A MORTE DO JUQUITA

"É a perda da memória, e não o culto à memória, que nos fará prisioneiros do passado". Isabel Allende

ESTA É UMA HISTÓRIA REAL, contada a partir das minhas lembranças do dia em que estava a passeio na fazenda.

A primeira vez que vivenciamos um acontecimento bom não esquecemos e ainda ansiamos pela repetição. A primeira vez que convivemos com a barbárie, com a brutalidade, a gente também não esquece. Deseja esquecer, anseia para não se repetir. Mas parece que a barbárie está em alguns genes humanos. Ainda não sabemos se irremediavelmente. Sabemos apenas que os remédios que temos visto a humanidade indicar para esse estado de selvageria parecem ainda não ter surtido efeito mitigador. Tem sido reprimido, escamoteado, vingado, mas curado, creio que ainda não.

Eu demorei muito tempo para falar desse assunto. Preciso, no entanto, expurgar, drenar, depurar isso de dentro de mim. Na época, tudo o que consegui deixar como marca para ver se aplacava a minha dor e principalmente das famílias envolvidas foram uns versos. Mesmo assim, me pediram para que guardasse. O choque fora tremendamente não absorvido pela falta de costume de lidar com a violência , pelo placidez da vida a que se acostumaram, pelo assombro e pavor que provocou em todos a morte do Juquita. Ele mesmo, na face de semblante suave, no corpo langoroso e nos gestos, principalmente nestes, um cara que se podia chamar de “a paz em pessoa”.

Juquita era um amigo de muitos anos do Seu Modesto, então meu sogro, fazendeiro ali pela bandas de Pimenta, uma cidadezinha encravada no centro oeste das Minas Gerais. Fica na região que é banhada pelo lago artificial que construíram no Rio Grande para ser a hidrelétrica de Furnas. No seu entorno proliferam fazendas onde se produz de tudo. São mais de trinta cidades que compõem o anel em volta do lago. As outras, as águas engoliram quando foram represadas. O meu sogro produzia leite tão somente. Estava já velho, os filhos, todos os dez, cada um cuidando de sua vida. Juquita morava na vizinha Piumhi e havia se aposentado de uma atividade urbana. Seu sonho sempre fora a roça, nunca havia gostado de ter ido para a cidade. Se o fez foi por causa dos filhos que assim exigiram. A presença dos pais por perto para eles tocarem a vida nos afazeres urbanos ou sei lá se havia dado algum problema com sua roça. Mas depois voltou. E voltou para a satisfação do amigo, que tinha um homem integro, ainda trabalhador de braços fortes apesar de seus já avançados sessenta e poucos anos para ajudar a cuidar das centenas de hectares de roça que sustentava a casa. A aposentadoria, mísero salário mínimo era muito modesta para seu Modesto, a esposa, o filho adotivo, um agregado adoentado e uns empregados que ajudavam na lida com o gado.

Rotina é uma repetição de procedimentos, que se pratica até de forma mecânica, feito um relógio andando num só sentido. Ritual já é mais litúrgico, inseparável da rotina, quando se quer digamos, enfeitar uma rotina, ou lhe dar um caráter mais aprazível. Era o que cumpria nosso homem religiosamente. Vinha todos os dias, de segunda a sábado, no mesmo horário, no mesmo ônibus que o deixava à beira da rodovia. Dali, uma caminhada de três quilômetros exatos até a sede da fazenda, onde tomava novamente o café com o pessoal da casa, depois dava alimentação às galinhas, aos porcos, cuidava de verificar se o leite já havia sido retirado, pois o caminhão do laticínio buscava bem cedinho. Nada lhe escapava no cuidado com a roça. A bomba d’agua carneiro era rigorosamente verificada. Mandava água para abastecer a casa e regar a horta viçosa e farta. Matava também a sede das pessoas e dos bichos. À tarde, depois do almoço, um tempo para uma prosa, uma conferida em tudo e a volta para casa, no mesmo ônibus, no mesmo horário, à beira da rodovia. Conheciam-se todos, motorista, trocador, passageiros (quase sempre os mesmos). Vida Feliz a do Juquita. Quem dizia eram seus olhos de um verde que riam de alegria. Segundo ele mesmo, renovada, depois que pode voltar a trabalhar com aquilo que mais gostava. E ainda por cima junto do amigo de tantos anos. Não fazia isso por dinheiro. Sua imponente casa da cidade mostrava que não se tratava de necessidade material Seus olhos e sua fala mansa e o sorriso tímido mas sempre disponível evidenciavam a sua alegria de viver.

Numa quarta-feira feira, o Juquita não havia aparecido e já causou preocupação. Um dos filhos foi até a cidade-destino perguntar ao motorista do ônibus. Era o mais indicado a confirmar se ele não tivesse ido. Para piorar ele confirmara que tal como nos demais dias, o havia deixado no mesmo lugar, com sua inconfundível tira colo de couro, onde guardava seu dinheirinho da passagem , sua escova de dentes, umas chaves, pente para os já raros e ralos cabelos, os óculos que usava para descanso das vistas, uma pequena garrafa térmica e um copo feito de lata. Apenas isso. Então o pensamento passou a ser de que ele poderia ter sofrido um mal súbito e estar caído em algum canto da estrada. Deixou o carro à beira da estrada e saiu a pé à procura. Mais ou menos pela metade do caminho, avistou uma porção de mato meio amassado, com marcas formando uma trilha, como se tivesse sido amassado por algum peso arrastado. Sob uma árvore meio baixa, meio ressecada, encontrou um corpo completamente desfigurado, irreconhecível, as mãos amarradas para trás com o próprio cinto da calça, o crânio esfacelado, a calça arriada e um pedaço de pau enfiado no ânus, um dos olhos fora de sua órbita, dentes quase todos quebrados, muito, muito, muito sangue. De engulho em engulho conseguiu chegar à sede da fazenda e ligar ao celular (que só emitia e recebia sinais em um ponto específico) para a polícia a fim de verificar o estranho e tenebroso ocorrido. Como poderia naquele lugar ter acontecido algo tão tenebroso que jamais ocorrera à imaginação de alguém? Quem poderia praticar tal maldade?

Eu fiquei me lembrando dos Crimes da Rua Morgue, de Alan Poe. Mas ali não havia gorilas, não havia circos na região, não havia possibilidade. Tinha que ser obra de um humano. Não havia também hipótese de suicídio. As mãos estavam amarradas para trás, precisava que alguém estivesse junto a ele. Uma volta pela rodovia, após uma parada em uma lanchonete perguntando se haviam visto alguém com cara de pavor, sujo de sangue ou algo semelhante, veio a informação de que um andarilho passara pedindo para encher uma garrafa térmica com café e com uma bolsa a tira colo de couro com a qual demonstrava muita alegria e apego. Na delegacia para onde fora conduzido depois de ser apanhado andando lento e inabalável pela estrada, não demonstrou sequer alteração, sinal de arrependimento, tristeza, pesar, nada, ao confirmar o assassinato. Apenas disse que queria a bolsa e o homem recusara-se a entregá-lo.

HOJE O JUQUITA NÃO VEIO

03/09/2001

Hoje o Juquita não veio.

Quer dizer, veio mas não chegou.

O Juquita fechou os olhos verdes,

Quer dizer, fecharam os seus olhos verdes

O doce sorriso do Juquita desdentou

Quer dizer, desdentaram o sorriso do Juquita

A fala mansa do Juquita se calou

Quer dizer, suas últimas palavras foram muitos ais

As mãos frias do pau e faca

Amarraram as mãos obreiras e calorosas do Juquita

O Juquita era a anti violência

A negação da brutalidade humana

As mãos que alimentavam os bichos e revolviam a terra

Cruzaram-se sobre o peito inchado

Só o seu carisma ficou

Na triste mas perene lembrança de todos nós

Nós que dilaceramos nossos corações

Pela dor, não pela brutalidade.

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 21/07/2010
Reeditado em 21/07/2010
Código do texto: T2390408
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