Sr. Hoje.

Logo pela manhã atendi com receio e percebi que não reconhecia mais aquele sujeito; parecia tão mudado. Na minha infância parecia-me tão mais velho; hoje tem quase a minha idade. O que teria acontecido: avancei depressa demais, ou foi o hoje que parou no passado?

Nisso proclamou:

_ Sou o hoje que tanto esperavas e exaltavas em tuas conversas íntimas com amigos, em suas discussões amigáveis com parentes e companheiros de trabalho! Sou eu, e vim simplesmente para te avisar que cheguei.

Imediatamente, como que por impulso, pensei: o que esse sujeito pensa que está dizendo? Por que bate assim à minha porta, como se fosse o jornaleiro que há anos, diligentemente, no mesmo horário, deixa o jornal em minha porta? Será que meu passado morreu?

No entanto, interrompendo bruscamente esse raciocínio, o aludido hoje insistia:

_ Sou o hoje que tanto sonhavas em teus sonhos e pesadelos mais lindos e lúgubres; tens de saber o que fazer comigo, não deixe que o amanhã venha e passe sobre mim como um rolo compressor, ficando como se eu não tivesse existido, e que nada tivesse acontecido!

Aturdido, indagava para comigo mesmo porque esse tal de hoje me falava coisas que aparentemente pareciam meras besteiras de alucinados, mas que na realidade me deixavam assustado. Será que o hoje chegou mesmo sem me avisar?

Desesperado, peço-lhe para aguardar à porta e corro em direção ao primeiro espelho que encontro, no banheiro, e olho, e vejo, com pavor, o reflexo do tempo assolando minha face, já abatida pela interpelação inexorável do impiedoso hoje que me aguarda à porta.

Nisso, imagino, com horror nos olhos, que o amanhã e, talvez, o depois de amanhã, estejam a espiar-me também de soslaio pela fresta da janela, aguardando o momento oportuno para baterem à minha porta anunciando-se o hoje!

Carpem die!

Cristiano Covas, 31.10.05 .

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 30/08/2010
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