A GATOEIRA

Amâncio Carneiro sempre foi bem equilibrado, de coração generoso, caráter sério e conservador em extremo.

Aos trinta anos estava irremediavelmente perdido de amores. A moça era uma colega de trabalho, uma encantadora jovem. Não havia para onde fugir. Portador de grande paixão e sendo correspondido, logo se casaram, sem ruído, sem luxo, indo morar em um modesto condomínio de subúrbio.

Mesmo passados alguns anos de casados, Amâncio era para a sua adorada Iracema o mesmo amante dos primeiros dias, viviam desfrutando uma verdadeira lua-de-mel. Eram momentos de amor, de deliciosas ternuras.

Digo que eram momentos de delicioso convívio, porque as coisas já não funcionavam com tamanha harmonia.

O que mais preocupava Amâncio era a mudez de sua amada Iracema, antes tão falante e expressiva. Tentava compreender o seu silêncio ameaçador e o modo com que reprimia a explosão de soluços que ameaçavam sufocá-la toda vez em que tentara um diálogo em busca de solução para o problema que o atormentava.

As noites passaram a ser momentos de torturas, o sono não vinha e a sua indisposição crescia vivamente. Dolorosos calafrios obrigavam-lhe a encolher-se todo debaixo dos cobertores. Sentia doer-lhe a cabeça, a boca seca, o estômago ansiado. Compreendia que não podia dormir, com o coração pesado de dúvidas e receios. Inesperadas apreensões vinham perturbar a confiança que até aí depositava cegamente naquela criatura, razão de seu viver.

Seus maus pensamentos eram acompanhados de terríveis presságios. - Estaria sendo enganado? – Não! Não era concebível tal hipótese. E firmou um propósito: jamais ousaria comentar tal fato com qualquer amigo, em busca de orientação ou aconselhamento, nem mesmo com parentes próximos. A liberdade moral de cada um era completa e, ainda, não desejava despertar em outros sequer um simples vislumbre de uma ofensiva suspeita.

Mas, as coisas como estavam não poderiam continuar. Tomou a decisão de passar tudo a limpo, esclarecer o que de fato havia de anormal entre eles. Já não deveria adiar a sua decisão de dar um basta naquela insuportável situação.

E a tempestade desencadeou-se com efeito dramático. Naquela noite entrou no quarto, onde Iracema já havia se recolhido, após largá-lo na sala, diante da televisão. Enfiara-se pelo quarto e atirara-se em seguida à cama, com o rosto escondido nos braços e nos travesseiros, a chorar, a chorar e chorar.

Ele sem saber como iniciar o assunto – quem sabe uma inquirição? – alguma coisa que o desabafasse. Aproximou-se de seu corpo, retirou um dos travesseiros, o que lhe cobria a cabeça, tocou-lhe nos cabelos. Coração aos pulos, respiração suspensa. Foi quando ela ergueu-se com sobressalto, como despertasse de profundo sono, pôs-se de pé para recebê-lo. Tomou-lhe as mãos, puxou-o para junto de si, fechou-o nos braços sobre o peito, e desatou a soluçar, como se só esperasse por ele para dar curso àquela explosão de desabafo.

Sem muito compreender, Amâncio cerrou-a forte no seu colo e pousou a cabeça no seu peito generoso, procurando fazê-la sentir, bem no fundo do coração, que ainda lhe era um amigo, um camarada fiel, disposto a amá-la, como amara durante a vida inteira.

E assim permaneceram algum tempo, estreitados nos braços um do outro, ambos não encontravam palavras. Foi um longo transbordar de soluços, que a ela sacudiam nervosamente o corpo inteiro. Deixou-a soluçar por longo tempo - Ah! O amor não se sustenta sem o elemento dramático, e lágrimas, muitas lágrimas! - Mas, pouco a pouco o temporal foi serenando, descaindo em longos e espaçados suspiros de desabafo.

Como conseguir entrar na seara do problema que afligia a vida reta do casal, sem a privação do amor, que era base da felicidade de parte a parte? Deveria descobri-lo! Mas, por certo seria adiado por mais algum tempo. Senti-la em seus braços, cheia de ternura, e quem sabe, cheia de remorso, sim, embora não quisesse admitir, suas lágrimas poderiam expressar sentimentos de remorso. Terá aprontado alguma...?... E, de si para si, afirmou com forte convicção - isso não tem cabimento, está tudo certo. Por que nos maltratarmos assim, se tudo está bem?

A súbita e inesperada entrega da mulher viera para curar-lhe qualquer mágoa ou inquietação. O momento era propício ao amor, e foi o que fizeram noite à dentro.

Pela manhã, ainda na cama, conseguira desvendar, em parte, aquilo que poderia destruir um lar e separar aqueles que tanto se amavam.

Ela completamente relaxada, com aparência tranqüila, finalmente confessou, sem muita delonga, o motivo de sua frieza: os agudos gruídos provocados pela gata angorá, da dona Olegária, a síndica do prédio, orgulhosa proprietária e senhora absoluta daquele animal, que a mantinha sempre limpa, escovada e devidamente composta em seus laçarotes, mas que se mostrava irredutível em deixá-la sair ao encontro de um gato vadio que demonstrava grande atração pela encantadora bichana, principalmente quando dos períodos do cio.

Muito habilidoso, o gato em questão, em suas escaladas, tudo fazia para se aproximar de sua pretendida. Mas, se por um lado a dita síndica tentava proteger sua gata, por outro, o malandro não dava sinais de desistência. Eram apelos e miados que decorriam durante noites seguidas. E isso, afirmava Iracema, causava-lhe falta de concentração no ato de amar.

A princípio Amâncio mostrou-se surpreso pela revelação, coçou a cabeça, murmurou alguma coisa ininteligível. Deu uma sonora risada. Recompôs-se e solenemente afirmou com toda convicção, chegando até mesmo a jurar que daria fim àquela situação, pois não deixaria que um simples gato viesse tirar a paz do seu lar e também da síndica, e saiu em defesa da dona Olegária, uma pobre criatura que já contava em muitos os anos. Tal defesa era acrescida de que esta senhora vinha a ser mãe do seu chefe imediato na empresa em que trabalhavam. Inclusive fora padrinho do casamento, vindo até mesmo a ser fiador no aluguel do imóvel no qual moravam, que com grande empenho indicou para o casal quando se preparavam para o casamento, sem falar em outros favores, tais como facilitar sua promoção, permitindo com que crescesse na empresa e alcançasse melhor salário. Os colegas de trabalho, decerto os mais invejosos, insinuavam que na verdade o que o chefe queria era alguém de confiança, sempre alerta às necessidades de sua mãe.

Reconciliação feita, prontamente prometeu que daria solução para este problema. - Sim, era questão de honra, esse gato teria o tratamento que merecia, ah! Isso teria, e o mais breve possível.

A promessa estava sinceramente feita, mas qual seria o meio de cumpri-la?

Estavam os dois sentados à mesa para o café da manhã quando o silêncio que envolvia a casa foi quebrado pelo soar agudo do interfone. De um salto Amâncio prontamente atendeu. Era o zelador, como sempre, curto no agir e prolixo no falar. Após longa explanação e delongadas explicações, finalmente conseguiu deixar claro que dona Olegária pedia para que fosse ao seu apartamento imediatamente. Coisa urgente, que não demorasse.

Amâncio não se fez demorar, prontamente se pôs a caminhar, numa total demonstração de subserviência. Tocou a campainha excitante, como que não querendo incomodar.

Após um prolongado silêncio dona Olegária, de cara fechada, abriu a porta e fez sinal para que entrasse. Em seus setenta e poucos anos, rosto cansado e pele alquebrada, lenço estampado sobre a cabeça, roupa em total desproporção de cores e chinelos adornados com extravagantes pompons. Tinha o rosto alongado e grandes narinas. Cumprimentou-o secamente indicando que sentasse. Sentou-se também, bem à sua frente, olhou-o longamente, tentou esboçar um sorriso. Ajeitou-se na cadeira adotando uma postura tensa e fechada, o que deixou Amâncio mais nervoso e apreensivo.

Amâncio também passou a ser observado pela linda gata que se aninhara no colo de sua dona. Jade é o nome da linda angorá, escolhido por sua zelosa proprietária por influência do zodíaco, possuidora de um completo mapa astral e uma personalidade quase humana. Devidamente paramentada com seu laçarote ao pescoço, não desgrudava seus olhos faiscantes sobre o pobre Amâncio em suscitado sentido de desconfiança e frieza, como se fizesse disso pretensa análise profunda de sua alma, deixando-o cada vez mais intimidado.

O olhar de dona Olegária também era brilhante e calculista. Falava pelos cotovelos, debatendo-se em queixas e lamúrias, raramente se predispondo a escutar aquilo que lhe era dito por quem quer que fosse e principalmente naquele dia em que estava estupidamente mal-humorada. Era realmente de causar mal-estar até mesmo ao Amâncio, que sempre fora solícito, atencioso e portador de certa placidez de espírito.

Lamentava-se a mulher do estado de solidão a que fora submetida e da ingratidão de seu filho que vivia longe e quase não a visitava. Que a sua única companhia era aquele fiel animal – disse isso se aconchegando da cabeça peluda de sua gata angorá – ressaltando as qualidades da fiel bichana. Criatura caseira, sossegada, totalmente dedicada à sua dona, fidelíssima.

Quase aos prantos, enxugando as lágrimas que escorriam de seu rosto, levando junto a pesada maquiagem, assumindo uma postura de dramaticidade. (Ah! O elemento dramático, e lágrimas, muitas lágrimas!). Fitando fixamente os olhos do seu interlocutor, finalmente revelou o motivo urgente da solicitação de sua presença:

- Veja você em que estado miserável foi levada a minha vida, não só a minha, mas principalmente a vidinha dessa adorável criatura (abraçando fortemente a gata e deixando cair sobre ela grossas lágrimas, o que, de certa forma, causou desconforto no pobre animal).

E prosseguiu narrando o seu sofrer, como se estivesse diante de um numeroso público, voz impostada, mãos trêmulas, olhos esbugalhados fixos em seu interlocutor. Reclamava de certo gato vadio que não lograva um segundo sem surgir como terrível espetro. Não deixando a gata sossegada sequer por um instante. E, com a voz moderada, quase sussurro, como que envergonhada, prosseguiu – principalmente nos períodos de cio da minha querida angorá - não a perdia de vista um só momento, rondava-a, fariscava-lhe os passos. Como se a vigiasse contra um estranho mal-intencionado, agia como um cão a ampliar limites, mijando muros e quintais. Parecia ter um mórbido gostinho de atormentar-lhe a vida.

E a revoltada criatura continuou a explanação em crescente interpretação, assustando o pobre do Amâncio, que apesar da aparência de se mostrar interessado na conversa, mantinha seu pensamento afastado, principalmente preocupado com seu horário de trabalho que já se aproximava. Fixou os olhos no relógio em seu pulso, sacudiu a cabeça para espantar os pensamentos que o dominavam, estava cansado de fantasmas, precisava despertar dessa prisão que o transformara em um mero animal acuado. E assim, em seus devaneios, assustou-se duas vezes: a primeira, com o chuvisco vindo da boca de sua interlocutora e a segunda pelo som gritante e desafinado acrescido de um dedo em riste acusador, bem perto de seu rosto seguido de furiosa ameaça: - se o senhor não tomar providências, terei que comunicar ao meu filho, que por certo, virá até aqui e dará fim a este sofrimento, o que com certeza não ficará bem para o senhor. Não é mesmo?...

E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuando forte no espírito, do até então controlado homem. Resolve que é preciso dar um novo rumo à sua vida. Um homem não pode viver eternamente acuado. Anseia liberta-se dos fantasmas da submissão, do domínio, entrar definitivamente no mundo dos vivos e viver feliz com sua mulher... Aquela mulher que agora povoava seu pensamento. Sim, seu pensamento o levou àquela noite bem vivida ao lado de sua Iracema.... - Ah! Mas que noite!....

Achou melhor parar de pensar. Essas idéias nesse momento podiam complicar mais o seu dia que já começara complicado e se deu conta que estava completamente atrasado para o trabalho.

O tempo passava e era urgente fazer alguma coisa. Em troca de quê devia ficar ali ouvindo aquela megera? E assim, foi se convencendo de que havia de tomar alguma providência. Quem sabe torce-lhe o pescoço!

Quando voltou a si, depois dos delirantes pensamentos, passou a mão pela testa, limpando o suor que lhe escorria para os olhos. Levantou-se de supetão, atravessou a sala em direção à porta. Já não queria questionar as verdades ou meias-verdades, realidades ou insinuações, definitivamente o que desejava urgente era só dar um basta naquela situação.

E uma verdadeira metamorfose se fez no interior do pacato Amâncio. Em seus ouvidos, como terrível pesadelo, ainda ressoavam as palavras de ameaça de dona Olegária – “.... se o senhor não tomar providências, terei que comunicar ao meu filho....” - Tais palavras de novo fizeram surgir suspeitas em seu peito, relembrando as caçoadas dos amigos do trabalho – Sempre procurara manter o seu chefe distante de seu lar e de sua esposa e não seria agora que iria vacilar em seus propósitos.

Agora totalmente descontrolado, ousou encarar e até mesmo desafiar a sua acusadora, aproximou-se dela e com voz alta e forte perguntou: - Por que a senhora não pede ao zelador para dar fim neste maldito gato? - E saiu porta à fora sem ao menos despedir-se. Deixando sua interlocutora totalmente atônita. A transformação fisionômica se fez de imediato na dureza da personalidade da até então durona síndica. Relaxou-se na cadeira em total desamparo. Seus olhos se voltaram para a porta, mas já não havia com quem lamentar-se, Amâncio já se fora sem ao menos uma fria despedida, só lhe restando a companhia da gata, que de sua parte também mostrava espanto de quem nada entendeu e já se sentia aborrecida pelo forte abraço de sua dona que a sufocava.

Realmente, Amâncio saíra porta à fora como um adolescente rebelde. Em sua cabeça agitada ficou refletindo sobre a cena que a pouco vivera, repreendendo-se por ter sido tão grosseiro. Tais lembranças voltaram com muita clareza em sua mente: - quanta agressão, quantas insinuações e prepotências!- E uma compulsão interna movia-o a seguir em frente. Uma vontade de se rebelar contra tudo que sempre fora: - um acomodado, um covarde!...

Quando deu por si olhou para o relógio e lá se foi cheio de pressa como se alguém estivesse à sua espera. De repente, diminuiu os passos e pôs-se a ponderar, por quem seria toda aquela pressa? Para que fazia isso todos os dias? Valeria à pena tanta correria? Nesse momento vê com certa clareza que nada disso lhe tem valido de nada, pelo contrário estraga-lhe a vida. Desvia-se cada vez mais de todos, isola-se de um convívio social numa apatia da qual não tem forças para escapar e, no entanto, não consegue livrar-se daquilo que lhes impõem sem lhe pertencer e, o pior, sem que reaja. Seria realmente um covarde? Ao certo apenas sabia que algo teria que ser feito o quanto antes. E nesse caminhar o único som que ouvia era o de seus passos e de sua própria respiração ofegante.

E foi nesse conflito interno que começou a sentir que estava sendo observado. Constrangido olhou para os lados para ver se alguém o espreitava. Respirando fundo e soltando o ar lentamente, acalmou-se tentando parecer o mais tranqüilo possível, quem sabe na tentativa de aparentar mais confiante do que se sentia, consultou o relógio discretamente, mais por hábito do que por interesse pelas horas.

Deu pela presença do zelador, surgido como por encanto de entre as colunas do prédio e alguns carros estacionados. Levantou os olhos e parou para cumprimentá-lo, estendeu a mão hesitante e tocou a mão estendida do zelador que, sem o mínimo esforço, engendrou uma conversa como se fora a coisa mais natural encontrá-lo ali e adivinhasse os pensamentos do pobre Amâncio que, surpreendido, encara-o e tenta dizer algo: – Ham?! .... Mas logo as palavras não lhe ocorrem e mal consegue pronunciar um bom dia! No entanto fora o suficiente para, no seu interior, refletir que realmente nunca havia tido tanta intimidade com um subalterno, pois até então seu relacionamento não passava de um simples cumprimentar. Tentou manter um equilíbrio interior e avaliar que, em poucos segundos, havia rompido os preconceitos sociais que nutria em seu interior, através dos quais se entrincheirava com aparente segurança, produto de sua rígida educação.

Amâncio contraiu-se num silêncio, mas o zelador loquaz e cheio de intimidade no falar fez estabelecer intimidade entre ambos e foi direto na inquirição: - Foi a respeito do gato malandro que foi tratado na conversa com nossa síndica? – insinuou o zelador, dando a impressão de estar sondando, provocando Amâncio, que por sua vez teimava em desconversar, em fazer mistério, não que quisesse irritar o outro, falando baixo e olhando para o chão sem, no entanto, deixar que em sua mente houvesse o questionamento: - Engraçado como certas pessoas não conhecem seus limites!

E entrou a falar de si, da sua vida e à medida que o zelador ia contando suas proezas de infância e fatos de sua juventude, Amâncio percebia o quanto foi tolhido em toda sua existência, se dava conta de que nunca tivera uma vida livre que pudesse dizer somente sua. Infância totalmente controlada pelo olhar severo de sua mãe que não o deixava deslizar nem por um lapso de tempo, que fosse. Crescera numa casa cheia de suspiros e recriminações. Nunca poderia ser capaz de um atrito com sua mãe. Guardava tudo dentro de si, sempre tentando digerir toda opressão a que era submetido. E como era difícil segurar o passado que tomava conta de seus pensamentos.

E assim ia perdido em seu pensar o pobre do Amâncio quando, finalmente, pode prestar mais atenção ao que dizia o zelador. As palavras ainda giravam em seus ouvidos de forma confusa, como fossem meras frases soltas, sem conexão. Procurou ser mais atencioso ao locutor e começou a juntar em sua mente o sentido daquilo que lhe era dito, embora ainda lhe parecesse quase absurdo. Falava ele sobre a frequência de sequestro relâmpago de gatos para churrasco e que os criminosos iam ficando cada vez mais ousados. Enumerava raças: Siamês, Persa e Angorá. Chegava a ser minusioso em nuanças como deveria matá-lo sem uso de atrocidades ou maus tratos. E havia ainda um outro detalhe que não podia deixar de ser observado, ou seja, evitar qualquer envolvimento emocional com o animal que seria preparado. Assim, o melhor seria construir uma armadilha para pegar o bichano, de preferência vadio, sem dono, matá-lo e tirar seu coro com muito cuidado para não ser danificado, pois é matéria de alta qualidade para tamborim.

Amâncio moveu a cabeça de um lado para outro, procurando orientar e ordenar seus pensamentos. Estaria ficando louco? Tais coisas ouvidas, sem sentido, dariam expansão a um iminente processo de loucura? E isso lhe agravava mais o sentimento de inferioridade e insuficiência. Olhos arregalados em franca expressão de terror, por tantas dúvidas. Sentiu então a mão do zelador segurar seu braço e sua voz a indagar se estava se sentido bem. Com a cabeça acenou que sim, tudo estava bem e com as mãos sinalizou que prosseguisse na conversa.

- É como eu dizia seu Amâncio – prosseguindo loquazmente o zelador, assumindo ares de filósofo e agora se sentindo ainda mais íntimo – a vida é muito breve, por isso devemos aproveitar os bons momentos. Se levarmos tudo muito a sério certamente perderemos os prazeres da vida. Assim, se a nossa digníssima síndica me acusa de cruel exterminador de gatos, por que me propôs dar fim ao malandro do gato que não deixa em paz sua angorá? Pois gato por gato, por que ele não mereceria viver e continuar paquerando aquela mimada bichana? Ora, seu Amâncio, eu digo, isso é discriminação. O senhor não acha?

-Sim, claro que sim! – anuiu Amâncio, lembrando-se mais uma vez que já devia estar mais do que atrasado para o trabalho. Mas, em seguida, tomou uma decisão: não iria ao trabalho naquele dia, pois afinal era sexta-feira, dia em que já se tornara freqüente a falta de alguns funcionários, sempre com as desculpas mais esfarrapadas, mas sempre aceitas e nunca questionadas. No fundo, essa era uma maneira que encontrava de se vingar de seu chefe que nunca reconhecia seus méritos, sua impecável assiduidade. E, de certa maneira, se recompensar pelos aborrecimentos da manhã. Além disso, pensava, precisava ser um pouco menos severo consigo mesmo. Vinha se esforçando demais ultimamente e ninguém reconhecia seus méritos. – Sim, afinal a vida é muito breve e todos merecem viver – filosofou Amâncio em alta e clara voz.

- Então seu Amâncio! Não é o que eu sempre digo? – Rebateu o zelador, prosseguindo em seu prosear, agora muito mais à vontade por perceber que o seu interlocutor aos poucos se integrava em sua narrativa.

Amâncio já estava bem à vontade, mas deu-se conta de que sua esposa devia estar preocupada com a demora. O porteiro, por sua vez também se lembrou do horário de almoço. Houve uma breve despedida e cada qual tomou seu rumo.

Realmente Iracema já estava bastante apreensiva pela demora. Há muito que Amâncio era esperado para o almoço, os preparativos estavam feitos. Mesmo nas mais frugais refeições, fazia questão de uma mesa bem posta.

Não houve desculpas pela demora, Amâncio simplesmente dirigiu-se ao banheiro, lavou as mãos, num ritual já bem conhecido por Iracema. Pôs-se à mesa. De repente, inopinadamente, ergueu-se sério e solene.

Quero levantar um brinde ao nosso amor, mas sob uma forma diferente. Dito isso, foi até o armário em que guardava uma única garrafa de vinho que ganhara há já bastante tempo, abriu-a num exagerado ritual, cheirou a rolha, encheu até a borda as duas taças que já estavam sobre a mesa e afirmou como grande entendido na arte enóloga: – Uma bela e saudável bebida! Este é um brinde a uma nova vida, pois afinal, a vida é muito breve, por isso devemos aproveitar os bons momentos! – Repetindo, com voz embargada pela emoção, aquela frase que tanto impressionara seu espírito.

Encaminhou-se até a sua Iracema, fitou-a profundamente nos olhos e elevou sua taça, sendo imitado por ela. Brindaram.

Aos olhos de Iracema tudo aquilo parecia muito estranho, por certo algo estava acontecendo. O que teria alterado os costumes sisudos de seu marido de uma hora para outra? Mas, afinal, realmente a vida é breve e temos que aproveitá-la! Rematou em seu pensamento.

Amâncio resolveu levar a sério seu propósito de não ir ao trabalho. Passou toda tarde ao lado de sua Iracema em perfeita harmonia e sentindo-se triunfante com o seu estratagema.

Chegada a noite, deitou-se e adormeceu, com a alma nadando em júbilo. No entanto, não eram esses os planos do destino. Foi despertado em plena madrugada por insistentes miados, numa real provocação. Sim, era ele, o malandro do gato importunador. Urgia, contudo, não perder tempo. Era preciso tomar qualquer providência para cessar tal perturbação. De um salto, levantou-se e saiu nas pontas dos pés, sem qualquer ruído que pudesse despertar sua companheira e se colocou encostado na coluna da varanda, concentrado, com os olhos fixos no animal, que permanecia a uma relativa distância a encará-lo. Amâncio percebeu que o comportamento do gato tornava-se cada vez mais estranho. Sempre se abstivera de maltratar ou exercer qualquer violência contra quem quer que seja, mas naquele momento começou nutrir gradualmente por aquela criatura um indizível ódio e um profundo desejo de vingança. Como gostaria de ter à mão uma arma qualquer que pudesse dar fim àquela situação. Lamentando-se retornou à cama, ao lado de sua esposa que, no entanto, permanecia mergulhada em sono profundo.

E assim foi a noite toda, a cada intervalo regular, lá estava o diabrete com seus gritos acrescidos de agudíssimos miados, despertando o pobre homem dos seus sonhos, deixando-o cheio de indefinível angústia e incontroláveis explosões de raiva.

O que aumentou, sem dúvida, o seu ódio pelo animal foi descobrir que na manhã do dia seguinte, à hora do café, lá estava ele tentando fazer contato, como se nada houvesse acontecido, chegando ao cúmulo de saltar para varanda e permanecer sobre a mureta que a circundava. Rosnava de maneira tão carinhosa, que era impossível não crer em suas boas ações, despertando em Iracema uma enorme simpatia e forte desejo de acariciá-lo, sentimento este que provocou em Amâncio desgosto e aborrecimento e quase incontrolado ciúme que fazia aumentar nele sua aversão pelo gato e nutrir em seu íntimo a determinação de matá-lo. Um rancor intenso, fatal, dominador, obcecava-lhe a razão e apagava-lhe do peito toda ordem que trazia até então. Se pudesse, naquele momento, seria fatal o seu destino. Mas o astuto animal percebera e se alarmara com a cólera interior de Amâncio e evitou permanecer na sua frente, saltando de volta em fuga, em passos leves e comedidos, como em debochada provocação.

Passaram-se o segundo e terceiro dias e o verdugo não aparecia, nem durante o dia ou à noite, o que fez com que Amâncio respirasse como um homem livre, levando-o até mesmo a comentar com o zelador o seu alívio, sendo, entretanto severamente advertido por ele, pois este agora já se sentia plenamente íntimo e arriscava-se até mesmo dar conselhos: - Não canta a vitória antes do tempo seu Amâncio, os inimigos não dão trégua até serem totalmente vencidos. – E prosseguiu em animada conversa, chegando até mesmo a formular convite para que Amâncio conhecesse a sede da agremiação que freqüentava e que, por coincidência, estariam prestes a escolhera rainha da primavera, evento máximo aguardado por todos sócios e freqüentadores daquela instituição todos os anos. O pobre homem, ainda não completamente cônscio de sua nova personalidade, não disse que sim ou não. Nada deu em resposta de imediato. Despediu-se e seguiu seu caminho, quase que lepidamente, tal seu estado de espírito.

Dito e feito. Naquela mesma noite lá estava o inimigo em seu costumeiro ato de desafio. Eram grunhidos e miados que tiravam a paz do infeliz Amâncio que agora parecia se dá conta de que realmente atravessava um perigo e que não sabia dar contornos ou nomear solução. Certamente sua sonhada paz estava distante.

E foi assim que resolveu levar a cabo todas as instruções que lhe fornecera o zelador para dar fim ao infernal animal. Porém sua consciência não o deixava livre: Não estaria cometendo um crime?... Mesmo assim estava decidido a dar um desfecho final àquele conflito. Não, não era hora de arrependimento

Aproveitando-se da ausência de Iracema, trancou-se no quarto de empregada, que era praticamente usado como depósito de pequenas ferramentas e coisas de pouco uso. Diante de vários pares de sapatos e outras coisas sem importância, encontrou uma caixa de madeira, fechada com uma tampa, puxou-a com força, examinou-a, juntou alguns pedaços de arames misturados a outros objetos que, de pronto julgou necessários. Após alguns cortes e marteladas deu por pronta aquela armadilha e iniciado seu plano de execução do inimigo. Os detalhes mecânicos foram conferidos criteriosamente. Balançou-a, testou sua resistência, não percebendo nada de errado. Saiu do quarto e respirou fundo. Caminhou-se até a cozinha, as pernas trôpegas e um sentimento de alívio agitava-lhe a respiração. Abriu a geladeira, pegou um belo naco de queijo, levou-o ao nariz e apreciou o seu agradável aroma. Sim, quem resistiria àquela isca. Ainda hesitou, quem sabe não fosse melhor ser menos pródigo na abundância do alimento? Isso não levantaria suspeitas por parte do inimigo?

Como quem nada quer, deixou o objeto de sua esperança em um ponto estratégico na área de serviço, saiu sem levantar suspeitas e pôs-se a espreitar às ocultas em seu quarto. Braços cruzados, olhar intenso e vivo fixado na armadilha. Em seu espírito reinava uma íntima revolta por aquele que ousara tirar paz de seu lar.

Num breve intervalo de tempo ouviu o ruído do desarmar de sua engenhoca. Seu coração disparou, mas se conteve e resolveu aguarda uns instantes.

Alguns minutos depois, cuidadosamente abriu a tampa, com todo zelo para que o precioso prisioneiro não escapasse. O que não contava era com a violência e esforço do animal que se tornara excessivamente agressivo, atingindo com suas afiadas garras as mãos e o braço de Amâncio. O homem mal conseguiu conter sua dor, mas controlou-se fechando rapidamente a tampa da armadilha, impedindo a fuga do aprisionado. Ficou um tanto perturbado, fez um esforço para por em ordem as idéias. Sim, ali estava o inimigo totalmente dominado. Não conseguia pensar em nada a não ser passá-lo para o zelador, que por certo, daria o fim que lhe aprouvesse ao inimigo que lhes era comum. Todas as precauções foram tomadas, afim de melhor guardar segredo de tal empreitada.

Naquela noite de sábado, Iracema estava exultante, não cabia em si de tanta alegria. Na verdade, ainda não tinha plena consciência da quase repentina mudança de hábitos e comportamentos de Amâncio, o que de certa forma, revertera em melhoria de qualidade de vida a favor do casal. Já se davam ao luxo de freqüentar cinemas e, algumas vezes, até mesmo uma peça de teatro, coisa rara nos tempos de inapetência para sair, por parte de Amâncio.

Ali se encontravam reunidos no vasto salão de festas da agremiação esportiva do bairro, cujo presidente era justamente Sandoval, o zelador do condomínio onde moravam que, por sua vez, não escondia sua satisfação em ter convencido o Amâncio a comparecer ao evento que tinha a honra de ser o organizador. Tudo havia sido preparado com esmero para que a data ficasse registrada como grande realização de sua gestão na presidência. Contratara uma banda que animaria o grande baile previsto para começar logo após o jantar preparado.

Com grande cerimônia, após mostrar todas as dependências aos seus convidados, ou seja, Amâncio, Iracema e outros vizinhos, entre eles a própria síndica, dona Olegária em sua indumentária festiva, concebida segundo sua própria maneira de combinar cores, muitas cores, que traziam certo alívio para o seu jeito de mandona e autoritária, motivo de orgulho de Sandoval que, com gestos de boa educação, conduziu seus comensais até a longa mesa sobre a qual se encontravam vários pratos ornados com grande esmero. E ali, em pomposa bandeja ricamente decorada, encontrava-se em destaque um belo assado cercado de fios de ovos. Bem no centro da bandeja, podia-se ver um animal de pequeno porte, tendo entre os dentes, em quase um sorriso debochado, uma pequena maçã, exalando um doce odor provocante aos convivas.

Sandoval apontou para o assado, deu um discreto piscar de olhos dirigidos a Amâncio e à dona Olegária e prontamente sugeriu: - por favor, senhores queiram servir-se. Afinal a noite está apenas começando e temos muito a comemorar nesta noite!

Amâncio retribuiu o conivente piscar de olhos, com um discreto sorriso e deixou escapar a frase que trazia gravada na alma, confirmando em alta voz o júbilo de vitória que mal continha em seu peito: - Sim, a vida é muito breve, por isso devemos aproveitar os bons momentos!

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 27/07/2010
Código do texto: T2402796
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