A escritora, o pintor e a bailarina.

“A névoa favorece o pensar”

Intrigada com a frase de Umberto Eco, a escritora busca uma galeria de arte na madrugada do inverno curitibano, quando a neblina propicia encontros imaginários.

Estava a procurar a bailarina que, ao som do tango moderno de Piazzolla, encontra-se com o pintor.

Uma única mulher, cuja pele é de um branco impossível e o cabelo de um negro indecifrável, imperdoavelmente vestida de renda preta, observa o acervo inexistente.

A escritora investiga os pensamentos desta mulher que lucubram sobre a relação entre a arte, o tempo, o espaço, e direcionam perguntas a si mesma: “Desde quando estou aqui? Perdida entre estes quadros? Todos dispostos de forma harmoniosa nesta galeria imensa e fria”; passam a imaginar o momento em que foram criados: “um coração pulsante, mãos quem sabe trêmulas, talvez cinzeiros abarrotados, e as roupas respingadas de tintas”; e o contrasta com o que vê: “agora aqui, estáticos”.

Sim, é a bailarina que, pensando sobre a dança e sua intervenção no espaço, inesperadamente começa a rodopiar deslocando-se de um extremo a outro da imensa galeria. A escritora a reprime, detendo-a diante do relógio derretido de Salvador Dali. Mas a bailarina não se contém e saltitando grita:

“Danço para intervir no espaço. Modificar o momento. Olhar estes quadros modifica o momento só de meu olhar, por que eles continuam ali: imóveis”.

A bailarina dança freneticamente como se estivesse sendo regida por uma música de intenso ritmo e, enquanto esta coreografia alucinante a mobiliza, seu olhar passeia pelos quadros expostos na galeria confundindo as formas e cores contidas nas obras, devido à velocidade com que seu corpo se movimenta.

A escritora parece perder o controle e fica em dúvida se seria conveniente fazer entrar em cena o pintor e o tango de Piazzolla, ou...Talvez um imenso espelho pudesse ser colocado no percurso da dança e...A bailarina, ao se deparar com sua imagem refletida no espelho, imediatamente fica imóvel: seus olhos observam seus cabelos que lhe parecem desbotados e maltratados. Prefere usar jeans e camiseta e atira para longe o vestido de renda.

O pintor observa-a calado, e aguarda ser introduzido na história. Está preparado para, a qualquer momento, oferecer à bailarina a música de Astor Piazzolla, convida-la para dançar, brindar ao vinho: Salut Marie, e proceder a todas as outras cenas de seu script. No entanto, pressente que carecerá de muita paciência, já que a escritora vacila diante da rebeldia de sua personagem.

Paciência, contudo, não é um adjetivo que caia bem a um pintor como ele, adepto da pintura gestual que pressupõe energia e impulsividade. Decide desconsiderar as preliminares de seu encontro com a bailarina, o tango e o brinde, e ir direto ao momento em que fará uso do canivete. Sua urgência em entrar em ação o faz aproximar-se abruptamente da dançarina, que, perplexa, lhe dirige olhares interrogativos.

Mas é ele quem verbaliza todas as perguntas que deveriam ser feitas durante a cena da dança: quem é você? O que faz aqui? De onde vem?

Inesperadamente ela lhe responde com todas as letras do texto que a escritora lhe havia preparado: – Há muito tempo não sei de onde venho. Sei que estou aqui neste momento. Quando não mais estiver, não saberei que estive.

O homem, surpreso:- Você se parece comigo. Somos quase iguais e também muito diferentes.

M. – Agora posso te ver melhor. Existe mesmo alguma semelhança. Nossos cabelos, o mesmo tom.

O homem toca suavemente os cabelos da mulher e acaricia por um instante, em seguida tira do bolso um canivete e corta uma grande mecha. Mais uma, e ainda outra.

M. - Para que isto?

H.- Te aborreci?

M. – Não, apenas me deixou curiosa.

H. – Por que não fica curiosa em saber onde estava?

M. – O que veio antes já passou, acabou. A curiosidade existe em função do que vem depois. O que vai fazer com meus cabelos?

H.- Enfeitar um destes quadros, o que você acha?

M.- Acho que você está me zombando.

O pintor, impassível, continua em sua missão até que não reste uma única mecha de cabelo. Diante de um esboço de reação da dançarina, a silencia com um jato de spray, a transforma em uma escultura e a posiciona diante do tempo derretido.

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A escritora, de longe, o observa, e aguarda ser introduzida na história.

Rocio Novaes
Enviado por Rocio Novaes em 08/06/2005
Reeditado em 29/09/2007
Código do texto: T23210