Bonecas de latas

Bonecas de latas

Há pouco tempo recebi a notícia do falecimento da minha ex-professora de português do antigo colegial. Não sei dizer com precisão, mas acredito que viveu entre oitenta e noventa anos. A notícia de sua morte me trouxe muitas lembranças. Por alguns segundos vi sua imagem refletida na cerâmica da parede, o bastante para olhar aquele jeitinho de ser que era só dela. Cabelos cacheados de cor acobreada, olhos puxando para o azul e pele bem branquinha! Fiquei sentada por algum tempo mergulhada em lembranças. Foi inevitável a saudade de minha infância.

Dona Maria, uma excelente professora! Era a mulher mais importante da cidadezinha de mais ou menos dez mil habitantes, respeitada por todos. Para mim, um exemplo, ou melhor, um espelho. Sonhava ser exatamente igual a ela quando crescesse. Lembro-me que entre meus doze, catorze anos, inspirada em minha querida professora, criei uma escolinha de bonecas. Na qual eu fazia o papel de professora e as bonecas de alunos. Como não tinha muitas bonecas, para completar o número de alunos da minha escolinha vestia algumas latas de óleo de soja para que ocupassem os lugares vazios.

A partir daí passava a imitar minha professora em tudo que fazia na sala de aula, a imitação ia da organização da sala, às atividades e atitudes. Os alunos “atendiam” como “alunos latas e alunos bonecas”. Claro que automaticamente os alunos latas ocupavam a fileira do fundo e eram classificados sempre como alunos indisciplinados e de pouca inteligência. De vez em quando expulsava um, isso acontecia sempre que ganhava uma boneca nova ou algum colega da escola de verdade desaparecia por expulsão. Em nossas atividades extraclasses alguns alunos latas ficavam de castigo em casa.

Certa vez a professora dona Maria nos levou para uma pesquisa de campo numa usina hidrelétrica, claro, que foram comigo minhas três bonecas mais bonitas. Minhas colegas de classe adoraram a ideia, fomos brincando durante todo o percurso. De vez em quando a professora dava uma bronca, dizia que não havia permitido levar brinquedos para a atividade. Seria uma pesquisa importante, tinha como objetivo fazer entrevistas com os funcionários e observar o funcionamento da usina. De volta à escola, deveríamos passar tudo para os que não puderam participar devido o mau comportamento.

Bom, na minha escolinha não foi diferente, os meus melhores alunos, ou melhor, minhas bonecas preferidas, apresentavam o excelente trabalho. Ambos tirávamos o primeiro lugar, era o máximo!

A minha escolinha de boneca caminhava exatamente igual a minha escola de verdade, com direito a recesso escolar, férias e retorno em fevereiro.

Eu levava a coisa tão a sério que às vezes preocupava minha mãe, que ficava brava com a ocupação de seu quartinho de costura.

Quando um colega da minha classe ficava sem recreio por não ter feito a lição de casa, ou por ter errado o exercício no quadro negro ou simplesmente por ter esquecido o lápis em casa, na minha escolinha algum aluno lata também seria castigado. Muitas vezes esse castigo durava uma semana.

Apesar dessa minha dedicação e admiração, a professora não sabia que todas as tarde me dedicava a uma escolinha de bonecas inspirada nela.

Tudo corria as mil maravilhas, até que no final da sétima série aconteceu uma tragédia na minha escola de verdade. Depois de um longo ano de dedicação, muitos trabalhos, no meu caso, trabalho dobrado, por alguns motivos que agora não vem ao caso, todos os professores decidiram em um “Conselho” que toda minha classe deveria ser reprovada. Até sabia que na sala tinha algumas “latinhas” indisciplinadas que não queriam saber de estudar, mas quando recebi a notícia levei um susto. Não era justo! E como repetir tamanha injustiça em minha escolinha de bonecas? Lá eu tinha muitas bonequinhas dedicadas! E minhas bonecas louras, de cabelos compridos, até bonecas que falavam iam ser reprovadas! Como explicar que depois de todo esforço elas iriam acabar o ano igual às latinhas preguiçosas e indisciplinadas?

Bom, mas a desgraça não parou por aí. Teria ainda que enfrentar a minha mãe depois da reunião com a professora. Não demorei, a saber, que ela tratou logo de colocar a culpa em minhas bonecas. Contou tudo para a professora e é claro que esta não achou nada engraçado, inclusive aproveitou para reclamar sobre a visita na usina e minhas convidadas.

Chegando em casa, minha mãe acabou com minha escolinha. Jogou os meus alunos latas no lixo e enfiou os alunos bonecas em um saco e pôs num grande baú herdado de minha avó. Não contente me deixou de castigo por uma semana proibida de brincar com minhas primas que tinham passado de ano. Lembro-me que o ano seguinte foi o pior em toda a minha vida. Passei o ano inteiro tendo a sensação de estar vendo o mesmo filme todos os dias.

Depois de algum tempo descobri que eu e mais uma meia dúzia de colegas só entramos no pacote da reprovação geral por culpa da maioria dos alunos que eram indisciplinados. Reprovar toda a classe foi uma forma de punir e assustá-los, servindo de exemplo para os demais da escola.

Hoje vejo que por culpa dessa “pequena falha” que “felizmente” minha querida professora participou, minhas “colegas latas” não conseguiram concluir o colegial, atual ensino fundamental.

Contudo, superei o trauma da reprovação, conclui o segundo grau e dei continuidade aos estudos até me formar professora.

Hoje só tenho a agradecer. Além de ter sido a minha melhor professora foi também a minha melhor orientadora pedagógica. Aprendi tudo o que não se deve fazer com um aluno. Descanse em paz professora!

Renilda Viana
Enviado por Renilda Viana em 16/08/2010
Reeditado em 02/04/2012
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