Numa madrugada de chuva

Agora que ouço a chuva cair depois de um dia tórrido de mais de trinta e quatro graus com sensação térmica de mais de quarenta, sinto-me melhor. Abri a porta e a janela da sala. Sentei-me no canto esquerdo do sofá rente à janela escancarada, de frente para porta que dá para um pequeno canteiro com buganvílias para poder sentir o refrigério do vento úmido e escrever (que nenhum fisioterapeuta me esteja lendo) com o computador portátil nas pernas e diante da televisão (sabiamente mantida desligada) e do telefone graças a Deus silencioso (que nenhum amigo ou operador de telemarketing me esteja lendo).

Parece que preciso de pretexto para escrever. Na realidade, basta sentar e começar a teclar. Mas confesso que escrever numa noite de chuva é algo com um sabor e um aroma indescritíveis. Sinto a leveza da água, a firmeza da terra e o efêmero do ar. Não que o Sol e o calor não tenham lá seus encantos. A chuva lembra minha infância quando éramos poucos aqui no bairro do Porto do Rosa. Quando o céu resolvia desabar, parecia o fim do mundo. Os raios rasgando o céu eram uma catedral estilhaçada. Os trovões, meu Deus! Eram a certeza dos vidros todos no chão e das torres desmoronando-se. Um espetáculo fascinante. Se fosse noite, então, a queda de energia elétrica era quase certa. “É só aqui ou é geral?” Essa pergunta era recorrente e muito importante. De acordo com a resposta nossa expectativa poderia ser maior ou menor. Quando a queda de energia era geral, o chamado “black-out”, ficávamos mais tranqüilos. A companhia elétrica da minha região rapidamente procederia ao conserto. Caso fosse um problema num dos transformadores (minha rua era servida por dois), com certeza demoraríamos mais de vinte e quatro horas sem luz. Não tínhamos telefone para ligar e a Internet ainda não havia chegado aos lares dos meros mortais de nenhum lugar do mundo (estou falando das décadas de setenta e de oitenta). Como reclamar? Só indo a padaria no dia seguinte e telefonando de lá num aparelho público de fichas (os cartões ainda não haviam sido inventados). Enquanto isso era só ficar olhando a chuva cair se vovó Laura não estivesse nos visitando. Ela achava falta de respeito ficar olhando a tempestade. Tínhamos de cobrir os espelhos para os relâmpagos não entrarem em casa. Não podíamos comer porque os talheres eram de aço e atrairiam o relâmpago para dentro de casa, mas também não poderíamos comer biscoitos ou frutas com as mãos porque era falta de respeito. Tomar banho atrairia o relâmpago. Conversar ou brincar era falta de respeito. Chorar ou reclamar também era falta de respeito. Só podíamos dormir ou ficarmos quietinhos sentados em oração porque Papai do Céu estava brigando. Tenho enorme saudade de minha avó. Sorte a dela eu a amar muito, muito mesmo e minha mãe respeitar a sogra. Era insuportável ter de viver sob esse regime quando do temporal. Ela não admitia que disséssemos, inclusive, do seu medo. Ela dizia ter respeito. Não poderíamos ter nos sentir ameaçados porque era de Deus toda aquela manifestação. Ele estava brigando, mas não poderíamos ter medo. Tínhamos de respeitar o temporal. Eu (com meu espírito científico de menino) dizia: “Vó, o temporal não tem vida. Papai me disse para eu ficar calmo porque era só eletricidade entre as nuvens. Não entendo como eu, que não mato nenhum bicho, não arranco nenhuma planta do chão, não respondo mal aos mais velhos, não brigo com os colegas, faço as tarefas de casa, sigo o catecismo etc... etc..., sou chamado de abusado porque digo que o temporal não é um ser vivo e que não precisa ser respeitado. Tenho é de ter cuidado para não morrer com a queda de um raio na minha cabeça ou ser arrastado pelas águas ou pelo vento. Isso sim. Mas meus colegas, só porque vestem logo uma camisa e correm pra baixo da cama antes mesmo da chuva começar, respeitam o temporal, esse ser sem vida? Por isso podem fazer armadilha para prender passarinhos, soltar cafifa entre os fios elétricos, xingar os outros e desrespeitar aos mais velhos e nem precisam ir à igreja. Tudo isso está perdoado só porque morrem de medo do temporal. Ela balançava a cabeça e dizia: “Você estuda muito. É muito bom aluno e vai ser um grande homem, mas ainda não sabe nada da vida. Tem que aprender o respeito. O respeito é uma coisa muito linda”. Eu retrucava e minha mãe quase morria de tanta irritação com a minha petulância, mas minha vó ouvia todo o meu questionamento com paciência, mesmo sentindo-se desafiada. Acho que no fundo ela gostava de ver seu neto, filho do filho mais velho, argumentando. Deveria estar pensando: “Quem sai aos seus não degenera.” No fundo, no fundo era bem parecido com ela. Acho que tinha paciência por se ver em mim. Eu seria uma continuidade sua. Só que moderninho e cientificista. Vejam só! Hoje virei professor de Literatura e artista plástico. Frustrei a vovó mais uma vez. E minha mãe sem filho sacerdote. Meu pai sem filho militar.

Esperem um momento. Está tão silenciosa a noite de repente. Cadê o barulho da água batendo no telhado metálico da vizinha? A chuva acabou. O que vou escrever agora? Minha musa foi embora. Levou com ela as palavras e a minha memória. Acho que desrespeitei o temporal escrevendo. Agora ouço um cachorro latindo na madrugada. Será Cérbero, o cão que guarda a porta do Inferno? Graças a Deus ele parou de latir. Voltou de novo. Será Jack, o estripador, que ressuscitou? Parou. Voltou outra vez. Uma carreta acelera na estrada. Será isso um sinal. Penso que sim. São duas horas e treze minutos numa madrugada de primavera com cara de verão. Amanhã terei de montar umas estantes metálicas para acondicionar meus livros espalhados pela casa. Perigo! A estante é de metal. E se fizer temporal? O cachorro latiu de novo e outra carreta passou na estrada. Acho que vou dormir. Quem sabe não lembro de mais alguma coisa e escrevo melhor um outro texto. Mais outra carreta. Sabem de uma coisa? Tenho de respeitar meu sono porque estou vivo. Daqui a pouco meus neurônios vão pifar e eu ficarei decrépito antes do tempo. Terá sido praga da vovó?

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 17/06/2010
Código do texto: T2325891
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