Desabafo de um Transeunte.

É tarde. O sol tórrido propõe esturricar as cabeças dos trabalhadores braçais, os de sol a sol. E ainda na rua me passa a porra do caminhão de som em volume máximo, atormentando a miserável população desta comarca de cão: os miguelopinos, os maledicentes, os bicomors.

A roupa suja e puída, o sapato empoeirado, a vida imunda, a carne amassada, apagada, tudo, tudo caindo aos pedaços. A vida aos trancos e barrancos. O casório a espreitar-me os dedos da mão; mera ilusão.

E fico imaginando o que leva aquela velha nojenta a me atazanar toda vez que lhe vem na telha a oportunidade para tal. Êta velha repugnante! Será que sente prazer em me ver furioso? Ao inferno, sua velha! Quero que morra e que o capeta esteja de plantão, que a terra lhe seja pesada, que os vermes lhe roam pouco a pouco!

Aonde quer que eu vá vejo poeira, baratas, traças, cobranças, filhos-da-puta ansiosos por informações várias. Terei eu cara de dicionário de alguma coisa? Vão todos à merda! Aliás, se afundem nela!

Ontem, por exemplo, vejam só, um baiano (nada contra a Bahia ou os baianos, ao contrário, adoro as baianas!) miserável, medindo aproximadamente metro e meio de altura, caindo de bêbado e com um semblante de psicopata, resolveu postar-se em pé diante minha mesa de cerveja, em que encontravam eu e minha noiva, a Anita do Irajá (conhecem?), e ficou a ouvir meu rockezinho, tomando minha gelada e olhando-nos com cara de demente, a balbuciar algumas idiotices sem nexo algum. De princípio imaginei que estaria de passagem, porém, com o tempo, começou a se servir de minha bebida e a encarar minha noiva. Diante isso quis estrangulá-lo, tão zonzo e revoltado estava, mas limitei-me a entrar no carro, juntamente com a noiva, é claro, e acelerar para o outro lado do bar. Porém, com aquilo, minha noite não foi a mesma. Senti-me agredido mortalmente por não ter espancado aquele imbecil. Deveria ter-lhe quebrado os dentes e jogado os pedaços no meio da rua, para todos verem como eu estava nervoso com aquela existência insignificante.

Ficou tudo no pensamento, na realidade sou cidadão respeitador das normas da sociedade, e jamais seria capaz de tamanha brutalidade. Correria inclusive o risco de perder a noiva para o próprio baiano bêbado de metro e meio de altura.

Como pode existir um ser assim no Planeta? Por que se regozijam em atormentar os puros de espírito? Seria tudo isso um teste aos puros de coração?

Sei lá, só sei que com essas atitudes complacentes de vez em quanto se evita a morte barata. Imagine se eu metesse a mão na cara do baiano bêbado de metro e meio de altura e esse, já esperando a agressão, sacasse de um revólver e me fuzilasse com um balaço no bucho. Não estaria aqui agora desabafando estas insolências.

Ainda, pelo que me recordo, esse tal baiano era trabalhador da usina, uma vez que insistia em mostrar-nos seu crachá ensebado, em que constava o nome: Lucio Marion, “El Cornon!”. Imbecil, é provável também que tenha sido demitido naquele dia e estava de mal com a vida, corneado, querendo encrenca com alguém, por mero desaforo. E o primeiro que encontrou deu sorte, por seu eu, um pacifista.

Lucio, seu baiano miserável, espero que no dia seguinte tenha encontrado meu cartão profissional que deixei em seu bolso da camisa e se lembre da palhaçada que andou fazendo, correndo risco de vida, e que por isso venha me pedir desculpas!

Generalizando a situação, é fato notório que por essas bandas existe uma população ribeirinha que tem por hábito o comentário da vida alheia. São os conhecidos “bicomors”. Nome sugestivo para um povo desmerecedor de quaisquer comentários.

Bicomor advém da junção de bico, bicudo, olheiro, fuxiqueiro, fofoqueiro, com mor, que, segundo o Aurélio, é a sincopada de maior, a abreviatura de maior. Portanto, bicomor significa fofoqueiro em grandes proporções.

Povo predominante em pequenas cidades, os bicomors são em sua maioria seres de poucos afazeres, telespectadores assíduos de novelas, bebedores de botecos de esquina, assalariados de pouca perspectiva, mal-pagadores, quase sempre pançudos e de nível cultural rudimentar.

São de fácil identificação, pois gostam muito de ficar sentados nas frentes de suas residências analisando os passantes na esperança de que alguns desses lhes forneça motivos para iniciar um fofoques, sua língua original.

Presume-se que por essa região o índice de bicomors ultrapasse os setenta por cento da população. São capazes, com seu fofoques, de condenar moralmente sua vítimas a ponto de esta ter de abandonar definitivamente a cidade. Falam, apenas, sem maiores provas, pelo simples prazer de aniquilar o caráter do próximo. São monstruosos.

Bom, creio que já perdi muito meu tempo descrevendo sobre os bicomors, que na verdade não valem um sibazol .

Estou cansado, ofegante e sem dinheiro, louco por ingerir alguns litros de cerveja gelada. Em minha vida as coisas são pela metade, incompletas, e sempre demoro mais que os outros para decidir alguma coisa. Acho que sou um desses extemporâneos, que pegam o bonde do dia seguinte. Demoro a pegar o fio da meada.

Para se ter uma base do que estou dizendo, até meu casamento, que provavelmente acontecerá quando já contar com trinta anos, marcaram a data por mim. Quando soube já estava marcado. Ao menos, espero eu, conseguirei casar-me na vida. Percebo que a mulher a qual me casarei supre minhas deficiências, sendo a recíproca verdadeira. Ambos nos completamos em pontos comportamentais distintos. Logicamente que ela possui mais qualidades, sem deixar, no entanto, de somar o que posso fazer. Usando um clichê por demais surrado, creio que fomos feitos um para o outro, pois ambos nos completamos mutuamente. E isso não poderia deixar de ser bom.

Deixando um pouco de lado essa história de matrimônio, que já está dando nos nervos, volto ao dia de ontem para relembrar uma passagem com uma senhora de cognome esquisito, apelidada Côca, jogadora de peladas de campinhos de terra batida e ébria de carteirinha.

Aludida senhora apresentou-se em meu escritório por volta das oito e meia da manhã, em dia em que teríamos uma audiência em que ela, a ébria jogadora, seria ré numa ação de cobrança promovida por um inseto, cujo verdadeiro nome não convém ser aqui revelado. Tal inseto temia por sua integridade, uma vez serem conhecidas as atitudes agressivas da outra. Como jogadora amadora das peladas da Vila dos Cachorros, possuía um petardo na canhota que causava medo nos goleiros adversários, fato que deixou o aludido inseto com a pulga atrás da orelha.

Pois bem, quando adentrou ao escritório logo percebi certa alteração em seu comportamento, o que me levou a supor que já havia ingerido algumas doses no café na manhã.

Foi logo sentando e expondo que em determinada circunstância o tal inseto a havia agredido com uma camiseta enrolada num parafuso, além de dar-lhe também um chute no traseiro, além de xingamentos horríveis perante todos na rua.

Disse-lhe que aquilo era outro caso, a ser discutido na esfera criminal, em nada se relacionando com a dívida oriunda de suas bebedeiras no boteco do dito inseto, dívida a qual que perfazia o equivalente a duzentos e cinqüenta reais.

Bebia e mandava pendurar na conta do Abreu. O inseto, por inexperiência ou por não ter outra saída, pois tudo já se encontrava no buxo da ébria, assim procedia, porém com a pulga atrás da orelha. No primeiro mês, a ébria arcou com os gastos, pagando criteriosamente o devido; no segundo, manteve a pontualidade, sem maiores delongas. Já no terceiro, meu amigo, como era de se esperar, abandonou o boteco e a dívida sem deixar rastros. Ou melhor, era ainda capaz de passar na rua ostentando uma panca de quem nada deve, o que deixava o inseto cada vez mais com a pulga atrás da orelha.

No decorrer dessa situação os nervos do inseto foram se aflorando, ainda mais quando outros bêbados de plantão zoavam seu pote como sendo mais um paspalho que tomou calote da outra, e que todos já imaginavam que isso aconteceria, mais dia menos dia.

O que sucedeu foi que toda vez que a ébria passava pela rua o inseto armava uma tocaia na vã esperança de ofendê-la ou agredi-la de alguma maneira.

Deu no que deu. No fim das contas, um acordo.

Espero apenas que não voltem a se agredir respectivamente. Seria singular uma batalha travada entre um inseto e uma ébria jogadora de campinhos de terra batida...

Cristiano Covas, 24.11.05.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 30/07/2010
Código do texto: T2407908