Inventário

A sala de leitura do inventário era sóbria.

As cadeiras eram de madeira dourada com assento forrado por veludo bordô, e as cortinas eram de um verde quase musgo.

O Dr. Moreira entrou pela porta principal. O inventariante caminhava com o auxilio de uma bengala, devido ao avanço da idade. Havia mais familiares na sala de leitura do documento que no próprio funeral. Aliás, um funeral muito incomum, pois a dedicação das duas filhas de dona Marília fez com que o evento causasse inveja em muita festa de aniversário de criança:

- E os salgadinhos? Alguém lembrou de encomendar salgadinhos?

- A música! Não pode faltar música!

- Ela gostava tanto de balões...

Certamente a porta de um funeral decorada com um arco de balões azuis estampados com estrelinhas brancas não era algo muito comum, assim como o vestido e o batom vermelhos que faziam conjunto com os cabelos platinados da neta da falecida, recém chegada de Paris.

Agora, a mesma moça estava sentada na primeira fila das cadeiras, atentíssima a cada palavra que o advogado diria, acompanhada de seu poodle branco graciosamente enfeitado com lacinhos cor de rosa nas orelhas. Cada vez que cruzava as pernas semi cobertas por uma micro saia escura como os enormes óculos que cobriam metade de seu rosto (Estranho... cobrira mais o rosto do que as pernas...), a cachorrinha grunhia, incomodada por ter que mudar de posição no colo da dona.

Na fileira de trás, o pai da moça, com seus grandes e tristonhos olhos verdes prestava atenção a cada detalhe.

- Não me admira que o inventariante seja este museu. A idade é igual a do defunto... - Pensou o genro de dona Marília, segurando-se para não rir da piada que seu colega de trabalho havia contado sobre enterrar sogras de bruços para que se estivessem vivas, cavassem com as mãos cada vez mais para baixo da terra.

Ao seu lado, sua esposa, mãe da moça, filha da senhora em questão, pensava em assuntos bem mais importantes:

- A Cotinha deveria ter vindo com a echarpe azul... combinaria mais com seus sapatos, e quebraria este "preto enterro"...

Cotinha era sua irmã mais velha, solteira, e estava realmente vestida toda de preto, porém nos sapatos havia frizos azuis.

- Hum, Matilde exibe aquele marido como se fosse um troféu. Mal sabe ela.

Não cabe em uma estória sobre inventários descrever o que Matilde mal sabia. O interessante é que Cotinha não tinha filhos, e nenhum homem para chamar de seu. E todos se questionavam sobre sua "fatia" da herança. Seria apenas uma porção da fortuna de dona Marília que ficaria temporariamente com alguém, pois assim que vestisse um terninho de madeira, com certeza, a parente mais próxima, ou seja, a sobrinha, filha de Matilde, herdaria tudo, e esse "tudo" ficaria concentrado no núcleo Schimidt, agregado ao núcleo dos Ferreira, assim que o patriarca faleceu, deixando dona Marília viuva e rica, permitindo que a menina Matilde casasse com quem o pai detestava.

- Estão todos aí? - Perguntou a voz envelhecida do Dr. Moreira.

O auxiliar, um estudante de Direito que tinha em torno de trinta anos,tocou o ombro do senhor:

- Não, doutor. Pela listagem, falta uma pessoa.

- Alguém aí se chama Ricardo? - O advogado corria os olhos pela listagem que o rapaz alcançara.

O genro, que era o único homem fora os advogados na sala, negou com a cabeça.

- Então deveremos esperar... - O doutor Moreira cruzou os braços.

Após uns momentos de burburinho, um rapaz alto, moreno, com olhos verdes e porte atlético entrou. Estava muito bem vestido, com um terno alinhado.

O olhar de curiosidade foi geral.

- Seu nome? - O auxiliar perguntou.

- Luis. Luís Augusto Pompeu Castro.

- E tem relação com este inventário?

- Eu... venho em nome do senhor Ricardo... - E titubeando, mostrou sua carteira de identidade e sussurrou algo ao advogado mais novo, que apenas acenou positivamente com a cabeça para o mais velho.

- Tudo bem, meu filho, pode sentar aí. - O doutor Moreira indicou uma cadeira.

O rapaz sentou-se, e em silêncio aguardou o início da leitura do documento, sob o olhar atento da neta da falecida ( Antes o inventário, agora o rapaz.).

Após um longo tempo, em que o advogado mais velho listou todos os bens de dona Marília, com detalhes, incluindo um apartamento de dois andares e um de cinco, uma mansão em um lugar paradisíaco, duas casas no litoral e uma em uma ilha, carros e outros, incluindo uma fazenda com inúmeras cabeças de gado, e uma indústria de comésticos, fortuna que dona Marília conquistou ao lado do marido, que embora muito indelicado, não deixava faltar nada para a família, gostava de fartura e ostentação. Todos conheciam a dimensão dos bens da senhora, mas não seu testamento, e esse era o motivo para tanto interesse.

- ... "e por fim, gostaria de deixar bem claro que nada tenho contra minha família, embora tenha ficado sem vê-los durante os últimos cinco anos... - O testamento havia sido escrito três anos antes da morte dela. - ... principalmente minha neta, que foi estudar em Paris, pagando o curso com um cheque meu e nunca me ligou. Sei que o investimento valeu a pena, pois garanto que voltou com a fortuna do conhecimento e a riqueza da vontade de trabalhar. Minhas filhas estão grandinhas, e de uma, sei que meu genro querido tem toda a boa vontade do mundo de suprir as necessidades, e acredito piamente em seu amor, levando em consideração a luta ferrenha que travou com meu marido para tê-la como esposa. A outra, solteira, sei que tem formação, bons costumes e com certeza seu afinco profissional faz com que seja uma pessoa abonada. Nos anos que sei que seriam os últimos da minha vida, pensei muito sobre quem poderia dar continuidade a meus projetos de forma satisfatória, e só vinha uma pessoa a minha cabeça. Tive receio de perguntar seu nome completo, pois era muito reservado, embora me fizesse muito bem tê-la por perto. E sei que é com essa reserva e a mesma seriedade com que contou-me sua vida sofrida que iniciou no interior, que vai dirigir tudo que tenho. Meus bens, deixo com toda a consideração para o rapaz que conheço como Ricardo Pimpão. Se precisarem confirmar de quem falo, penso que a única coisa efetivamente íntima a ponto de provar que se trata dele mesmo, é que o rapaz possui três pintinhas de nascença na nádega esquerda. Assim termino meu testamento, afirmando que sentirei saudades de todos, desejando que continuem suas vidas com alegria, pois tem condições disso. Amorosamente, Marília Ferreira".

Foi um burburinho geral. Até mesmo o rapaz estranho ficou surpreso.

- Ricardo Pimpão é... meu nome de trabalho.

Todos os olhos da sala voltaram-se para ele.

-Meu nome é este que está na minha identidade, mas a dona Marília só me conhecia como Ricardo Pimpão... e ela tem razão, tenho três sinais na nádega.

- Teremos que conferir, meu rapaz. - Doutor Moreira foi categórico.

Constrangido, Luís augusto, ou Ricardo, ou que seja, o rapaz levantou-se da cadeira e dirigiu-se ao senhor.

- Mas ele sussurou ao chegar que a dona Marília o conhecia como Ricardo Pimpão. - O auxiliar queria evitar maiores complicações.

- Uma palavra não supera um fato ou uma imagem, meu caro colega. - E o velho advogado fez um sinal para que o rapaz baixasse as calças.

De frente para a família da falecida e de costas para os advogados, ele baixou as calças, exibindo as pintinhas.

- Eu protesto! - Bradou o genro. Quem me garante que estas pintinhas são reais? Ou que realmente estão sendo vistas?

- Pois veja o senhor mesmo! - O inventariante convidou.

O genro levantou-se, e ao mirar com os olhos a nádega esquerda do rapaz, entreabriu a boca em surpresa.

- Senhoras...? - O inventariante convidou novamente.

- Creio que não será necessário! - O genro interrompeu a filha que já estava na metade do caminho, franzindo as sombrancelhas para a moça.

Papéis assinados, contas bancárias registradas, e muitas perguntas respondidas. Entre elas, uma causada pela imagem que Matilde guardava do cadáver da mãe, quando foi chamada para reconhecer o corpo no próprio apartamento desta: uma senhora de aproximados oitenta anos, deitada na cama sobre lençóis de cetim, vestida com uma camisola de renda vermelha. Ao lado da cama, duas taças e uma garrafa de champagne, e nas mãos, setescentos reais. Mas a pergunta não vinha do contexto, e sim, do detalhe: um sorriso discreto nos lábios... sorriso este que Matilde não sorria há alguns pares de anos.

- # -

Caroline Garcia

Porto Alegre, 06/08/2010.

Caroline Garcia Cruz
Enviado por Caroline Garcia Cruz em 06/08/2010
Reeditado em 27/10/2011
Código do texto: T2422823
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.