Quase tudo são flores, Antonella



          Quase seis horas da manhã e Antonella adormece recostada à janela da lotação. Retorna, enfim, de mais de doze horas de trabalho corrido. Algumas senhoras maldizem a moça, enquanto a observam dormindo ali sentada no banco, quando deveria ofertar o lugar às pessoas de idade mais avançada, como indicam as tantas placas colocadas estrategicamente em vários lugares no interior do ônibus.

          São três os transportes diferentes e necessários,  até que ela chegue em seu ponto final. E quem conhece Curitiba sabe da distância que estou falando desde os lados do bairro Cajuru até o São Braz.

          Antonella dormia. Há muito já havia se acostumado com esse horário de trabalho. Plantonistas noturnos recebem mais e, no momento era tudo que ela mais precisava. Os sapatos especiais da filha,  custara uma grana e como os pés das crianças crescem rápido. Ainda mais os dela, que agora se recuperavam da atrofia.

          Em Curitiba, geralmente pela manhã é frio. Mesmo assim, lá pelas tantas, já cansada de tanto andar de leito em leito pelos corredores, levando sorrisos e cuidados, os pés da auxiliar de enfermagem doíam dentro do tênis e,  para essas ocasiões ela tinha uma sandália, do tipo rasteirinha sobressalente, sempre  em sua mochila. Como era bom um conforto para os pés que ansiosos não viam a hora de um bom banho e repouso no alto sobre os travesseiros.

          Vi Antonella uma única vez. Numa de minhas crises de cólica renal. Foi no pronto socorro. A dor me era tanta, que minha pele tinha perdido a cor, assim como,  pálidos ficaram meus lábios, sem nenhuma força para falar, mas, meus olhos a viram, tão delicada, com todo cuidado procurando o melhor lugar para o soro. Onde a veia estivesse mais saliente e, não me doesse tanto , com menos chances para prováveis hematomas depois.

          A dor era intensa e eu quase nada via em meus contorceres involuntários, numa agonia sem fim, mas a moça com sua voz calma me animava dizendo já vai passar. Eu precisava confiar, então procurei seus olhos. Eram tão marcantes e verdadeiros que acreditei.

          Marcou-me profundamente aquela fisionomia da moça ruiva, com cabelos encaracolados, amarrados num grande volumoso rabo de cavalo sobre o uniforme impecavelmente branco. Como talvez branco, seja o eterno, penso.

          A lotação seguia e lá pelas tantas ela desperta, como que numa intuição cronometrada. Desceu. No ponto certo. O que ficava há apenas três quarteirões de seu minúsculo apartamento. E, apesar de tanto desgaste se permitiu olhar com ternura as flores coloridas e perfumadas escorrendo por sobre os muros. Atrativos de abelhas. E foi uma dessas, que impiedosamente pica o braço de Antonella.

          Foi um susto que a despertou definitivamente do transe em que ainda se mantinha. Um transe de final de jornada, de cansaço e de lida sozinha.

          Caminhou mais alguns passos e novo percalço nesses últimos metros. Dessa vez foi a rasteirinha que se soltou uma tira. Pensou em recolocar o tênis, mas estava tão próxima. Seguiu. Já estava em frente a padaria, onde   comprava o alimento matinal todos os dias e não era um calçado estragado que a impediria de entrar.

          Quatro pãezinhos ainda quentes, mais alguns com cobertura de leite em pó e recheio de creme e pães de queijo, por fora crocantes e dentro derretidinhos, recém saídos do forno. Não custou muito.  Mas,  na hora de pagar cadê o dinheiro, bela Antonella? Lembra no ônibus enquanto você dormia?  Alguém se aprouvera dele, entre a correria de um ponto e outro de parada, de ônibus totalmente lotado.

          Porém, nem tudo estava perdido. Havia ainda a opção do cartão de credito, guardado num bolso, do outro lado da mochila. E estava. Pediu à atendente que o passasse por favor. Mas, foi recusado. Estava bloqueado também. Quanta frustração uma pessoa pode ter num mesmo dia, pensou, já no intento de recolocar as sacolas sobre o balcão. No entanto, a moça da padaria sorriu-lhe. - Leva, me paga amanhã - Disse ela.

          Antonella agradecida lançou sorriso e seguiu para casa. Arrastava  a chinela arrebentada e o braço latejava pela picada da abelha. Enquanto a pele ganhava um vermelhidão e inchava rápido, precisaria um anti alérgico, talvez.

          Mesmo assim, seguia ansiosa. Lá a filha a esperava, com tantos beijos e um olhar imensamente risonho por trás dos  óculos fundo de garrafa. Mãe e filha se abraçariam e no abraço vem sempre o conforto necessário para o recomeço.


          Posta a mesa, tomam café com leite e sorrisos. Por hora, não há cansaço que o envolver dos pequenos braços negros, num abraço tão verdadeiro, não possa curar.

          A menina se apressa. A van escolar já está para passar. Descem mãe e filha até a saída do prédio, onde outras crianças também esperam e a criança fica em companhia das demais. A moça retorna para o apartamento, finalmente rumo ao banho renovador e, depois  os sonhos a esperam.

          Antonella se lança ao merecido descanso, como quem se lança em nuvens espessas. Recosta-se suavemente sobre os macios travesseiros. Seu corpo exala uma dor comprida, mas, sua alma se apazigua.

          Por fim, o sono, finalmente a abate e, ela sonha, não se sabe com o que, mas seu semblante é suave e demonstra um repousar sereno e levemente risonho.

          Sobre os lençóis, os cabelos longos e ruivos se assemelham a raios de sol. Raios que iluminam borboletas em seus  sonhares. Onde seu sorriso é um sol.


          
Talvez seja o único para aqueles que nos leitos, têm nas mãos da bela um pouco de dignidade e alegria. Nas conversas, no interesse pela pessoa que cada um é. E nesses olhares, Antonella a bela, é uma alegria ruiva, que colore os dias em tantos leitos solitários, comuns, desprovidos de ternura em tantos e longos dias.




                                
 

 

                                   *** imagens google***
AndreaCristina Lopes
Enviado por AndreaCristina Lopes em 07/09/2010
Reeditado em 15/08/2012
Código do texto: T2484622
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