Quando morre um mestre

É manhã. Desperto com vontade de ficar mais um pouco debaixo do edredom. Os pensamentos correm soltos e o dia é planejado mentalmente. Uma oração e o salto da cama para que não haja atraso em mais um dia. O último da semana. É sexta-feira. Dia seis de agosto. Não gosto do número seis. Mas é seis de agosto. A sexta feira treze será daqui a sete dias. Gosto do número sete. Gosto das semanas indo e vindo.

Desci do ônibus e segui caminho melancólico de ruas antigas de casa de gente que não conheço. Os operários já estão nas fábricas. A escola está com os portões abertos. Bom dia! Bom dia, professor! Bom dia!

Uma conversa rápida. Começo de fato a jornada. A turma entra. Inicia-se o debate. Escreveram sobre música. Não era réquiem. Toca o sinal. Vou para outra turma. Uma aluna apanha meu material gentilmente e o deita sobre a mesa ao fundo da sala. Novos alunos. Apresento-me. O que sabem de Literatura? O silêncio quase geral. Uma luz. Alguém lia Clarice Lispector. Era [b][i]A hora da estrela[/i][/b]. Acendeu-me uma felicidade breve. Ficamos em círculo discutindo a disciplina. Houve alguns embates inevitáveis. Eis a dialética inicial presente nas salas de aula antes do pacto de confiança. A conciliação veio rápida. O intervalo. Conversas com colegas. Retorno à mesma turma. Escreveram sobre o dia.

O sinal novamente toca. Deixo aqueles jovens agradáveis. Entrego o diário e despeço-me da coordenadora e dos colegas.

Caminho depois do meio dia comendo uma esfiha entre operários que saiam das fábricas para o almoço. Atravessei um canal e cheguei ao Moinho Atlântico na zona portuária da cidade. Um aluno me sorriu no caminho. Retribui. Continuei a andar. Tomei meu ônibus e fiz uma pequena viagem para outra escola conversando com uma professora muito agradável. Descobri naquele momento que ela é irmã da minha vizinha. Já conhecia a ambas a mais de uma década e não sabia do parentesco. Não sabia de tanta coisa dita por aquela colega. Saltamos juntos. Caminhamos uma quadra. Seguiu para sua casa e eu para outra escola.

Entrei com o horário estourado. Fui ao gabinete da diretora apanhar a chave da sala. Vi a chefa ao telefone com os olhos vermelhos. A coordenadora olhou para mim consternada e me deu uma triste notícia. Entrei em estado de choque. Fiquei parado na diretoria sem saber o que fazer. Um estalo. Meus alunos estavam à porta da sala me aguardando. Subi as escadas com o coração na mão e tendo de parecer tranquilo. Meus alunos dividiram-se em duas fileiras e me saudaram como a um rei. Tinha de sorrir e saudá-los. Minha nobreza foi o suficiente apenas para ser elegante e menear a cabeça gentil. Abri a porta e fiz um gesto cortês indicando-lhes a entrada. Disse boa tarde e pedi desculpas pelo atraso. Expliquei o que ocorrera e eles foram muito delicados. Exibi um vídeo. Uma funcionária subiu até nós e avisou que eu concluísse as atividades antes do intervalo, pois todos seriam dispensados. E assim foi. Desejei bom fim de semana e os meninos saíram. Desci a escada. Entreguei a chave. Estava arrasado. Muito triste. Raspei minha barba totalmente e cortei meus cabelos. Entrei em casa e orei ajoelhado junto ao sofá. Tudo era cinza. Havia perdido boa parte de meus livros.

Não fiquei na escola até a noite. Era sexta-feira. Nesse dia preparo-me para receber o Sábado. Não o fiz devidamente. Nem o estou vivendo devidamente. Não fui à igreja. Não dei estudo e nem fiz orações com alguém nem por alguém. Estou triste. O velório era às doze horas. Metade do dia. Não fui ao sepultamento. Se fosse noite de quarta-feira, ele estaria lá no canto esquerdo da mesa enorme, altivo e com suas longas barbas de sábio falando com voz grave sobre tanta coisa importante e grandiosa, ao mesmo tempo simples a vista de todos que não viam nada. Era uma alma imensa plena de conhecimento a partilhar. Foi meu mestre. Seu nome era de gramático. Era-o com certeza. E literato, linguísta, crítico textual. Humanista... Em nossa última conversa, consolou-me pela perda dos meus livros. Disse-me que meu relato valeria um conto. Foi na semana passada. Foi a última coisa que me disse quando saí do recinto rumo ao lar. Prometi a mim mesmo: Vou escrever no domingo e mostrar a ele em primeira mão. Não poderá mais ler nada. Parte de meu acervo literário acabou-se num acidente doméstico. O prejuízo não se compara ao fim da imensa biblioteca levada hoje para baixo dum belo, mas triste jardim de cemitério.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 07/08/2010
Reeditado em 07/08/2010
Código do texto: T2424041
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