A LENDA DO SEGUNDO SOL

Voltava para casa naquele que se anunciava o primeiro dia do início de suas férias. A rotina árdua e exaustiva, repetida sol-a-sol, endurecia seu coração. Sua gélida insensibilidade contrastava com a febre consciente denunciada por uma alma que trazia na sua essência as marcas de valores sobre os quais se erigiu sua personalidade.

Agendas organizadas, notebook na maleta, maleta no carro, corpo integrado à máquina, motor pulsando, faróis ligados, ânimos recobrados, velocidade experimentada. Na estrada, percorriam a bordo do jipe, estímulos remoçados, remidos de épocas românticas onde os sonhos compunham enredos majestosos que cintilavam o espírito e aguçavam a curiosidade. Tempos que pareciam ter-se esvaído ao longo das duras trilhas de estéreis paisagens.

Reflexivo ao volante, observou quilômetros depois, um brilho singular numa espécie de placa metálica incrustada numa colina à frente, cuja evidência animou-se graças à luz emprestada pela lua, que se fizera cheia no esplendor daquela noite aparentemente vazia.

Estupefato, seus instintos frearam o veículo, que cautelosamente achegou-se ao acostamento. Aquele artefato reluzindo instigou sua curiosidade e o misticismo, provocando questionamentos que resgatavam um sentido de individualidade há muito perdido, recobrando o prazer singular que nasce unicamente do contato com experiências introspectivas como aquela presidida. Abandonou o carro, embrenhando-se por um matagal que dividia espaços com espécies espinhosas que imprimiram, no seu corpo, marcas de uma viagem de retorno nada convencional. O estranho objeto, sempre “a doze horas”, seduzia sua jornada. Vencendo declives e aclives, pôs-se a contemplar o monte, onde a uns quinze metros, continuava tão reluzente quanto antes, o estranho metal. Escalando amadoristicamente o íngreme relevo pode, enfim, tatear a placa com a avidez não menor que sua estranheza sobre o efeito daquele metal em seu comportamento. Vencidos aproximadamente cinquenta minutos de obstinada escavação e ao preço de praticamente duas unhas, tomou em seus braços o estranho artefato que mais lembrava um quadro em alto relevo no qual se podia observar uma gravura primitiva que retratava uma cena do cotidiano de uma aldeia indígena que, não obstante ao reconhecimento de objetos comuns, chamava a atenção para a existência de dois sóis destacados que irradiavam luz sobre a silhueta de uma jovem índia, de expressão aparentemente melancólica. Tais observações puderam ser melhor avaliadas no interior do seu veículo.

Chegando a casa, não passou incólume ao seus familiares a existência daquele objeto, que relutavam em acreditar nas circunstâncias que envolvera o seu achado.

Decididamente aquelas não seriam férias comuns, sensação essa também pressentida pela mulher e filho.

Ao arrebol do dia seguinte, tomou a placa de metal em suas mãos, dedicando-lhe boas horas de compenetrada limpeza e polimento. No terraço de sua residência, esse exercício parecia fazer parte de um ritual. Aos poucos, detalhes impressionantes foram sendo possíveis de se identificar. O objeto lembrava um quadro, de geometria retangular, tendo suas bordas consumidas pelo tempo, refletindo também, um aspecto envelhecido, típico de relíquias que atravessam séculos soterradas e que graças a uma atuação generosa da natureza, patrocinando um evento de deslizamento, provocara a aparição daquele objeto. Agora, quanto ao fato de ter sido, aquele senhor, o eleito para o grande encontro, isso somente o acaso deve ter as respostas. A questão é que o quadro veio parar nas mãos inquietas de uma mente curiosa que possuía uma consciência histórica capaz de reconhecer a importância daquele achado.

Percebeu, com a limpeza, tratar-se de uma herança dos índios Aimorés, também conhecidos por Botocudos, visto que, nitidamente, apareciam faces indígenas caracterizadas pela utilização de “botoques” nos lábios em alguns e noutros, nos lóbulos das orelhas.

As conclusões eram incipientes, mas nem por isso desprovidas do ímpeto motivador para um convite a pesquisas. Apesar de sua formação lhe assegurar um mínimo de informações, não lhe bastavam para a permissão de voos mais ousados no campo da antropologia e da arqueologia. Por essa razão, carecia de um embasamento como forma de melhor compreender o contexto de criação daquela obra. Tinha, no entanto, a humildade intelectual suficiente para reconhecer-se pequeno diante do imenso desafio.

De posse do quadro, trancafiou-se num dos cômodos da casa, onde habitualmente surrava sua ignorância através da leitura esclarecida de obras que povoavam estantes apaixonadamente bem cuidadas, em relação às quais lhe era atribuído o status de maior patrimônio que dispunha. Desde os clássicos ao moderno, observava-se, naquele espaço, um relicário farto de pensamentos refinados expressos por mentes privilegiadas que se serviram da poesia, como as de Maiakovski, Hilke, Quintana, Drummond e da Filosofia, Sócrates, Platão, Aristóteles, Foucault, Nietzsche, dentre outros. Entretanto, de modo objetivo, tinha o dever de direcionar seu foco para estudos que o auxiliasse a desvendar o enigma daquele quadro.

Pesquisava as experiências de pensadores sociais, principalmente Sérgio Buarque de Holanda, Câmara Cascudo, Hemógenes Lima Fonseca, Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco. Medições lhe permitiram concluir que a placa encontrada media cerca de quarenta centímetros de largura por oitenta de comprimento, tinha uma espessura de dois centímetros. O metal trabalhado encontrava-se afixado numa outra placa, em justaposição, confeccionada em cerâmica. O que mais impressionava é que o material utilizado era a prata, sendo que, diferentemente do que indicam os estudos, grande parte do conhecimento do indígena brasileiro era transmitido pelo processo da oralidade, de geração em geração, conforme consenso de antropólogos e historiadores, além de grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e tatuagens. O emprego do metal não se tem registro histórico vinculando seu beneficiamento por tribos indígenas. Ao que parece, a criação do quadro seria de autoria de um gênio criativo de uma tribo específica.

Estudos evoluíram para a constatação de que a placa encontrada fora de autoria de um artista botocudo que viveu na mesma região de localização do artefato. Isso entre os séculos XIV e XV, nas terras do Vale do Rio Doce, especificamente nas matas da antiga Francilvânia – denominação originária do atual bairro de São Silvano, Colatina-ES.

Também a aventura pelo conhecimento do modus vivendi dos Botocudos permitiu-lhe conhecer, segundo relatos de narradores que acompanhavam as Entradas e as Bandeiras, que os que cruzavam com Botocudos experimentavam a violência e a agressividade desses indígenas.

Nosso pesquisador reúne, finalmente, todas as informações antropológicas necessárias ao entendimento da tribo autora daquela peça encontrada. No entanto, persistia o mistério do segundo sol presente na placa. Para esses questionamentos nenhuma resposta estaria no arsenal de informações vasculhadas e catalogadas ao longo dos últimos seis dias. Era preciso um esforço maior e uma metodologia mais eficaz, afinal, o conhecimento buscado deveria ser sorvido em outras fontes, considerando a precariedade dos registros históricos de nossos indígenas, especialmente no tocante aos aspectos sociológicos, com ênfase nas tradições folclóricas mais fecundas. O que se sabe é muito pouco diante da riqueza cultural desses ancestrais que verdadeiramente se constituem na essência genuína do verdadeiro brasileiro.

No sétimo dia, decidiu ele buscar contato com alguns descentes dos Aimorés (Botocudos), na esperança de entender o significado daquele registro na placa encontrada. Na pior das hipóteses, o valor intrínseco da prata ao menos subsidiaria o custo dessa procura. Isso desconsiderando o valor histórico incalculável. Ele quis mais. Sua decisão em persistir na sua busca havia se transformado numa obsessão intelectual.

Soube da existência de um grande estudioso dos índios Botocudos através ainda de suas pesquisas. Esse personagem era líder de uma comunidade indígena, além de ocupar cargo oficial no Governo de Minas Gerais. Foi por intermédio de seus relatos que chegou ao seu conhecimento a existência de um registro de autoria de Teófilo Otoni. As informações contidas nesse documento concorreram para a identificação de uma família descendente direta dos Botocudos e, para sua surpresa, sua localização ficava a aproximadamente dois quilômetros do local onde encontrara o artefato. A propriedade era modesta, remanescente de uma grande porção de terra, possivelmente sede de uma antiga aldeia que o progresso inseriu uma rodovia entre a margem do Rio Doce e os seus limites territoriais. A família era numerosa no passado, mas se tornara restrita a dois irmãos e dois sobrinhos.

Amadurecidas as informações, partiu ao encontro dessa família para a tão esperada entrevista. Vencidos os protocolos de apresentação recíproca e entendidos os propósitos daquela visita, deu-se início a uma série de conversas que se estenderiam por três dias.

O invasionismo cultural e predatório rendeu aos entrevistados os nomes de Roberto e à sua irmã, Marilza. Marilza revelava-se grande conhecedora das histórias e causos antigos de seu povo, muitas delas passíveis de serem entendidas como lendas de fantástica riqueza folclórica.

No segundo dia, encontrou Marilza extremamente dada a uma conversa. Predisposição essa acentuada pela lata de goiabada que lhe entregara em sinal de reconhecimento por toda a atenção dispensada.

A riqueza daquele encontro jamais poderia ser antecipada sequer por lampejo mediúnico. A intimidade conquistada lhe permitiu repartir com Marilza o segredo do objeto encontrado, apresentando a ela a peça, após sua retirada de uma bolsa que trazia à tiracolo. Para sua surpresa, Marilza chorou copiosamente ao lançar o olhar sobre a cena que o quadro registrava. Em seguida, Marilza calou-se e se retirou da sala, não permitindo ao entrevistador qualquer esclarecimento adicional.

Estavam apenas os dois na residência dos descendentes Botocudos. Constrangido, ele deixou a propriedade num misto de frustração e curiosidade insanas.

De volta para casa, dividiu com a esposa as últimas informações sobre o caso. Ela recomendou que esquecesse o assunto e redirecionasse seus projetos de modo a usufruir suas férias em descanso de mente e espírito. Suas recomendações caíram em vazio.

A noite não lhe foi boa companheira. Assaltavam-lhe conjecturas várias. O que teria acontecido com Marilza? Qual o porquê daquela súbita reação? O que esconderia de tão grave assim aquele achado?

Insone mas confiante, ele retornou à propriedade de Marilza e Roberto, no dia seguinte. Encontrou os dois na varanda, sentados e bem acomodados como que disponíveis para uma nova conversa. Marilza desculpou-se pela sua ausência no dia anterior e revelou não ter conseguido conter a emoção diante de um objeto que lhe evocava lembranças de tempos distantes, de histórias ouvidas na infância e que foram sepultadas com a memória do seu avô. Roberto também se emocionou muito ao ponto de seus olhos verterem lágrimas em meio a um olhar distante que se perdia no horizonte, terminando por fitar a montanha do artefato achado, afinal, da sua varanda era possível contemplar o berço de todo o mistério.

Um silêncio profundo dominou a todos. Marilza tomou a iniciativa, iniciando sua fala, dizendo tratar-se de um acontecimento muito antigo, preso a um tempo que não se tem mais conta. Assim discorreu: Vivia numa aldeia não muito distante dali, uma jovem índia, filha de um bravo cacique, muito respeitado por toda a tribo pelos seus feitos heroicos e por profundo respeito e amor ao seu povo. Também era venerado pela sua coragem e destemor ao lutar com seus inimigos, especialmente a tribo Goitacás, tendo vencido inúmeras batalhas. Seus botoques eram imensos, conferindo-lhe uma expressão ainda mais severa. Era hábil na pesca e dono de um senso de direção que impressionava, permitindo-lhe guiar-se e aos seus com mestria por entre a floresta. Dizia a lenda que caçava onça sem armas, valendo-se de seus braços e de uma enorme agilidade.

Conta-se que era protegido pelas divindades das matas.

Ocorre que seu destino fora atravessado pela ingratidão, assim interpretada por ele, através do comportamento de sua filha que, a mando do seu coração, apaixonou-se pelo filho do cacique da sua tribo arquiinimiga. Um amor vicejado pelo orvalho da condenação. Entretanto, maior que o amor de pai era ódio histórico que separavam as duas nações primitivas.

As lágrimas dos apaixonados confundiam-se com as da própria natureza. A beleza da selva se reconhecia na harmonia daqueles jovens que ignoravam a rivalidade, realizando seu ideal de amor profundo em encontros patrocinados pelo espírito de desprendimento e audácia, típicos dos amantes.

A astúcia botocuda era uma característica étnica. Deu-se que seu pai descobriu que a filha havia desobedecido aos dogmas tribais, transpondo limites intolerados. Apropriando-se da mesma astúcia, o cacique arquitetou a morte do jovem rapaz, fazendo chegar ao seu conhecimento um convite apaixonado. Ao invés da bela índia, veio ao seu encontro uma flecha envenenada que lhe invadiu o peito, antecipando, em noite, a tarde que assistia triste ao fim da mais pura e terna história de amor encenada em terras de um Brasil-menino.

Politicamente, o fato acirrou o ódio e fortaleceu as raízes que fizeram florescer muitos conflitos que se seguiram.

A perda maior, no entanto, foi sentida pelo coração da indiazinha, inundando de tristeza toda a natureza e o brio glorioso de seu pai, honorável guerreiro, que se viu vencido pela tragédia causada pelo rigor de uma tradição. Mas conta a lenda que ele não se arrependeu do seu gesto, apesar da amargura experimentada quando percebia o sofrer da filha.

Coincidência ou não, a natureza também padecia. Uma forte seca assolou toda a região, a caça rareou, a pesca ficara comprometida porque os rios também secaram. A fome avizinhou-se dos filhos da terra. A temperatura caiu significativamente. O clima fora bruscamente alterado.

Deu-se de que todas as nações indígenas se reuniram e pactuaram um acordo pelo fim dos ressentimentos e inauguração de uma nova era de cooperação recíproca. Perceberam que ódio irritara a mãe-natureza.

Aquela demonstração coletiva de fraternidade incondicionada fez com que as divindades se compadecessem do destino de seus filhos. De um modo especial, Tupã apiedou-se da pobre indiazinha, que definhava numa tristeza única. Conta-se que criou ele um segundo sol para aquecer o seu solitário coração, restaurando a vida e a fé por longo tempo ausentes. Fora recomposto, assim, todo o equilíbrio do ecossistema. Num berço agora aquecido, os rios voltaram a fluir, a pesca voltou, a caça tornou-se abundante, a compreensão entre os povos foi instaurada e o coração da indiazinha, ungido foi pela luz e calor de um sol especialmente criado para ela. Embora não desfeito o mal da perda de seu amado, a partir daquele momento, toda a região passara a dispor um segundo sol, tendo a indiazinha motivos que lhe bastaram para continuar sua jornada, reconhecendo seu papel de guia espiritual de toda sua tribo. Tornou-se forte e sábia, sendo considerada, desde então, como a defensora dos amantes.

Terminado o relato, com os olhos banhados em lágrima, Marilza finalizou sua fala tomando em seus braços o quadro de prata, agradecendo profundamente pela visita e pela oportunidade de relembrar uma das mais belas passagens lendárias que marcou a trajetória de seus antepassados. Disse, ainda, que essa história acontecera antes mesmo da chegada do primeiro homem branco e que os mais antigos da tribo sempre se encarregavam de transmiti-la aos mais novos. A felicidade de Marilza tornara-se maior na medida em que pode constatar que além de tradição oral, houve o desenvolvimento de habilidades artísticas ao ponto de se registrar, em metal, fragmentos de uma cultura antiga que caminhava para o esquecimento, a exemplo de tantas outras manifestações populares que se perderam ao longo das gerações, sucumbidas por valores e prioridades que fizeram com que o povo se apartasse de sua identidade e memória.

Sua busca se deu por encerrada. Desvendado o mistério, notou-se que o desfecho fora surpreendente. O mais lamentável é que nossa geração talvez jamais tivesse a oportunidade de resgatar o conhecimento de tão importante capítulo da nossa história, ao qual se une a tantos outros para compor o grande livro de nossas tradições e cultura.

MARCO ANTONIO BREGONCI
Enviado por MARCO ANTONIO BREGONCI em 14/07/2010
Reeditado em 19/09/2010
Código do texto: T2376634