LALLO

Há mais de quarenta anos ele vivia numa casa de repouso ao pé da colina.

Aos dezenove anos fora trancafiado lá pela família de seu primo.

Perdera os pais ao nove num acidente de automóvel passando a viver com os tios. Quando a tia, irmã de seu pai, faleceu Lallo teve uma crise nervosa e foi internado.

Na clínica manteve-se silencioso durante todos esses anos.

Dispunha de um amplo apartamento no térreo, com portas e janelas para o jardim.

Seu primo era a única visita que recebia duas vezes por ano, levando-lhe material de pintura, telas e tintas.

Lallo era um pintor de quadros, e os mantinha, quando prontos, guardados num grande armário.

Havia um quadro inacabado, o retrato de uma mulher apenas esboçado, e era o único que ficava à mostra em seu quarto.

A clínica passou por uma reforma e recebeu uma nova diretora. Uma médica geriatra de nome Helga que ficou bastante interessada no caso de Lallo, talvez por encontrar nele traços familiares.

Ela tentou inúmeras vezes conversar com ele, um homem dócil, gentil, não usava medicamentos e ouvia a médica com atenção, porém suas respostas eram o silêncio.

Certo dia Lallo amanheceu febril, recusou o café e não saiu do quarto para o passeio costumeiro ao jardim.

Helga decidiu transferi-lo para a enfermaria onde seria mais bem cuidado pelos enfermeiros intensivos e ordenou que o apartamento fosse limpo e esterilizado porque suspeitava de uma meningite.

Durante a limpeza foi encontrado um diário caído sob a cama e levado à diretora. Ela percebeu que no diário poderia estar a chave para identificar o problema de Lallo, pois em sua opinião ele não parecia ser doente mental.

Assim, com a leitura do diário, soube que a família o internara para se ver livre dele, apossando-se da imensa fortuna que lhe cabia de herança com a morte dos pais.

O primo, filho único de seus tios, amigo de infância se tornou um rival, pois Lallo era mais talentoso, mais bonito e mais bem sucedido nos estudos.

Com a morte da tia e a crise nervosa, o primo apoiado pelo tio, tratou de interná-lo tendo apenas o cuidado de reservar-lhe um apartamento confortável que funcionasse como um atelier para Lallo se distrair e não reivindicar seu legítimo direito à herança.

O primo em suas visitas trocava o material de pintura por quadros acabados, levando-os consigo. Às vezes o presenteava trazendo-lhe um quadro pronto afirmando ser de sua autoria. Lallo rabiscava a tela ou dava-lhe cortes e a escondia no rebaixamento do teto do banheiro.

Helga terminou a leitura do diário na semana em que Lallo teve alta da enfermaria e retornou ao apartamento.

No dia seguinte à alta ela o visitou entregando-lhe o diário. Foi quando ele disse, pela primeira vez ‘obrigado doutora’.

Animada com a reação dele, Helga passou a vê-lo todas as manhãs, acompanhando-o em seu passeio silencioso pelo jardim.

Um dia se sentaram num banco e ela lhe mostrou um jornal com a reportagem sobre um pintor famoso. Perguntou-lhe se ele gostaria de acompanhá-la na visita à exposição. Ele disse ’obrigado doutora, eu não posso’. Ela tentou saber o motivo, mas Lallo permaneceu em silêncio; a doutora havia observado a grande semelhança entre ele e o pintor retratado pelo jornal.

Com muitos detalhes obtidos com a leitura do diário de Lallo, a médica definira uma estratégia para lidar com ele.

Observou também que o retrato inacabado da mulher estava sendo retomado por ele, tomando expressão. Aos poucos o retrato ganhava o rosto de Helga.

Numa entrevista com ele, ela perguntou quem era a mulher do retrato. Seria sua mãe? Ele não se lembrava do rosto de sua mãe, mas disse-lhe que tentava retratar Hanna, sua babá na infância, de origem húngara, que lhe contava histórias e cantava para ele adormecer. Disse também que a médica, por ter traços parecidos com Hanna, ajudava a completar a pintura.

Helga considerava um progresso o trabalho com Lallo e, muito confiante, buscava extrair dele mais relatos que pudessem ajudá-lo. Ela acreditava não existir razão para o confinamento de um homem sadio e talentoso.

Por coincidência, a avó de Helga também se chamava Hanna, já havia falecido, era húngara e foi governanta de uma família após ter ficado viúva, porém era só isso que conhecia sobre a avó. Lallo teve oportunidade de falar bastante sobre a babá Hanna enquanto trabalhava no retrato de Helga, que já admitia a ideia de que a babá fosse mesmo a avó. Este assunto era o ponto de ligação entre a terapeuta e o paciente. A médica era a única pessoa com quem Lallo conversava durante a caminhada pelo jardim.

O ano chegava ao fim e o primo não fizera ainda a segunda visita anual, talvez ele fosse de fato o pintor descrito no jornal e poderia estar atarefado com os preparativos da exposição anunciada.

Duas semanas se passaram, a médica precisou se ausentar da clínica, quando surgiu uma visita inesperada para Lallo. Tratava-se de uma mulher, acompanhada de um advogado. Lallo se recusou a recebê-los e eles marcaram outra visita para quando a doutora retornasse à clínica.

Assim aconteceu.

Helga recebeu as visitas, mandou buscar Lallo em seu apartamento e lhe foi revelado que a visitante era a viúva de seu primo, falecido recentemente e que deixara uma carta-testamento.

Nesta, reconhecia o mal que lhe causara, pedia perdão e lhe devolvia os direitos não só à herança da família como também a fama e a glória que lhe roubara, exibindo como seus os quadros de Lallo.

Lallo, abraçado à doutora Helga, chorou.

Não quis deixar a clínica, alegando que não saberia viver fora de lá.

Com a ajuda do advogado transferiu parte de seus bens para uma Fundação de Arte e outra parte doou para a clinica de repouso.

Abandonou a pintura para se dedicar ao jardim.

O retrato de Helga foi terminado e hoje está exposto em sua sala.

FIM