Um lugar*

Quando finalmente conseguimos atravessar o denso nevoeiro, nos deparamos com uma faixa de terra bastante arenosa e clara. Resolvemos, ou melhor, fomos obrigados a aterrissar. Que sorte! Se prosseguíssemos o vôo, terminaríamos esfacelados ao colidirmos com a enorme parede negro-esverdeada que veríamos mais tarde.

Refeitos do pavor de viajarmos rumo ao nada num verdadeiro mar suspenso, frio e branco, descemos do nosso inseto motorizado. Tudo parecia enorme e ameaçador. Qual solução restava a minúsculas criaturas curiosas que não fosse andar de um lado ao outro como formigas tontas sobre farelos? Assim estávamos nós sobre aquele areal úmido e pedregoso. Andamos por longas horas e não chegamos a lugar algum. Tentamos voltar ao nosso companheiro de tantas viagens. Pobre e velho amigo de longos anos... Há tanto tempo conosco... Sempre suportando o peso e a leveza, a brutalidade e a delicadeza de uma triste, mas simpática equipe de loucos fraternos.

Procurávamos o caminho de volta com a exaustão por nos vencer. A cada passo, uma conquista. Cada retomada de fôlego, uma esperança de estarmos vivos. A atmosfera daquele lugar entrava em mutação: os tons ásperos de marfim se desfaziam e se arremetiam contra nós em forma de minúsculas agulhas, agitadas por um invisível chicote gelado. A essa altura já não mais nos sentíamos ofuscados pela claridade, mergulhados numa nuance nem azul, nem cinza e que gradativamente se uniformizava e começava a ser timidamente iluminada por tons de prata cintilante. O medo e o silêncio nos rondavam. O frio insistia. A vontade e a amizade nos amparavam e a esperança persistia. Os desfalecimentos eram quase certos não fossem as escoras solidárias de ombros ainda resistentes. As pernas cambaleavam e cabeças se desviavam da enorme foice que sobrevoava. Esse tormento se estendeu por eternas horas do nada ao vazio. Esse vazio que sentimos quando procuramos algo que nos preencha não era o que nos atormentava, mas sim a necessidade de se sentir no interior de alguém. Estávamos perdidos e isso nos desesperava. O pânico se instalava e a quase certeza de não estarmos mais ali aumentava.

Rastejávamos como animais a procura de alguma migalha. Queríamos voltar ao abrigo e não o encontrávamos. Numa atitude alucinada esmurramos o chão e gritamos como se estivéssemos a dizer: nos recusamos a deixar de existir, queremos ser e estar não importa o momento. Parece que a nossa atitude mostrou o quanto exigíamos ser respeitados e como num milagre a areia desce em cascata de sobre o que seria, naquela noite, a nossa casa.

Entramos no lugar de onde saímos e ali passamos o resto da madrugada inertes.

A luz voltou. Os corpos mastigados tentavam se esticar em decrépitas espreguiçadas. Todas as juntas estalavam. Andar e rastejar resumiam-se em praticamente o mesmo movimento. O andar de reptílico a claudicante estendeu-se até a origem do desespero: a parede maciça de basalto coberta de musgos. Era intransponível. Sua altura tão grande ultrapassava as nuvens, por sinal incrivelmente brancas e densas como uma cobertura de flocos compactos do mais puro algodão. Olhávamos para o paredão a nossa frente. Atrás não se via nada. Ao nosso braço direito nada havia. Ao esquerdo o mesmo se dava. Estávamos numa ilha cercada de nada por todos os lados. Subir. Não havia outro jeito. Subir... subir... subir. Por entre frestas púnhamos nossos pés. Agarrávamo-nos em qualquer reentrância que encontrássemos. Nessa escala deixávamos tingido e lavado o musgo. Ele a nos atrapalhar sempre. Conforme subíamos o cansaço crescia. Não mais possível voltar era. O ar começava a faltar e a vida parecia ir embora. Dessa vez não se via nada também abaixo. A medida que subíamos descobríamos estarmos numa ilha ascendente, numa bolha de horrores assombrada pelo vazio. As nuvens sempre ao nosso redor menos a nossa frente (a não ser que ficássemos de costas para o paredão). O desespero não mais existia. O sentimento não mais existia. A dor não mais existia. O barulho não mais existia. O silêncio não mais existia. O nada sentido com ardor de feridas abertas num zumbido mudo existia. O oxigênio fugia.

O nada agora é branco a toda volta. A ascensão continua. Branco descia para o pescoço. As cabeças como flores estranhas num campo de lírios. As flores estranhas vão crescendo. Os caules cada vez mais visíveis. Os galhos projetam-se para frente. O caule bifurca-se para baixo e vem trazendo as duas raízes. Uma a uma as flores estranhas arrancam-se do campo. Vão para um canteiro suspenso de basalto onde suas raízes andam sem fincarem-se. Era o platô. Olharam para trás e virão o mar branco. Circundaram o platô. Isso feito seria o mesmo que circundar a serra. Mais subida ou o afogamento branco. Subiram dessa vez de gatinhas e sem musgos. Chegaram ao inexplicável.

Caídos de joelhos como a suplicar e a agradecer ao mesmo tempo numa humildade imposta pelo esforço, foram imediatamente recebidos por mãos fortes e saudáveis incrivelmente delicadas. Erguido foram em seus corpos esquálidos. A frente de quem os via nessa hora, pareciam gravetos, móbiles velhos retirados de um sótão. Tratava-se de homens e mulheres gigantescos e hercúleos. O mais alto dos sobreviventes não chegava a topar com o mais baixo dessa nova gente sequer pelo ombros. Quanto a compleição física asseguro outra discrepância. Mesmo no auge de sua forma física, o mais musculoso do grupo ainda seria praticamente dois terços do mais magro entre a nova gente. Nosso espanto era inevitável. Seríamos nós humanos ou eles seriam outra espécie? Inacreditavelmente não sentimos medo deles. E eles inacreditavelmente não sentiam piedade de nós. Falavam pouquíssimo e em uma língua de sonoridade agradabilíssima, mas incompreensível. Quanto a nós, falávamos na nossa língua e eles atendiam às nossas necessidades. Como quem toca em plumas, acomodaram-nos em veículos por nós nunca vistos. Como não possuíamos mais relógios e não sabíamos como medir o tempo, só sabíamos estar nos sentindo bem. Gradativamente recobrávamos o tônus e nossa pele e pelos voltavam e ter texturas saudáveis. Sentíamo-nos muito bem. Embora o susto não estive longe de acercar-nos.

Estávamos sós. Era o que pensávamos. Saímos, pois a explorar ao redor. Não descobríamos viva alma. Onde estariam todos? Que roupas seriam estas em nós? Olhamos um espelho e nos reconhecemos estranhos a nós mesmos. A exclamação saiu em uníssono. Meu Deus! E uma resposta foi ouvida por todos em nossa própria língua. A voz dizia: “Por que estão surpresos?” Esse foi nosso susto. Como entendemos o que dizia se não falávamos a nova língua?

Perguntamos quem falava e um casal veio ao nosso encontro. Estranhamos a aparência de ambos. Pareciam menores e mais fracos que os outros, porém um pouco maiores e mais fortes do que nós. Começaram por nos cumprimentar na nossa língua. Cada um, perplexo, respondeu a saudação. Não entendíamos entender. O silêncio se fez não sabemos por quanto tempo até que olhamos para eles e para nós mesmos e vimos que estávamos igualmente fortes e da mesma estatura. Seguimos atrás do casal. Rapidamente formamos um só grupo. Depois disso o grupo cresceu em número cada vez mais. Todos do mesmo porte físico que nós e tão forte como. Estávamos conversando todos ao mesmo tempo e sem nos interrompermos. Todos entendiam a todos ao mesmo tempo não importando a expressão. Vimos crianças. Quando falavam viravam adultos. Víamos homens e mulheres. Quando falavam a distinção entre eles se desfazia.

O tempo não mais era contado e nossa memória não mais nos atormentava. Sentíamo-nos muito bem e integrados. Até o dia da descoberta estarrecedora. Procurei por espelhos tradicionais e não os encontrei. Todos os espelhos desse lugar eram perfeitos, posto que se moviam e falavam verdadeiramente de cada um a cada um simultaneamente. Caminhei até uma porção de água. Mirei e vi minha imagem. Senti-me extremamente bem e envaidecido. Nunca estivera tão belo. Levei a água contida numa bandeja de prata. Fui para um canto onde o eco de minha voz solitária foi por mim ouvido. Nunca ouvi melhor tenor. Procurei por uma pedra e não a achei. Caminhei e encontrei um pilar de rocha sólida sustentando um edifício. Empurrei-o com uma das mãos e fiz o edifício cambalear. Imediatamente sustive o peso do prédio com as mãos apoiado no que restou do pilar. Meus pés falsearam e, para que o edifício não me esmagasse, o arremessei-o longe. Nesse momento, minhas roupas ficaram tão largas a ponto de caírem sozinhas no chão numa exposição de minha nudez. Tentei me cobrir, mas as calças eram maiores do que meu corpo inteiro. Como eram pesadas. As roupas cresciam assustadoramente. Resolvi me abrigar no bolso da camisa, do lado esquerdo de onde tocaria meu peito se ela ainda pudesse vestir. Ali senti frio e calor ao mesmo tempo. Atravessei a trama do tecido e invisível fui levado pelo vento antes nunca por mim sentido. Atravessei o mar de nuvens e a ilha do nada. Cheguei exausto e sozinho e com vestido com farrapos que apanhava no vento a um lugar de iguais a mim.

Contei do acontecido e ninguém me reconhecia. Andei vagando em vão e ninguém me via. Tentei voltar ao lindo local de onde encolhi. Não sabia o caminho. O avião desaparecera. Nenhum transporte para lá existia. Restou-me apenas a memória da cidade onde vivi por quanto tempo não sei. Só sei que foi muito tempo, pois já não reconheço mais nada em lugar nenhum. Tudo está mudado e eu mais estranho ainda. Restou-me registrar o acontecido conosco. O nome de cada um deles não o sei eu nem tampouco o meu. O nome da cidade não o sei eu. O caminho não o sei. O preço da viagem sei e não consigo juntar o suficiente para pagar. Sei melhor ainda o preço da volta. Esse foi gratuito.

Niterói, 1998 (início) e São Gonçalo, 26 de novembro de 2009 (conclusão)

* Este texto surgiu para cumprir uma tarefa do curso de pós-graduação, mas que nunca foi executada até o final. Encontrei o começo do texto entre os papéis perdidos em minha casa durante a arrumação de fim de ano. Concluí o conto e agora o publiquei no Escritartes. Não sei sinceramente se o final na época seria esse. Tentei ser o mais fiel a mim mesmo possível e produzi o conto a quatro mãos comigo mesmo.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 17/06/2010
Código do texto: T2325882
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