Histórias de um casarão tombado.

Era meia noite e o palhaço vagava pela rua quando parou em frente ao boteco onde eu jantava e ficou olhando; quando convidei o clow para dividirmos aquele prato de comida!

- Seria abuso pedir um suco de açaí?

Mas claro que não! E ficamos ali, entretidos com a refeição. O palhaço módico nas palavras... Talvez porque de fato não fosse um deles:

- Conto histórias, piadas, alegro crianças; quando tirou do bolso um nariz de palhaço que alguém lhe deu;

- Canto também em cinco línguas, e emendou a primeira estrofe de Moon River, traduzindo a letra;

- Viu! sei cantar e entendo o que canto.

E contou que ele era primo do dono do PUB Inglês mais acima; explicado que aquele traje de palhaço era um presente da namorada; - Sabe... tomar banho e vestir uma roupa suja é pior do que não tomar. Disse mostrando interesse nas roupas que eu poderia arrumar para ele na noite seguinte. Dormia na rua? - Nestes dias sim, mas antes pousava nos fundos do casarão da rua Marques de Paranaguá.

Incrível! Nunca percebi que aquela mansão - em frente à PUC/Exatas - pertenceu ao candidato Mario Tavares, na eleição para governador, em 1947 - estava hoje completamente abandonada. Cercada de muros altos, e muitas árvores, que da calçada não dava para se ter ideia do estado deplorável em que se encontrava a construção. O palhaço, que se chamava John, então contou-me que depois de beber criava tumulto na mansão e por isso sempre era posto para fora da casa. Até que passados uns dias, arrependido, desculpava-se com os moradores e voltava novamente.

Jantamos e nos despedimos. Porém no dia seguinte ele não passou para pegar as roupas que deixei com o dono do boteco.

Passados dois dias fui pessoalmente levá-las no casarão, 5 horas da tarde. Onde a mais completa miséria dos invasores contrastava com o esqueleto daquela que foi uma das mansões mais luxuosas de São Paulo; hoje, porém, um lugar que inspirava que se fizesse um sinal da cruz, logo ao entrar, tão sinistro o lugar.

No entanto entrei, e fui até o fundo da mansão, depois de passar por um pequeno bosque - com uma quantidade enorme de lixo sucateado, mas arrumado artisticamente: assim um velho tapete vermelho, trazido de um cinema em demolição. Quando percorri a alameda até dar na ampla casa de empregados. Na porta pintado um grafite com o poeta Fernando Pessoa e outro do Snoopy. Pinturas enfeitavam as paredes: criações do Rastafari, morador daquele espaço: um negro esguio, dono de uma simpatia incomum, conhecido por todos como Jamaica.

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Muita coisa me impressionou os domínios do rastafari, principalmente o paralelepípedo onde os usuários de crack quebravam seus cachimbos: graças a pregação anti-drogas, movida à educação artística, feita pelo anfitrião, algo que passava para os desenhos dos usuários: - Ih, estou achando que você está triste de eu ter quebrado o seu cachimbo... mas como quero você alegre então vou te ajudar a fazer um outro.

Assim valia-se de psicologia das ruas, para falar com um usuário da droga, que por sua vez já parecia arrependido em desfazer-se do cachimbo, tal a vergonha de parecer interiormente tão fraco, o que levou o viciado a assumir a quebra. Embora Jamaica soubesse que aquilo era mais um ato simbólico, porque de dez usuários que ouviam a sua pregação anti drogas apenas quatro então quebravam o próprio cachimbo; enquanto um apenas realmente deixava o vício, sabe-se lá por quanto tempo...

Didática anti-tóxicos que Jamaica tirava dos livros achados no lixo. Aos quais associava as lições do livro e cartazes onde desenhava os demônios das drogas, acima de frases motivacionais que bolava. Em seguida expunha a sua arte, e destes usuários nas paredes da mansão; todo o material de desenho fornecido por Jamaica.

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Muitos crackeiros visitavam o fundo do casarão e as vezes pousavam por ali, porém não podiam fumar a pedra ali dentro...

Chegavam em grupo. Alguns chamando ele de pai, enquanto Jamaica os chamava de filhos, celebrando até casamentos...

Pois fez o casamento de John com a namorada, para que tivessem mais responsabilidade um com o outro... Porque o palhaço apaixonara-se a ponto de fazer tudo o que ela mandava. Esta aliás a razão dele não ter pego as roupas dois dias antes, por não querer separar-se daquilo que a mulher que tanto amava lhe deu: a roupa de palhaço.

Namorada viciada em crack que fazia dele gato e sapato e por isso lhe deu o traje dizendo: - você fará tudo que eu mandar e mesmo se eu pedir para você comer merda você vai comer! Assustava-o para que levasse crack para ela, quando precisou ficar internada na Santa Casa para ter um filho dele. Era o amor segundo o crack.

Até que um destes moradores do casarão - que gostava de Jamaica como a um pai - chegou depois de escurecer... Parecia o Capitão Caverna. E falava através de grunhidos.

Barbudo e cabeludo, o rosto encovado, esquelético feito o capitão do desenho, no entanto era alguém que às 7 da manhã estaria de pé, para ao longo de todo o dia carregar sacos de 50 quilos nas costas, peão de construção que era.

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Fizemos exercícios, numa barra no jardim, onde literalmente fui humilhado pelo Capitão Caverna. E aqui, não fosse a experiência assistencial em lidar com usuários de drogas, eu teria passado sérios apuros ali dentro. Porque o ciúme do capitão em relação ao Jamaica era enorme.

Tanto mais intimidante essa situação por causa do fantasmagórico cenário do bosque, na perspectiva do casarão abandonado à luz da noite. O que realçava tudo que o capitão tinha de mais assustador: seus grunhidos e rosnadas; mais os gestos de esganador de gatos (já perto do meu pescoço). E as ameaças que fazia em meio a única frase inteligível que ele repetia para mim:

- Entrar aqui qualquer um entra, mas sair daqui, ah meu velho! para sair daqui precisa a gente deixar ..

Dividido entre assustar-me e acha-lo engraçado, eu ouvia as bravatas do capitão enquanto observava uma placa jogada num canto do jardim - "Sarasa - Escritório de Restauração": placa de obra abandonada, que dava uma pista da história recente do casarão; assim como alguns retratos feitos à nanquin, de ilustres escritores filiados à UBE, desenhados no início do século XX.

Mas o que a UBE - A União Brasileira dos Escritores - instituição com quase um século de existência - tinha a ver com aquele lugar?

Quando uma notícia de 2003, no site da Associação Viva o Centro, informava:

" Está em franco processo de restauro o casarão do começo do século XX, na Rua Marquês de Paranaguá, 124, onde se instalará a sede oficial da União Brasileira de Escritores (UBE). O imóvel, de propriedade do governo federal, e tombado pelo Condephaat, foi destinado à entidade, em comodato, por um de seus afiliados ilustres, o então presidente Fernando Henrique Cardoso."

Enquanto outra matéria explicava que as parcelas de 100 mil reais, entregues para a restauração, num total de mais de 300 mil, foram insuficientes.

Pois por menos de um milhão de reais não seria possível restaurar o casarão: já que o seu terreno, avaliado em um milhão de reais, era superado pelo valor devido em impostos e obrigações atrasadas, de água, luz, IPTU e dívidas da empresa do proprietário com o INSS, que se tornou o dono do imóvel.

Mas o que teria acontecido com o dinheiro da restauração? Não foi liberado? E os 300 mil, o que afinal se fez dele?

Curiosamente um dos arquitetos que esteve à frente do projeto de restauração foi citado em uma matéria de uma revista especializada em seguros, onde se explicava sobre a importância do seguro profissional, para arquitetos e engenheiros; disse ele nesta matéria:

" O seguro é uma proteção para o arquiteto pois eventualmente cobre deficiências e falhas de projeto. Porém não é raro que esse item seja deixado de lado, pois o cliente muitas vezes não entende a necessidade de se embutir o valor do seguro como mais uma necessidade de um bom projeto. Cliente que não compreende o que é um projeto detalhado, que também inclua os custos de um seguro" .

***

Portanto esta era a história recente do Casarão, que uma vez pertencente ao INSS foi emprestado à UBES, mediante comodato. Obtida para isso uma autorização do Senado - para que o Presidente da República pudesse assinar o decreto - pois o INSS não podia doar bens recebidos para pagamento de impostos e contribuições, como era o caso daquele imóvel.

Uma batata quente jogada na mão da UBES, levando-a depois a abrir mão do imóvel, por não parecer seguro colocar dinheiro próprio para reformar algo que não lhe pertencia, correndo o risco depois de ver o imóvel pedido de volta, como já aconteceu para eles no passado.

Sei que cheguei ao casarão, às 5 da tarde, quando oito da noite despedi-me de Jamaica, do Capitão, e da cadelinha coker spainiel, Priscila - preta, surda, cega, velhíssima e com os dentes caídos - mas meiga demais.

Superada o lado fantasmagórico da noite ali dentro, as intimidações do capitão caverna, mais a visão das ratazanas - que de noite começavam a circular por ali - deixei o casarão pela porta lateral, que ficava na rua Visconde de Outro Preto:

Saída que dava bem em frente ao aristocrático edifício Queem Mary. Prédio muito bonito, e com um belo paisagismo: onde seus terraços tinham mais de dez metros de comprimento, enquanto o condomínio custava por volta de mil e quinhentos reais.

A pequena rua, Visconde de Ouro Preto, 50 metros à frente, acabando numa viela, que servia de entrada para o SPAC - Clube Atlético São Paulo - fundado por ingleses em 1888.

Estranho o que aconteceu comigo ali na porta do clube ...

Pois tomado pela alma invasora dos que ocupavam o casarão tombado, sem qualquer cerimônia entrei pela portaria principal do cllube cumprimentando os porteiros como se fosse um sócio. Para lá dentro conhecer as quadras de Badminton, e de um outro esporte chamado Bowls, cujo zelador se chama Green/Keeper.

Em seguida passei pelas quadras de Squash, até chegar ao salão de bridge onde se lia: " Não são permitidos quaisquer jogos de azar nas dependências do Clube. Entende-se por jogo de azar apostas nos resultados de jogos de qualquer natureza".

Sim, estes ingleses demonstravam ter classe, pelo modo de fazer as coisas mais corriqueiras, ou veja só o anuncio da venda de títulos de sócio, no quadro de avisos da secretaria (sim sou um xereta de primeira):

" Ingleses têm a tradição real de conferir títulos nobiliários aos cidadãos que atingem conceituadas expressões na sociedade. É o estilo britânico de mostrar admiração, respeito e amizade, por aqueles que provam seus méritos. O Clube Inglês, círculo social, esportivo e cultural de convivência de grandes personalidades da história de São Paulo, em seu estilo inglês, por isso deseja conferir a você e a sua família um título que, apesar de não ser nobiliário, possui a mesma intenção de mostrar admiração, amizade e respeito. Esta a forma de participar desta grande família chamada Clube Atlético São Paulo."

Lia os avisos e pensei que Jamaica merecia atmbém um título desses, pois tinha mais classe do que muito lorde inglês; sendo que também morava na Visconde Ouro Preto, assim descrita pelo SPAC: "Uma rua de nome nobre - Visconde de Ouro Preto - onde se encontra o clube berço do futebol brasileiro, e de muitos outros esportes."

Berço do futebol porque seu sócio fundador, Charles Mulher, trouxe da inglaterra uma bola, pares de chuteira, e um manual de regras do esporte... quando o primeiro jogo de futebol, ocorrido em terra brasileira, foi jogado ali no clube São Paulo.

Clube que teve também como associados os engenheiros ingleses, responsáveis por construir a estrada de ferro, São Paulo Highway, para ligar o interior paulista ao porto de Santos. Estrada que se tornou possível porque o engenheiro inglês, responsável pela obra, antes embrenhou-se pela Serra do Mar, para, à pé, achar uma passagem, que era imperceptível, de qualquer outro lugar, mesmo de um avião.

Hora de ir embora do SPAC, depois de jantar no seu restaurante, com pianista ao vivo - "qual o seu número de sócio, perguntou o maitre na hora que pedi a conta - "pagarei em dinheiro, disse com um ar inglês". Paguei e fui embora. Para na Visconde de Ouro Preto por fim reencontrar o palhaço John, que tirou do bolso a cópia de um documento histórico: diálogo do Visconde de Ouro Preto numa visita que fez a D. Pedro II, quando os dois estavam exilados em Lisboa :

( ... )

" O seu trabalho. Está muito bom, completo e claro. Achei-o excelente, menos em um ponto.

— Qual, senhor?

— Não me pareceu muito justo a respeito do Maracaju.

— Mas eu não lhe fiz a menor acusação.

— Sim, mas quem ler o que o senhor escreveu ...

— Perdão, senhor. Só me cumpria expor os fatos como eles se passaram. Se foram desfavoráveis a quem quer que seja, de quem é a culpa?

— Tem razão, mas não creio que houvesse traição da parte do Maracaju.

— Nem eu. Tenho-o por incapaz disso. Considero-o ainda hoje tão leal como no dia em que o apresentei a Vossa Majestade para ministro.

— Está bem. Vou reler o manifesto. Repugna-me acreditar tivesse havido traição da parte de certos personagens, como circunstâncias inexplicáveis autorizariam a desconfiar. O senhor, em todo o caso, exprimiu a verdade. Cumpriu o seu dever. "

( ... )

Tanto a rua Visconde Ouro Preto, como a Marques de Paranaguá, a outra esquina do casarão, tem nomes de dois abolicionistas, igualmente defensores da moralidade fiscal e orçamentária.

Visconde e Marquês, monarquistas e ministros de Don Pedro II - um mineiro, o outro piauiense - um Ministro da Fazenda, o outro da Justiça e da Guerra ( por isso mandou 5000 piauienses para a Guerra do Paraguai; contigente desproporcional ao número da população deste Estado naquela época ).

- Puxa, John, como você sabe de todas estas histórias monárquicas?

E o palhaço comentou com ar aristocrata: - Sou cartógrafo de formação e monarquista de carteirinha, o que no passado credenciou-me ( antes que a bebida o derrubasse ) a ser crooner no Pub do clube Inglês ...

Sabendo que eu acabara de jantar por lá ele disse:- recomendo à você que na próxima vez experimente os pies: tortas feitas com rins.

- E isso é bom?

- Uma delícia de lamber os beiços!

Agradeci ao palhaço pela "inside information": - Te devo uma!

Uma não, muitas !

Quando com fidalguia nos despedimos na frente do casarão, John cantando para mim os versos de MOON RIVER em agradecimento pelas roupas:

" Dois errantes que sairam para ver o mundo

Pois no mundo há tanto para se ver

Nós à procura do mesmo fim do arco-iris

Meu grande e velho amigo

Rio da Lua e eu "

- Viu! sei cantar e entendo o que canto.

Semanas depois, no telejornal, apareceu a reintegração de posse deste imóvel, por força de liminar obtida pelo INSS, na Justiça Federal. Matéria que se encerrou com o policial acorrentando a porta de entrada e colocando o lacre da Justiça naquela que um dia foi a mansão de um ex governador.

Cine Astor

Cine Astor
Enviado por Cine Astor em 23/08/2010
Reeditado em 01/04/2022
Código do texto: T2455353
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