A monstro do centro velho.

Não tinha humor, não tinha amor, só tinha dor.

Para não falar de seu odor, fétido!

Quando se via só dentro de um elevador que não continha os dizeres “sorria, você está sendo filmado”, chorava, pois não estava sendo filmada. E o choro era seu desabafo constante. Por que vivia, não sabia e nem tinha a mínima pretensão em saber. Sabia apenas que tudo era por demais fastidioso e doloroso para dizer que a vida era bela. Bela porcaria nenhuma!, a vida era sim um lixo sem igual.

Ah, como praguejava os amanheceres, por perceber que não desfalecera noite adentro. O simples fato de acordar era-lhe um pesadelo horrendo, sem explicação. Sua frase predileta, “não pedi para viver”, era uma constância em sua boca imunda. Digo imunda porque não tinha higiene para com nada, escovava os dentes quanto algo lá dentro da boca a incomodava, um fiapo de manga, uma casca de pipoca, arroz, carne enrolada, estragada e já em estado de putrefação, coisas do gênero. Caso contrário, apodrecia com aquilo dentro sem dar a mínima. Era uma putrefação ambulante, asquerosa, arquejante.

Pobre diaba, aquela! Quando a vi pela primeira vez custei a acreditar que um ser conseguisse sobreviver por tanto tempo naquelas condições, precárias por sinal. Senti imediatamente um misto de nojo, pena e curiosidade. Afinal, que animal era aquele? Que raça surpreendente era aquela, vivente num ambiente de desolação tamanha, que causava asco a quem o presenciasse. Nojenta, realmente nojenta!

Pela manhã, após praguejar Deus e o Mundo por mais uma vez acordar viva, ingeria umas papas à base de banana e aveia, engolia um pão seco e bolorento, sempre da semana passada, pois era desatualizada com esse negócio de pãozinho fresquinho do dia, jogava meio copo pequeno de café morno goela abaixo, e se rastejava moribunda em direção à sua banca de revistas e livros velhos no centro velho de São Paulo.

Como subespécie humana, não tinha vaidades, orgulhos e nem ligava a mínima por dinheiro. Não tinha contas em bancos, cartões de créditos, planos de saúde, previdência, e nem lembrava onde estavam seu registro geral (RG) e seu cadastro de pessoa física do Ministério da Fazenda (CPF/MF).

Descabelada, mal tomava banho, só mesmo quando importunava alguém, que logo a interpelava para que fosse logo lavar ao menos as partes íntimas, pois desse jeito não dava. Ficava furiosa quando isso acontecia, pois sempre tinha um engraçadinho para tal. Esgoelava como louca pelas ruas do centro velho. Mas, quando chegava em casa, às escondas, lavava a buceta e ao mesmo tempo gozava feito uma porca no cio. Detestava isso, pois enojava o prazer, que a fazia se sentir viva.

Quando criança, pelo que disseram alguns velhos que conviveram com ela naquele tempo, costumava pregar peças nojentas em sala de aula, extraindo todo tipo de excremento de seu corpo e endereçando, em forma de bilhetinhos confeccionados com as folhas roubadas dos cadernos dos alunos das carteiras ao lado, às meninas patricinhas, limpinhas e metidinhas da turma. Era tudo tipo de nojeira, desde pentelhos melados e fedorentos, até catarros esverdeados, cacas nasais, etc. Após muitas reclamações e advertências, tiveram por bem, os diretores, expulsá-la do colégio, sob o argumento de que não tinha condições de freqüentar o meio social por ser alienada mental.

É bom frisar que tal história se passa lá pelos idos dos anos cinqüenta, quando São Paulo ainda não era tão selvagem como hoje em dia. Hoje, pelo visto, seria encaminhada a uma escola especializada para reabilitação de crianças delinqüentes. Naquele tempo internavam logo a criança anormal, tida como louca, e a soltavam direto para um sanatório mais próximo, saindo da li somente para a cova.

Filha de prostituta, fora abandonada ainda nascitura na porta de um barraco na zona leste da Capital, e criada por um casal idoso de ébrios habituais, que a espancaram tanto a ponto de, aos quatorze anos, subnutrida, fugir para viver nas ruas, declarando ódio à vida, ao Mundo e aos homens. Sem prazer por comida ou que quer que fosse, comia apenas quando o corpo implorava, quando as tripas davam nó e seu esôfago ressecava.

Como não sentia prazer por nada, não adquirira vícios, o que tornava o viver algo simples, pois precisava apenas de um pouco de alimento para continuar perambulando suja e imunda para lugar nenhum. A princípio roubava. Quando se tornava por demais suja no pedaço, transava por uns trocados com os bêbados porcos dos botecos da Benjamim Constant, e assim levava a vida de maneira pesada e maledicente. Por incrível que pareça, jamais adquirira qualquer tipo de enfermidade, nem mesmo resfriada ficava. Dava a impressão que possuía algum tipo de imunidade perante as mazelas mundanas, mesmo odiando tanto a vida, o Mundo e os homens. Também não tinha coragem de tirar a própria vida, pois temia uma dor maior do que a que sentia por estar viva. Creio que, se morresse, seria por acidente, doença ou coisa parecida, jamais por suicídio. Tamanho ódio até hoje não teve explicação pela medicina moderna.

Após alguns longos anos de furtos, trepadas e porradas, conseguira juntar algum dinheiro, suficiente para comprar uma barraca velha cheia de livros e revistas mofados. Limpou alguns e iniciou um negócio irregular, como a maioria dos ambulantes das cidades grandes o exercem. Com isso tirava em média uns trocados suficientes para engolir algum tipo de alimento e alugar um barraco caindo aos pedaços nos arredores da Vila Matilde, duas horas de ônibus do centro da cidade.

Assim, durante quarenta e dois anos, peregrinou entre seu barraco imundo, passando por ônibus lotados, em que os demais passageiros resmungavam de seu fedor, em direção à sua banca de revista.

Mesmo mal humorada, ranzinza, desnutrida e fedorenta, nunca deixou de trabalhar, muito menos de tirar seu trocado diário que lhe possibilitava o sustento. Dia-a-dia, sol-a-sol, tempestades, trovoadas, fiscalização truculenta, porradas e xingamentos, sempre foi uma trabalhadora dedicada, ao contrário das putas perfumadas e dos garotões drogados que desfilavam pelas ruas do centro. Viveu íntegra em sua imundície, enquanto nos autos escalões do poder roubavam milhões do sofrido povo da Nação.

Morreu no entardecer de uma segunda feira, quando, já se preparando para partir, teve seu barraco incinerado pela guimba do cigarro de um desavisado, que por ali passeava em busca de distração.

Cristiano Covas, 28.10.05.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 22/07/2010
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