A MULHER LOURA

A MULHER LOURA

Era década de setenta do século vinte da Era Cristã (Não sei quanto vai durar este texto. Tenho de datá-lo precisamente para as gerações posteriores. Pretensão? Pior do que a personagem título jamais). Estudava numa escola enorme com quatorze portões. Estávamos em plena Ditadura Militar no Brasil. Os tempos eram outros. Muita rigidez se comparado aos padrões dessa primeira década do século vinte e um. Não podíamos fazer quase nada. A não ser “Sim, professora!”, “Entendi, professora!” e outros termos de quem tem belíssima postura submissa e cordata. Tudo era proibido. Menos obedecer aos mais velhos, amar a pátria... Não bastasse a tensão a que éramos submetidos, criavam-se fantasmas a todo instante. Um desses era a Mulher Loura. Uma mãe sofrida pela perda da filha assassinada dentro de uma escola. Ela se escondia nos banheiros e matava os alunos quando iam satisfazer suas necessidades.

Que coisa incrível a loura pedindo as crianças para retirarem algodões do seu nariz e da sua boca. Como alguém consegue falar com a boca cheia de algodão não sei. Só sei que o fantasma pedia isso aos incautos. Nunca entendi porque o próprio fantasma não arrancava os algodões e pronto. Mania de gente do outro mundo pedir favores! Já não chega ficar perambulando e ainda tem de dar trabalho para o aterrorizado. Povinho mais imprestável! Enfim. Não é o único caso de favores solicitados ou ordens ditadas por seres fantásticos. O mais intelectual dos monstros, a Esfinge, perguntava o nome do animal, cujo andar era sobre quatro pernas pela manhã, sobre duas à tarde e sobre três à noite. O único a responder corretamente foi Édipo na tragédia homônima de Sófocles. Nem mesmo Jesus Cristo escapou dessa mania nos contos populares. Pois puseram na boca do Nazareno o desplante de pedir água a dois animais. Segundo o relato, o gato deu urina a Nosso Senhor e o cachorro deu água. Por isso o cachorro foi abençoado e o gato amaldiçoado. Natural então a personagem título esperar as crianças (sempre tão puras, prestativas e boazinhas nas histórias de fantasma) atenderem ao seu pedido para atacá-las e matá-las asfixiadas.

Já viram que sou bastante crítico e cético. Isso vem de muito atrás. Fui daqueles meninos chatos que não acreditavam em Papai Noel e nem em Bicho Papão, embora lesse e gostasse muito de contos de fadas, histórias do folclore e aventuras de super-herois. Assistia também a desenhos animados. Só que separava realidade ficcional de realidade não ficcional, embora não soubesse o significado de ficção e imaturo nem sabia da realidade. Pois foi esse menino de olhos grandes e cabelos quase pretos, magrinho de dar dó o herói a afugentar o fantasma da Mulher Loura.

Nunca entendi como alguém poderia estar ao mesmo tempo em dois lugares. Só Deus é capaz disso. Então combinei com minha irmã o seguinte: Ela pediria a professora dela para ir ao banheiro. Eu faria o mesmo. Encontramo-nos na varanda de acesso aos banheiros de cerâmica vermelha. Ela entrou no da direita, que era das meninas e eu no da esquerda, evidentemente o dos meninos. Ambos não precisavam ir ao sanitário e nem lavar as mãos. Nosso negócio era desvendar o mistério e liberar todos os colegas para aliviarem suas bexigas. Para falar a verdade já não acreditava em bruxas, mas que elas existiam, existiam. Todo cuidado era pouco. Meus ouvidos dilataram-se para ouvir os gritos da minha irmã, mas eles não ecoaram. Chutava as portas dos reservados de longe sempre tendo a parede por trás e virando o rosto para a direita e para a esquerda. Ninguém me pediu para tirar nenhum algodão de boca babada ou de nariz melequento e se pedisse não o faria. Saímos os dois quase ao mesmo tempo dos banheiros e contamos a todos os colegas que a Mulher Loura não existia. Era lenda. Lembro-me das palavras da minha avó Laura quando contei o caso. “Você não devia fazer isso! Não se brinca com essas coisas...” Respondi que não estava brincando. Estava provando que a Mulher Loura não existia. Imagine a indignação da matriarca. Achava horrível essa minha mania de não acreditar nas crendices. “As crianças de hoje não aceitam as palavras dos mais velhos”. “Aceito sim, vó. Mas quem tinha medo da Mulher Loura eram meus colegas. As professoras diziam que ela não existia e levava meus colegas ao banheiro. Eram eles que tinham medo dela porque não paravam para pensar. Vó, como essa mulher pode estar lá no meu colégio e no colégio de Quiquinho no Rio e no Barenco Coelho e no Ernani Faria?...” Ela ficava indócil, mas me amava muito. “No meu tempo quando um adulto falava, as crianças acreditavam”. No tempo dessa história as crianças e os adultos acreditavam nos boatos e nas lendas que lhes conviessem ou de acordo com seus medos interiores como até hoje o fazem.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 05/06/2010
Código do texto: T2302110
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