocou.

Atendeu, apreensiva, sem olhar o número. O concurso? Finalmente aquela vaga na multinacional, para a qual havia deixado seu currículo há meses? O homem do metrô, que, sabe-se lá como, havia descoberto seu telefone? Ou... Diogo? Deus do céu, seria Diogo??

Angelina, a amiga. Que Ronaldo mandara email, imagina. Que Fernanda fora demitida. Que Luzia havia engravidado de Pepe. Que Tina descobrira uma loja de bolsas fan-tás-ti-ca, super barata, iriam quando saísse o pagamento, o que achava?

Banho, jantar. Nada de novo aconteceu – nem mesmo na novela. Creme nas mãos, soquinhos delicados no travesseiro, uma prece rápida. Deitou-se frustrada, mas no minuto seguinte teve a certeza: um dia... não, um dia não: o dia de amanhã! ah, amanhã sim, amanhã seria um dia muito, muito especial!

Adormeceu com um sorriso que só os que tem fé conhecem.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Um Dia"

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