JOÃO CARDEREIRO (baseado em fatos reais)

O cenário é a Zona da Mata mineira, nas imediações onde hoje se encontra a cidade denominada Ervália, na época, por volta de 1870, apenas um povoado por nome São Sebastião do Herval. Chegava à região um jovem aventureiro chamado João da Costa Tavares, oriundo das bandas de Campos dos Goytacazes, estado do Rio de Janeiro, que após perambular por meio mundo veio tentar a sorte como garimpeiro procurando ouro no Turvão, rio que banha a região.

Garimpou por algum tempo sem muito sucesso, conseguindo apenas o bastante para não morrer de fome. Desanimado com o pouco retorno já estava para juntar as trouxas e seguir sua vida nômade, quando lhe foi oferecido serviço para cuidar dos cavalos da fazenda do Monsenhor Rodolfo, o pároco local. Era comum naquela época padres serem também fazendeiros com vários animais e lavouras. Por já estar passando alguma necessidade, João decidiu aceitar o trabalho pensando em recompor as energias e juntar algum dinheiro para então cair no mundo novamente.

Acontece que a vida lhe reservava outro destino. João apaixonou-se pela serviçal do monsenhor, uma bela negra que aparentemente correspondia-lhe o interesse. Bernardina, pois era assim que se chamava a jovem, era moça trabalhadeira e prendada, filha de escravos que nasceu beneficiada pela Lei do Ventre Livre. Tão logo parou de mamar no peito foi separada da mãe que foi vendida, sendo educada pelos senhores da fazenda que passaram a nutrir por ela um certo carinho. João da Costa ficava admirando a bela negra na lida, lavando roupa na bica, dando milho às galinhas e varrendo o terreiro da fazenda. E ela de vez em quando lançava uma espiada lá para as bandas da cocheira e o olhar dos dois se cruzavam por breves instantes, o bastante para deixar a ambos nas nuvens. Perdido de amor, João abandonou de vez a idéia de ir-se embora. Somente partiria se levasse consigo aquela por quem seu coração batia mais forte.

Monsenhor Rodolfo, tomando conhecimento das intenções do rapaz e da correspondência por parte de Bernardina, tratou logo de promover a união do casal. João da Costa então radicado de vez na região, voltou a praticar a profissão aprendida em família, a de fabricante de tachos de cobre, lamparinas, canecas, panelas e outros utensílios. Profissional talentoso que era, logo ficou conhecido na região e não faltaram encomendas. De vez em quando pegava algumas peças, colocava no lombo de mulas, e montado a cavalo perambulava pelas fazendas da redondeza vendendo suas obras. Ás vezes ficava fora a semana toda, mascateando daqui e dali, ocasião em que matava a saudade de sua antiga vida nômade, dormindo ao relento e sentido a brisa fresca no rosto. Sempre que viajava, sua Sá Bernarda, que era como tratava a esposa, ficava em casa cuidando dos filhos e de suas funções na casa do Monsenhor, pois este não abria mão de seus serviços.

E assim os anos se passaram e a vida seguiu tranqüila. João ficou conhecido não somente em São Sebastião do Herval, mas em toda a redondeza. Recebia encomendas de várias localidades, e suas incursões como mascate eram aguardadas e tidas como certas. O casal teve quatro filhos, três meninas que cedo se casaram como era costume, e um menino. Estamos agora no ano de 1912, e o filho mais novo chamado João Bernardino, fusão do nome dos pais, conta com 12 anos de idade quando ocorreu o fato marcante que queremos narrar:

O pequeno João já há algum tempo ajudava o pai na oficina e demonstrava uma grande inteligência, tanto para o trabalho manual, quanto para os estudos. Entusiasmados com o filho, o casal querendo garantir um futuro melhor para ele, já haviam combinado com o Monsenhor Rodolfo que no ano seguinte quando completasse 13 anos João Bernardino iria para o seminário a fim de estudar. Naquela época filhos de famílias pobres somente conseguiam estudar dessa forma, no seminário.

João da Costa estava com um bom estoque de tachos, panelas, lamparinas e canecas e sentiu que precisava fazer uma viagem para vender os produtos. Conversou com Sá Bernarda acerca de seu desejo de levar o filho caçula consigo, uma vez que em breve ele iria para o seminário e seria talvez a única oportunidade de viajar com o menino. Além disso, há muito prometia levá-lo, e sempre descumpria a promessa por interferência da mãe que zelosa achava arriscado. Dessa vez, porém, Sá Bernarda concordou ao ver que o filho estava louco para viajar com o pai.

Os dois prepararam tudo, arranjaram as mercadorias, o pai providenciou um cavalo manso e robusto para o filho, e deixaram tudo certinho para saírem bem cedo na madrugada seguinte. Naquela noite, Sá Bernarda não pregou o olho, sensitiva que era estava com o coração apertado. Com maus presságios, agarrou o rosário e rezou a noite toda. Do lado João da Costa dormia pesadamente como de costume. Em seu quarto, João Bernardino, excitado com a viagem custou pegar no sono.

De madrugada, quando os dois se levantaram a mulher já estava com o fogão à lenha aceso e o café pronto. Preparou alguma merenda para a viagem, deu as ultimas recomendações ao filho, e despediu-se com tristeza. Ficou parada de pé na porta olhando os dois à cavalo puxando as mulas e seguindo pelo caminho até sumirem de sua vista. “Estão nas mãos de Deus”, pensou ela.

O primeiro dia de viagem foi tranqüilo. Passaram por várias fazendas onde foram saudados com alegria já que o mascate de ocasião era esperado há algum tempo. Além de fazerem bons negócios desfrutavam da hospitalidade simples e sincera típica dos moradores da roça. O pagamento nem sempre era a dinheiro, sendo também em arroz em casca, milho, café em grão e alguns objetos antigos nos quais João via possibilidade de venda após serem recuperados. Nessas barganhas vinham garruchas velhas, medalhas e cordões de ouro e até tachos furados. As mulas coitadas sofriam bastante, pois descia mercadoria nova e subia mercadoria velha. O menino João Bernardino olhava a tudo com curiosidade e pelo caminho enchia o pai de perguntas acerca dos lugares e das pessoas.

No segundo dia o ritmo foi mais lento, o rapaz notou que seu pai estava mais calado e não lhe respondia algumas perguntas, ou então respondia com evasivas. Várias vezes viu o velho levar as mãos ao peito e depois tomar alguns goles de água no cantil de cobre. Haviam programado pernoitar em Bom Jesus do Madeira, Povoado que pertencia à cidade de Santa Luzia do Carangola, mas pelo batido da viagem não iria dar tempo e teriam que dormir ao relento novamente. Já no crepúsculo o pai divisou uma árvore situada a uns quarenta metros da estrada, próxima a uma curva no alto da serra denominada Pico do Boné, e disse que iriam acampar ali como já fizera outras vezes. De fato o local era aprazível e adequado para o pernoite. Quando estavam descarregando os animais, João da Costa ao agarrar um saco mais pesado, soltou um grito de dor, deixou o volume cair e foi para o chão gemendo com as mãos peitos. João Bernardino assustado correu em socorro do pai que deitado na relva, respirando com dificuldade, de olhos arregalados fitava o céu. Vendo o menino diante de si com os olhos marejados, o velho mascate segurou com força suas mãos e balbuciou algumas palavras que o filho entendeu: “Não tenha medo. Seja firme. Cuide de sua mãe”. E afrouxando as mãos, suspirou e parou imóvel. Inteligente, o garoto percebeu logo o que acabara de acontecer e começou a chorar baixinho. Nem sabe por quanto tempo permaneceu ali, ajoelhado ao lado do pai, chorando e soluçando. Quando deu por si já era noite fechada. Lembrando das últimas palavras do pai dizendo para que fosse forte, aliviou ou animais, pegou os sacos de dormir, estendeu-os, conseguiu com muito esforça acomodar o corpo do pai sobre um deles, cobriu-o com a manta e deitou-se do lado. Chorou e rezou o tempo todo, até que foi vencido pelo cansaço e adormeceu. Acordou com um homem cutucando-o e perguntando o que acontecera. Contou tudo ao desconhecido que morava ali perto e conhecia seu pai já há bastante tempo. Juntos acomodaram o corpo no cavalo e seguiram para Bom Jesus de Madeira, onde João da Costa gozava de boas amizades, e os amigos providenciaram o sepultamento.

João Bernardino retornou com a pequena tropa para São Sebastião do Herval e ao vê-lo chegar sozinho com cavalo do marido vazio, Sá Bernarda compreendeu tudo e via na cena apenas a constatação de seus pressentimentos. O menino desceu e veio caminhando abatido, e antes que dissesse qualquer coisa, a mãe durona o recebeu com um abraço sem verter uma lágrima sequer, mas sabia ela que era a grande custo. Disse simplesmente ao filho: “entre, coma, descanse e depois me conte tudo”.

Nos dias que se seguiram mãe e filho receberam a solidariedade dos moradores do povoado. Diante das circunstancias a ida de João para o seminário foi cancelada por conselho do próprio monsenhor, pois como filho caçula e único homem, deveria permanecer ao lado da mãe para cuidar de seu sustento. O menino agora tocava a oficina atendendo às encomendas. O que causava grande preocupação era uma grande encomenda que João da Costa havia pegado pouco antes de falecer e pela qual já havia recebido um substancial adiantamento. Tratava-se de construir uma grande tacha de cobre, com um mecanismo de engrenagens e manivelas para movimentar com a engenhoca, destinada a fabricação de rapadura e aguardente. O adiantamento fora usado na compra do material, grandes e grossas chapas de cobre e peças de outros metais. O material havia chegado e o rapaz estava inseguro para fazer o serviço por tratar-se de empreitada complicada e difícil. Por outro lado não havia como devolver o dinheiro ao fazendeiro. O cliente concordara em esperar algum tempo, mas não podia delatar muito, pois queria começar logo a fabricar as rapaduras. João Bernardino desesperado perguntava à mãe o que iriam fazer, e ela serena dizia apenas: “Tenhamos fé. Tudo há de se ajeitar que Deus não nos desampara”. O menino se tranqüilizava um pouco e Sá Bernarda entrega-se às orações esperançosa.

Uma noite após tentar inutilmente desenvolver um esquema para construir o engenho, exausto João Bernardino pegou no sono mal concluindo a oração do Pai-nosso. Dormiu pesadamente e sonhou com o pai que se encontrava ao seu lado na oficina. João da Costa estava rejuvenescido e de bom aspecto. Conversava com o filho dizendo: “Estou orgulhoso de você. Confio em sua capacidade e com certeza fará a encomenda com êxito. Preste atenção que vou te explicar detalhadamente como fazer tudo”. Dito isso se pôs a explicar como executar a obra, passando as medidas corretas, a posição pra cortar as chapas, quais ferramentas usar em cada etapa do serviço, enfim, todos os detalhes. Depois ordenou ao rapaz: “Agora acorde, levante, desenhe tudo e anote todas as instruções que lhe passei para que não esqueça. E que Deus te abençoe”.

Nesse instante João Bernardino acordou, pegou lápis e papel e cumpriu as determinações recebidas em sonho. Escreveu tudo por mais de uma hora, parecia estar num estado de torpor e não entendia direito se fora sonho ou realidade, tão nítida a presença do pai. Depois disso deitou-se novamente e dormiu. Ás seis da manhã, Sá Bernarda acordou como de costume, ascendeu o fogão à lenha, colocou a água para o café e foi acordar o filho. Ao passar pela sala viu admirada as folhas de papel espalhadas na mesa, algumas caídas no chão. Pegou tudo e examinou, reconhecendo nos papeis um projeto completo como muitos outros que vira o marido fazer. Acordado, João contou à mãe sobre o sonho e tudo que acontecera, e também olhou admirado o projeto da obra com riqueza de detalhes. Seguindo as instruções ali contidas, a obra foi executada com maestria e perfeição. O fazendeiro feliz com o serviço tratou de divulgar a competência do rapaz que venceu de vez a desconfiança da clientela e tornou-se profissional mais famoso que o próprio pai. Ainda hoje está lá a grande tacha na fazenda do senhor Onofre Cândido Rezende, embora sem uso permanece como prova desse momento dramático e belo na vida de João Bernardino Tavares.

E quem perguntar aos moradores mais antigos da cidade de Ervália e redondezas, certamente muitos se lembrarão de um tal de João Cardereiro, profissional competente na lida com os metais, bombeiro hidráulico que também se tornou músico tocador de clarineta e maestro da lira musical. O apelido com o qual foi agraciado, Cardereiro, é uma corruptela de Caldeireiro.

Muitos anos depois, na casa de sua viúva Lauricena, seus netos ficavam admirando os objetos que havia num caixotão de madeira na varanda da cozinha: velhas clarinetas, estojos de madeira contendo partituras, e ferramentas antigas. Tinha até uma velha bateia, objeto usado por antigos garimpeiros, e que um dia representou a esperança de enriquecer de um tal João da Costa Tavares garimpando no rio Turvão.

João Eduardo
Enviado por João Eduardo em 16/09/2006
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