Desembarquem Pelo Lado Esquerdo...

Esta é uma obra de ficção, qualquer acaso com a realidade é mera coincidência.

Viva também os momentos ruins! Não se deixe fazer sofredor! Na dor e no amor o sol apresenta seu belo espetáculo todos os dias pela manhã. Veja que belas flores nascem mesmo no estrume.

“Estação Sé do Metrô: Desembarquem pelo lado esquerdo trem”.

Dificilmente conseguia local para sentar nesse horário do trajeto. Como sempre, se quisesse ler alguma coisa teria de ser em pé mesmo, recostado no cano de segurança ou na porta do vagão. Nestas circunstâncias absorvia leituras das mais variadas. Fixava-as de tal modo na mente que até hoje pressupõe que de algum modo colaboraram para o que é hoje, ou seja, quase nada. Assim leu A Idade da Razão, de Sartre, “demasiados” Nietzsches, Camus, Hesse, Fausto Wolff, Carlos Drummond de Andrade, Joseph Conrad, Willian Blake, Dostoievski, etecétera. Saía pelas manhãs rumando ao desconhecido, pois na Sampa desvairada qualquer local, por mais conhecido que seja, por fim acaba se tornando estranho.

Nos ônibus as coisas eram mais intensas; era quase que um teste de concentração e controle emocional: esbarrões, cotoveladas, xingamentos, odores desagradáveis, expressões nervosas, solavancos e o pior de tudo, o constante receio de perder a descida. Desse jeito, que se lembre, leu O Estrangeiro, de Camus e A Metamorfose, de Kafka. Este último o leu num único trajeto de um dia tórrido de verão. O livro é pequeno, não chegando a cem páginas, e seu trajeto não sei por que demorou umas três horas, dentro da velha São Paulo, entre vais e vens que davam-me a impressão de estar passando sempre pelo mesmo caminho, num “eterno retorno”.

Pelo que recorda, a leitura estava tão aprazível que não dera a mínima às reclamações dos demais passageiros, deveras resmungões e amargos. Sei que saiu meio zonzo do ônibus, quase sendo atropelado ao descer. Daí, como quase sempre, rumou mais uma vez feito zumbi em busca de um botequim, no intento de molhar o bico e pensar na vida de monstro que o pobre do Gregor levara. Pobre diabo, pensava, o que deve ter tomado para ter tamanhos delírios?

Sua vida se resumia em ler o quanto mais livros pudesse e beber quantas cervejas conseguisse. Porém, tinha como obstáculo não somente sua carcaça frágil de homem, com suas limitações de praxe, mas principalmente seu bolso de universitário, costumeiramente com saldo contado.

Contava com dez contos por dia; três para o almoço; dois e cinqüenta para lanche da tarde e transporte, e quatro e cinqüenta para a cerveja nossa de cada dia, infalível. Contabilizando, tinha de fazer milagres diários para se virar.

Suas finanças viviam em total descontrole , principalmente quando se encasquetava de comprar algum livro que lhe chamasse atenção, mais ou menor como aconteceu com Nietzsche, quando uma “luz” o impeliu para o exemplar de O Mundo Como Vontade E Representação, de Shoppenhauer, exposto na prateleira de uma banca imunda de uma rua da Basiléia. Sendo assim tinha que comprar, mesmo que tivesse que passar o resto do dia na pindaíba, sem almoço, sem lanche e sem cerveja, voltando inclusive à pé para casa, em uma hora e meia de caminhada, em trajetos sórdidos, sem lenço mas com documento. Para isso possuía um trunfo, um cigarrinho mágico que guardava especialmente guardava na carteira para momentos como esses, quando se encontrava entre a “cruz e a espada”. Dentro de uma cabina telefônica, transformava-me num super-herói de quadrinhos ou num poeta maldito, tudo dependendo das circunstâncias.

Seu maior temor não eram os criminosos, mas sim os homens da lei, que botavam a dúvida se eram ou não da lei.

Nunca teve maiores problemas com a polícia. Sempre se mantiveram à distância, espreitando e imaginando o que se passava em suas mentes. Eles, o que ele fazia ou estava fazendo; ele, se eram corruptos ou criminosos disfarçados de polícia.

Morava numa pensão acompanhado por três viúvas aposentadas, que ansiavam desesperadamente por saber sobre sua vida, o particular, o íntimo, o âmago, se possível até o que havia dentro de sua barriga. Sabiam apenas que cursava Direito numa Universidade, gostava de correr e beber cerveja, nada mais. Viviam a questionar-lhe sobre seu dia-a-dia, o que quase sempre o levava a dar respostas evasivas, tipo, biblioteca pela manhã, almoço, trabalho até as seis, faculdade e casa. Elas não acreditavam e sempre direcionavam olhares incisivos: você bebeu, faltou da aula, comeu uma puta e fumou maconha. Quase sempre elas estavam erradas, quase sempre.

Tinha uma amante e meia dúzia de amigos, se é que podia considerar aquela corja de imbecis de amigos, eram mais conhecidos de bar e de faculdade. Um apenas freqüentava a mesma sala que ele, era um baitôla chamado Eli Antonio Casimiro de Abreu, que, quando bêbado, se dizia parente do escritor. Funcionário público de meia idade, alcoólatra irreversível e homossexual enrustido, possuía um tom de voz cavernoso. Quando o viu, ou melhor, quando o ouviu pela primeira vez estava na sala de aula, na última carteira, quando ouviu um estrondo de voz adentrando à sala de aula xingando um magricela que estava ao seu lado: seu imprestável! Hipócrita, insignificante! Que a terra lhe seja pesada! Assustou-se com aquilo e logo imaginou que ali tinha um homenzarrão com H maiúsculo, sendo que na verdade não passava de um boiola dos mais depravados. Contava à época com quarenta e cinco anos e não se lembrava do dia em que começara a beber e fumar, muito menos quando virou gay. Achava que tudo era de nascença, que o médico logo ao nascer lhe ministrara uma dose de uísque na veia, dando-lhe uma tragada de cigarro e enfiando-lhe por fim um supositório monstro no rabo, momento em que as coisas mudaram em sua vida. A partir de então nunca mais fora o mesmo. Era o primeiro a chegar e o primeiro a sair da sala de aula, e era também quem incitava os demais a freqüentar o boteco que ficava em frente à universidade, um boteco chamado General, de propriedade de um sujeito magricela, míope e asmático apelidado Magrão. Maconheiro e bem humorado, exceto quando em crise asmática. Magrão sempre o cumprimentava com um long live rock ‘n’ rool, mudando rapidamente de estação, procurando alguma que pegasse rock.

No bar surgiam personagens exóticos e mulheres suculentas, que para ele não passava de um olhar de desejo. Sem dinheiro, sem carro e ficando calvo, mulher não lhe dava muita atenção. A não ser algumas gatas pingadas que, contrariando a regra, viviam a lhe perseguir, a Sheila, a Renata e a Claudia eram as três que se revezavam com ele em camas de motéis infectos da região central de São Paulo. Porém quem lhe partiu mesmo o coração fora a Claudia.

Sexo para ele tinha de ser regado a álcool, caso contrário não teria graça. Uma boa transa é aquela em que ambos estão embriagados, onde as carnes se fundem, transformando-se em um único ser. No mais é amor, e sexo não se confunde com amor. A final, nos dizeres do Jabor, amor é prosa, sexo é poesia.

Não, não, não é nada pessoal, nada com você, é com o Estado democrático de direito que impera nessa mediocracia! Sua indignação atira contra essa cambada de canalhas burocratas sedentos por verba, bufunfa, money, faz-me-rir e o diabo a quatro!

Quase tudo no Brasil é contra o próprio povo brasileiro, a maior vítima da corrupção, da burocracia e da miséria, da falta de informação, de formação, de ilusão, esse povo cão que vive de modo caótico cada dia que passa, com o sol a esturricar-lhes as carnes na lida diária de ódio, a cachaça, o fígado, os nervos e por fim, quem sabe?, a flor na lápide de concreto barato, aguardada ansiosamente pelas baratas e roedores. Esse povo vive no limiar da loucura, da neurose e do sofrimento. E luta cada dia pela sobrevivência, sem apoio dos comandantes de hoje e de antes. Os órgãos do governo são máquinas coletoras.

É uma comédia, não pode ser, alguém está escondido tirando sarro da nossa cara, não é possível! E como somos fracotes por não conseguirmos enfrentar a minoria de sanguessugas! E como somos fracotes!

Em muitas vezes foi assim que saíu do prédio de um órgão do governo, um banco, prefeitura, fórum, telefônica, companhias e mais companhias de que não se sabe o que, quantas vezes chutou a lata de lixo no lado de fora, na rua, sem que ninguém o visse, ou o que, às escondidas, o visse e risse do tolo nervoso que acabou de sair dali. E furioso atravessaria a rua acendendo um cigarro, mesmo com ressaca e enojado de tabaco, e rumaria para o primeiro botequim que visse na frente e pediria uma cerveja “bem gelada, por favor!”, enquanto o garçom o olhava com aquela cara de pastor nordestino insinuando que àquele horário, nervoso como estava, não era um bom momento para encher a cara. Enquanto apenas pensava nos continuaríamos assim, ele no canto do salão, a ouvir umas japonesas cantarem no karaokê e a ser espreitado pelo garçom que agora já desconfiava ser gay. Sacava de uma obra literária, Der Steppenwolf, O Lobo da Estepe, e começava a mergulhar seu corpo na cerveja e sua alma nas divagações de Harry Haller, aquele pederasta filho de uma figa. Quando deu conta cinco garrafas vazias jaziam sobre a mesa. Sessenta páginas degustadas e uma insanidade se aflorando em sua cabeça.

Pedia a conta, mas seu dinheiro não ia dar para pagá-la, logo percebia, teria que garantir de alguma forma. Deixou o relógio, avaliado em duzentos reais, que havia ganho da Claudia, aquela cadela sapeca!

Seu coração deu um suspiro de ansiedade, precisaria urgentemente arranjar grana para resgatar meu relógio. O pobre ficou dezenove dias em garantia no bar. Sua sorte foi que o gerente não achou comprador, pois, caso contrário, estaria até hoje sem relógio.

Nunca comprou um relógio em sua vida. Aliás, acho que nunca comprou muita coisa em sua vida, muita coisa mesmo, acha até que não comprou quase nada, ou seja, tirando bebidas e comidas, uma bermuda aqui, uma camiseta acolá, uma calça, uma camisa, uns cd´s, um toca cd´s, um walkman do Paraguai, umas pilhas e uma luva para fazer musculação. Tudo o mais ganhou das pessoas, amigos, conhecidos, namoradas, mamãe ou papai. Sentia vergonha de si mesmo. Mas nem sempre.

Quando ao sol, a atravessar a Brigadeiro Luis Antonio da Av. Paulista até o Centro Velho, muitas vezes chapado, lembrava-se vivamente das andanças de Dom Quixote e Sancho Pança, dois alucinados montados no lombo de seus cavalos, armados de lanças e facas, tomando não se sabe o que, ou fumando também não sabe o que, numa época de vacas magras, em pleno negror da Idade Média, à caça de monstros, tesouros e amores perdidos na imensidão dos desertos espanhóis. Enquanto ele, mais um transeunte jogado em divagações desconexas, percorria ruas com destino incerto. Era levado pelo vento, ora pelo vinho, feito folha seca. Tinha todos os sentimentos do mundo com relação a si mesmo, porém não era nada e nunca quereria ser nada, ao modo do maior dos poetas, Fernando Pessoa.

Sua lança eram seus livros; sua algibeira, sua pasta, seus dragões, sua mente, seus monstros, suas ilusões. Seus pastos estavam abarrotados de gente, que se esbarra e esbraveja no meio do nada da rua que derrete quando o caminhão passa, e sua chinela havaiana ficava colada no piche, arrebentando as tiras que não descoram, e jaz ali, afundada no inferno de piche quente, com pessoas a rir e outras, senhoras idosas, a se condoerem com o pobre rapaz que perdeu a chinela, porém não perdeu as estribeiras.

Revoltado, corria para a lojinha de um e noventa e nove e comprava à prazo uma sandália nova, mas barata, para quebrar o galho, e que não fosse havaianas, prometendo pagar no fim do mês, mas tendo que deixar garantia que não podia ser o relógio, tendo mesmo que ser nota promissória. Em circunstâncias assim a única solução era ceder, não feder, ceder, uma vez não ser permitido adentrar no Metrô sem calçado.

Pegou o gosto pela coisa e foi assim que virou hippie pela primeira vez, o gosto pelas sandálias, ideologia que perdurou por aproximadamente três semanas, quando não agüentou mais seu próprio fedor e caiu no chuveiro por vinte minutos. A partir de então nunca mais foi hippie.

Quando se recordava de certas coisas que fizera e que deixara de fazer, caia na risada sozinho, percebendo o quão fora besta e sábio ao mesmo tempo, em questão de milésimos de segundo. Por um lapso ganhou o mundo, num lance de gênio, e por outro o perdeu, numa tacada idiota. Esta é sua vida e não se arrependeu de nada do que fez. Vive cada dia como se fosse o último, pois não saberia distinguir quando o verdadeiro chegará.

Era um domingo morno de outono de 1.999 quando aquele imbecil do Astrogildo ligou, com sua cabeça gigante, seu corpo franzino, minúsculo, e sua fala ágil e afeminada:

_ Ou, vi no jornal que hoje terá uma homenagem ao Raul no Shopping Morumbi. Vamos?

_ Ah, cara, tô meio sem grana, não sei se vai dar para ir não, ainda mais no Morumbi Shopping! Tudo lá é caro pra caramba!

_ Vamos, cara, se não der eu complemento com o meu cartão! Vamos lá!

_ Então vamos, vai! Que horas?

Foi assim que se encontraram na Estação Vergueiro do metrô e pegaram um ônibus para o Morumbi Shopping, local de ricos e burgueses, e que até então nunca havia entrado.

Logo percebeu que, apesar do dia aprazível, um clima gostoso e nosso gosto por Raul, alguma coisa não estava correndo bem nos bastidores do desconhecido. No ônibus um negro bêbado encasquetou conosco, dois brancos sem preconceitos, que conversávamos sossegadamente sobre o mestre Raul Seixas, suas letras, sua vida, suas aventuras na história do rock nacional, até que o dito bêbado sentou no colo do Astrogildo e disse não sair mais, esfregando cada vez mais o rabo fedorento no colo do Astrogildo que, com uma cara de nojo, empurrou o velho para o chão, fazendo com que este batesse com a cabeça no cano de segurança, rachando-a, momento em que o melado desceu a jorros púrpuros. O bêbado esperneava feito uma leitoa em véspera de ano novo.

Sem pensar, acionaram a parada e saltaram correndo, mesmo estando ainda longe do Shopping, com uma multidão enfurecida, motorista, passageiros e outros que presenciaram ou ficaram sabendo da tragédia: dois jovens espancam um velho negro dentro de ônibus!

Conseguiram escapar, mas continuaram achando que estávam sendo vigiados, e que a coisa não fora tão simples assim.

Esqueceram tudo e pegaram duas latas para cada, enquanto caminhávam rumo ao sonho de ver uma homenagem a Raul. Até então nem filmes havíam visto sobre o mesmo, conhecíam apenas as músicas, e eram fanáticos por ele:

“Quando esqueço a hora de dormir,

E de repente chega o amanhecer,

Sinto uma culpa que eu não seu de que,

Pergunto o que é que eu fiz,

Meu coração não diz, mas,

Eu sinto medo!

Eu sinto medo!...”

Quando entraram no local onde seria a homenagem, dava a impressão que tínham tomado um choque 220, tanta energia concentrada, ansiosos por beber e sentir o clima Rauseixista. Pouca gente no local, praticamente ele, o Astrogildo e mais um casal de lésbicas, além dos cantores, garçons, etc.

Começaram com o Chopp e terminaram na rua, enxotados pelos seguranças do Shopping, enquanto Astrogildo, no auge de seus um metro e cinqüenta e nove de altura, esbravejava feito um lobo selvagem em busca de seus direitos: havia sido roubado na conta!

Sucede que beberam demais, perderam a conta e quando ela veio constou um montante que não esperavam, aproximadamente, à época, uns cento e cinqüenta reais, algo que para dois vagabundos universotários era uma fortuna. O Astrogildo, se sentindo lesado pela má-fé do gerente, pois achava que o mesmo exagerara na conta, errando alguns cálculos, botou a boca no trombone, xingando Deus e o Mundo. Ocorre que, após fundadas ameaças de espancamento, se possível com ocultação dos cadáveres, por parte dos seguranças do Shopping, caso não pagassem a conta, pagaram e mesmo assim foram expulsos feito cães sem dono do Morumbi Shopping. Fora a primeira e possivelmente a última vez que pisou naquele local.

Tudo o que sonhava quando lia Fausto Wolff era que um dia tivesse um local só seu em que pudesse ficar sozinho, lendo um bom livro, escrevendo e bebericando algum tipo de bebida alcoólica. Isso por que em seus contos ele incita subjetivamente o leitor a fazer isso, pressupondo ser uma atitude de pessoas sábias. E realmente ele tinha razão. Só que hoje em dia acha isso pouco, enquanto não alcançar o “nirvana” não desistiria, ou seja, bebendo ate o cu fazer bico!

O sol está cada vez mais quente. Percebe-se quando se está andando pelas ruas. Dá para fritar um ovo na cabeça de cada careca.

A poeira está em todos os lugares. É a terra! Afinal estão no planeta terra.

Toda burocracia é burra! Três meses sem receber, devendo até os cabelos do saco, e quando chega o dia do pagamento o caixa eletrônico informa que “CPF irregular. Efetuar somente na agencia!” Pelo amor de Deus, berava, minha agência fica a quinhentos quilômetros daqui! Seria gastar todo o dinheiro ganho, com a viagem. Vá à puta que te pariu? Um berro; logo a presença do segurança.

O estado nos esgota a paciência. Nessas horas dava razão aos revoltados, quando aprontam o maior quebra-quebra onde quer que estejam. Os brasileiros são uns cordeirinhos!

Com o passar dos tempos foi adquirindo o hábito de nada guardar, de nada acumular, nada de quinquilharias que obstassem meu trajeto.

Na vida nos deparamos diariamente com pessoas e coisas que nos intrigam aos extremos. Pessoas repugnantes e pessoas dulcíssimas, que amolecem nossos corações de carne dura de sol, chuva e intempéries. E isso se chama velhice, experiência, é como se caleja o couro do pobre “bípede misterioso” chamado homem, este composto químico destinado à desintegração e à morte. Ao menos é o que parece, com exceção dos crentes nas bênçãos divinais, nos paraísos celestes e coisas tais. A ele a vida é sólida e a natureza implacável; ou é ou não é.

Nesta madrugada uma queimação monstruosa avassalou seu estômago de gente. Quase chameu o corpo de bombeiros. Se fosse uma velha safada chamaria o corpo dos bombeiros.

O ser humano vive mania de grandeza. Querem ser deuses a todo custo, de alguma forma, os maiorais. Sendo que, na verdade verdadeira, são impulsionados à vida pelo mero acaso existencial. Nem pro mal, nem pro bem, jogados apenas como tal.

Por mais que o tempo jogasse a seu desfavor, sempre se mantive calmo, mente quieta, espinha ereta e coração tranqüilo. Alguém cantou isso numa canção mpbista.

“Por falta de moradia, milhares de egípcios vivem em cemitérios”. Eis a notícia que lhe caiu à mente no alvorecer deste dia que nem convém citar ao certo. São mortos vivos, disputando com os que já foram um lugar à cova. É o fim dos tempos dos homens!

No plantão da Ordem dos Advogados do Brasil, que concede benefícios de assistência judiciária gratuita, aproximadamente trinta pessoas se acotovelavam em seus problemas. A maioria paupérrima, sem dentes, desodorantes e as mínimas condições de se manterem condignamente. A vida lhes privara suas partes boas. Nessas circunstâncias se colhe horripilante material para uma tragédia, como a da velha negra desdentada que buscava desesperadamente a internação para seu filho viciado em crack: ele vive nas ruas, roubando e ameaçado as pessoas; não tem medo de nada, nem de revolver na cabeça. Está louco, quando em casa fica com uma faca na mão, rangendo os dentes, andando pra lá e pra cá, ameaçando matar todo mundo! O menino ficou o capeta! Eu só quero que ele não morra!

Mulheres espancadas por maridos e crianças abandonadas por pais são lugares-comuns nesses plantões. Os nervos ficam à flor da pele. Amarga a vida de quem vê.

Mas não se desespere, meu amigo, A vida é isso aí mesmo que você está vendo, e não adianta fugir! Tente até o último segundo, se esforce, pois no fim alguma recompensa porventura nos restará.

Nas diversas vezes que cogitou meter uma bala em sua cabeça lembrou-se que não custava nada tentar mais um pouco. E até hoje está tentando, tentando, tentando... , e provavelmente, invariavelmente, tentará até que sua respiração cesse, até que seu coração se recuse, por mais que se esforce, a bater. Consiigo não há complacência para com a morte, ela o tenta arrastar pelos pés enquanto ele se seguro com as duas mãos na trave do gol de um campinho de terra. É uma luta árdua, confessa, travada numa linha tênue que nos divide. Sabe que por fim ela haverá de o arrastar para seu mundo, mas enquanto esse dia não chega, e enquanto sua resistência perseverar, não permitirá jamais que isso aconteça. Será forte mesmo nos momentos de maior fraqueza.

Mudança de rumo, teoria do esquecimento, fuga, transmigração, algo que o livre desse aniquilamento existencial constante. Às vezes sinte a necessidade de se converter a alguma religião, o Budismo, talvez, ou alguma seita tibetana, se tornar monge, ermitão, abandonar a sociedade, nunca mais ver homens, viver ao modo de Zaratustra. Mas, como abandonar as mulheres? É louco por elas.

No pós-almoço o melhor a fazer é meditar sobre mais uma refeição que nos refaz para mais algum tempo de vida sem fome e, ao menos por isso, sem morte. Amaina-se a fúria do dia-dia, as coisas suavizam, do modo como do alto do infinito aconteceu-he esta vida. Através dos nevoeiros espirituais veio parar aqui. E enquanto aqui estiver, a vida viverá. Como não poderia deixar de ser. Percorrendo o deserto em que em si estou, sua missão é o esquecimento.

O mexicano Carlos Slim vira o segundo homem mais rico do mundo.

Espanhol descobre a chave da metástase do câncer de pulmão. Enquanto ele tento se tornar o menos pobre dos profissionais e descobrir a chave de sua alucinação constante de ódio.

A vida e suas torturas psicológicas, suas tentações patológicas, suas deambulações escatológicas , etc, etc, etc..., a vida que ainda nãoo veio, a que veio e que passou despercebida, o cidadão, a criança, o idoso, a mãe e o pai, a nação e a população perdida de um rincão sem fim, sem pé nem cabeça, a dor que ainda não veio, o desespero, o medo do futuro, a clausura, o pobre diabo que dormita na escadaria da mesquita, enquanto um mosquito lhe suga uma insignificância de sangue, e ele geme, e ele esbraveja, e esbofeteia a parte do corpo onde sente a picada, e dorme a partir de então com a cara feia, emburrada e faminta de mais um mendigo desse mundo sem tino, sem pé nem cabeça.

Numerosa multidão empurra-se na entrada do metrô. No momento não dão a mínima para códigos de ética, tais como o dar preferência aos idosos e crianças, não empurrar, respeitar o limite das outras pessoas, nesse momento se animalizam como animal nenhum foi capaz de agir. Após, sentados, perscrutam-se mutuamente em busca talvez de um olhar reprovador, de alguém que sofreu dor com sua insensatez, mas que não estão nem aí, pois tudo passou, a metamorfose cessou. E agora são de novo humanos, sentados e sensatos em sua íntima hediondez. Pobres seres mortais que necessitam desesperadamente do desespero, da correria, do dinheiro e do ódio por outras pessoas, precisam também sentir inveja, rancor e receio, e precisam igualmente ter alguém para conversar, que lhe conforte e ouça, alguém que participe de sua estupidez. Homens de hoje e de outrora, homem que vai à forra, que se esfola e sufoca o mal com a guilhotina no pescoço, feito Robespierre.

“São Paulo já foi lar de ‘crocodilos do deserto ’”.

Coincidentemente já foi devorado por crocodilos no deserto paulistano, em tempos onde se matava um dragão por dia, numa época sem vacas, só de magras megeras que se esgoelavam num surto de loucura em meio à rua, quando por nada eram acometidas. São Paulo é a cidade das neuras megalopolitanas, onde para se tornar louco basta um mísero esbarrão, onde se mata por um pisão no dedão do pé, sujando sapato e meia de sangue e excrementos.

Também já foi louco em tempo de templos que curam. Já percorreu a sobriedade cambaleante de bêbado insano. Já “foi macaco em domingos glaciais”. Já viu avós decrépitas acompanhadas de suas netinhas serem pisoteadas pela pressa dos truculentos executivos.

Aquela casa vazia, a mesa, a tia, a tigela na pia, tudo parecendo que chia, o vento, sem gente, sem uma alma viva que sente, que mente e que espia... Nada parece o mesmo sem os moradores, que outrora sentiram dores e amores, calores, os motores que proporcionam o dia-a-dia...

Onde estarão os da casa de n. 94? Para onde rumaram, porque nos deixaram?

Anda Bebendo muito por lá, na calçada, ele e sua amada, sorrateiros, sentados em mesas na calçada, sua porta de entrada, suas plantas, seus sons, suas "ervas" que crescem na imaginação de sua desilusão...

Saudades dos irmãos e da mãe, da família unida!

Abraços de um vão ser vil, que pra nada serviu, porém que foi, viu e sorriu!

A crise dos trinta anos. Uns entram em surtos religiosos; outros descambam para a delinqüência, bebidas e drogas. Há ainda os que se casam e se abestalham na vida, feito coelhinhos procriadores, em busca de paz e asseio na vida, tudo digno e limpinho. Existem também os que se mantém na mesma, inertes em seus mundos marasmáticos, como se nada de mais houvesse por acontecer. Para esses é nascer, viver, comer, dormir e morrer, em paz e com o Divino Espírito Santo, amém. Tudo de conformidade com o transcorrer das idades. Já ele nunca teve idade, apenas um corpo que dita as regras. Se está frio ou quente, se já passou do limite, se sua barriga está estourando, se está ficando com cara de maracujá seco, se caiu neve em sua cabeça calva, se seus dentes não prestam mais, se não vê o mundo como antes, se seus esfíncteres perderam a elasticidade, se já não cheira mais nada, se seu intestino não funciona, se seus ouvidos não escutam, e outras indicações que o corpo nos dá que as coisas estão chegando ao seu devido fim. Nada a temer. Se a natureza impôs isso, a desintegração e a morte, o fez para que outros seres vivam também. Fungos, bactérias e vermes, além de outros, vivem com a nossa morte. Nada mais egoísta do que ver a morte com horror. Coisa de ser humano.

Para ele tanto faz, tanto fez, seja hoje ou amanhã, depois de amanhã ou nunca mais. Se a vida é assim, que assim seja.

Dos trinta aos quarenta é um sopro. Ao contrário dos vinte aos trinta, que custa a passar. Parece uma vida inteira. E dizem que daí em diante, dos cinqüenta, sessenta, setenta as coisas tendem a transcorrer numa velocidade estonteante. Quando se vê já se está decrépito jogado num canto, velho e carcomido, com lembranças borbulhando sem que ninguém tenha paciência para ouvi-las. “Uma Canção de Amor Para Bob Long”.

Coisa triste é ser velho. É a pior doença, a natural da vida, a natural doença, que vem e nos alcança por mais que tentamos escapar, ela nos agarra palas pernas e nos joga no leito e nos acaricia a fronte, nos embranquece os pelos, nos enruga todo e nos chama para dar um passeio rumo ao desconhecido:

Vamos, filhinho, jogar uma partida de xadrez!

E nos engana de vez, fingindo algo que acreditamos. Por fim, quando demos conta, tudo passou, a festa acabou, o povo sumiu, a noite esfriou e tudo ruiu...

Bom, deixemos as coisas da morte para o momento oportuno, ainda é cedo, é tempo de beber algumas cervejas a mais, de ver os pores de sóis e ler alguns poemas de Fernando Pessoa, ou Drummond, por fim, de fazer o que gostamos, pois é para isso aí que aqui estamos, e desde que o mundo é mundo o homem pensa em fazer apenas o que gosta, por isso construiu e destruiu tantas e tantas coisas, inventou, mentiu, cantou e dançou, se esbaldou em tabernas, templos, mosteiros e puteiros da vida mundana, insana, que não é demasiada, pelo contrário, é até comedida, pelo fato de crermos de algum modo ainda na salvação pós mortem.

De sopetão beteu-lhe à porta um homem, ainda jovem, portando no pescoço um enorme crucifixo prateado afixado no peito, preso por uma correntinha quase transparente. Estava de chinelas e vestido com calça jeans e camisa vermelha sangue, fechada até o gogó. Um tipo estranho que à primeira vista imprime horror, um medo de que seja aquele o enviado da morte encarregado de nos levar até o além. Na verdade era mais um sofrido pai de família buscando a guarda de suas filhas. Sua ex-mulher, a mãe das filhas, de uma hora para outra, não se sabe porque, mas se presume virou a cabeça para a noite, se aputanhou, se chafurdou no mundo cão da prostituição, crianças ao léu, sem pão, sem lenço e sem documento, coisa que deixou o rapaz puto da vida, sem saber onde enfiar a cara. Coisas da vida.

Por um acaso, adentrou-lhe no recinto de trabalho uma vaca gostosa se dizendo oficiala de justiça da Justiça do Trabalho, uma tremenda cavala que lhe acabou com a tarde de trabalho. Quis coxas, que rabo, meio que caído, mas válido, que cor de pele, que sorrido safado, que coisa bandida! Que vida hipócrita! Sem peito para enfrentar os sims e os nãos do dia-a-dia. Sua cabeça rodopiou duzentas mil vezes até que pudesse sentar-se na cadeira. Logo ele, que estou prestes a contrair matrimônio.

A vida com suas picuinhas nos prega peças diárias, como que tirando um sarro de nossa cara, ou testando nossa resistência. Não consiguia enfrentar certas situações, enquanto outras lhe aparecem como insetos à frente, incitando-o a perpetrá-las. Tentações da vida.

Quando leu Henry Miller viveu Henry Miller, quando leu Bukowski, se tornoi Bukowski, quando leu Nietzsche virou Nietzschiano, baudelaireano, sartreano, freudiano, pessoano, pensando até que possa talvez nunca ter sido ele mesmo na vida. Sempre foi o que leu, o que comeu e o que viveu, uma coisa ambulante que vai absorvendo tudo ao seu redor.

Talvez por que eu não quisera ver a desculpa estampada em sua face pálida. Talvez pelo fato de a dúvida incitar mais pânico e ao mesmo tempo mais vontade de lutar. Perguntas sem respostas. A melhor é o “sim” gutural que sai da boca do vitorioso. Aos derrotados, as batatas para descascar. Aos vitoriosos, fritinhas.

Advocacia pro bono, em consideração aos princípios humanísticos, e “Bruxo do Cosme Velho”, apelido carinhoso de Machado de Assis, que, além de tudo, foi fundador da Academia Brasileira de Letras, o levaram às lágrimas nesta manhã outonal, em que o sol parece que nunca mais vai se por. O advogado Bentinho Santiago e sua louca paixão pela bela Capitolina...

Cristiano Covas, num dia qualquer...

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 05/08/2010
Código do texto: T2419402