O Fabulista Encarcerado

Por três dias seguidos nevava no reino da Armânia. Os vilarejos, afundados na neve, não eram de longe mais do que pontinhos dourados em meio a uma imensidão branca. A erva do campo, as águas e os animais que não couberam nos casebres, reluziam lá fora em suas redomas de gelo.

Lutando contra a tempestade, que às vezes açoitava a terra com rajadas titânicas de vento, um jovenzinho já quase sem forças tentava arrastar seu corpo até Villefort, o maior vilarejo da Armânia. Havia quinze dias ele viajava, vencendo rios e florestas selvagens, comendo as frutas da mata e bebendo o orvalho da noite. Mas a nevasca pegara-o de surpresa, e as roupas já rotas do rapaz não faziam frente ao frio cortante daqueles dias. As pontas dos dedos do moço, chamado Fedro de Capadoce, o fabulista, perderam a circulação já havia algum tempo, e cada junta de seu corpo doía ao menor movimento.

Finalmente a natureza vencera-o. Depois de uma jornada tão grande, Fedro não esperava que fosse morrer daquela forma. Mas estava exausto demais para continuar. Pensou em Dorani, sua jovem esposa, na preocupação com que ela o deixara partir para vender suas fábulas. Lembrava-se ainda de seus beijos doces, beijos que embalavam agora aquele corpo quase congelado e davam a reconfortante idéia de estar em casa.

A neve era fofa debaixo de sua cabeça, como o travesseiro de penas que Fedro tinha em Capadoce. Como ele era pequeno ali, naquele mar de frio e beleza... Forçou as pálpebras uma última vez para contemplar o céu, flocos de neve caíam-lhe sobre o rosto azulado. Então ele fechou os olhos, cansado demais para mantê-los abertos, e deixou-se mergulhar na escuridão da morte.

Acordou três dias depois, em um casebre desconhecido, o ambiente escuro invadido por um forte cheiro de sopa. Tentou levantar-se, mas estava muito fraco, então se limitou a murmurar. Logo surgia uma velha, envolta em mantos de pele e sorrindo com seus dentes podres. Ela não disse nada, apenas trouxe um pouco da sopa rala que estivera cozinhando.

– A senhora tem minha gratidão eterna – balbuciou Fedro assim que conseguiu retomar a voz.

– Haverá meios de pagar a gentileza – respondeu a velha – É sempre útil ter um rapaz forte por perto.

E foi só quando tentou levantar-se que o fabulista percebeu as amarras que o mantinham preso à cama. Estava cativo ali, sem meios de ir-se ou de pedir ajuda a alguém. Aliás, não sabia sequer que lugar era aquele, pois as paredes decadentes dos casebres que via pela janela em nada lembravam as habitações de Villefort.

A velha não respondia muitas perguntas, mas tratava-o bem, dentro das circunstâncias. Durante os quinze dias da nevasca, deu-lhe de comer, beber, e coseu roupas novas para o rapaz. E lia as fábulas do moço, maravilhada com as histórias curiosas que ele escrevia. Assim foi até que, um dia, a neve parou de cair. Os raios do sol invadiram o vilarejo misterioso, dando ao solo coberto de gelo um brilho ofuscante. As crianças saíram às ruas, bem como os homens e seus cavalos. A vida tomava de volta o seu lugar. Foi quando a carcereira resolver soltar Fedro. Desamarrou-o da cama e disse:

– Vá, meu rapaz. Eu pretendia usar sua força bruta, mas suas belas palavras nessas histórias já pagaram minha ajuda. Pode ir em paz.

Tentando acertar os passos, Fedro saiu dali, ainda grato por ter sido salvo e alimentado todos esses dias. Seguiu para uma praça próxima onde pretendia vender algumas fábulas e angariar as moedas que precisava para voltar para casa. Acabou por saber que estava em uma vila de pastores chamada Lupina, por causa dos lobos que havia ali.

De repente um homem insano, domado pela bebida, tomou-lhe as fábulas da mão e espalhou-as ao sabor do vento. Fedro correu desesperado para tentar salvar o trabalho enquanto o homem gritava desaforos e blasfêmias.

– Eu sou o fabulista de Lupina! – bradou o ébrio – Não há lugar para mais um! Quem ousa invadir meus domínios?

– Sou Fedro de Capadoce – explicou o rapaz – Estava em meu caminho para Villefort e acabei vitimado pela nevasca. Uma senhora encontrou-me e ajudou-me durante os dias de gelo, mas agora eu preciso de dinheiro para fazer a viagem de volta. Eu não sabia que Lupina tinha já o seu fabulista. Peço-lhe mil perdões, senhor, parto imediatamente!

– Vai fugir? Eu tenho sede de luta! Que vença o melhor!

Passaram a tarde inteira na peleja, cada um contando suas fábulas e esperando a reação do público, até que Fedro saiu vencedor. Ganhou com isso um cavalo e algumas moedas de ouro, com os quais retornou a Capadoce.

Foi recebido pelos beijos e lágrimas da esposa. Ela soubera da nevasca no rumo de Villefort e temia pela vida do marido. Dorani quis saber como ele conseguira sobreviver, e assim disse Fedro, depois de contar toda a história:

– Vivo para você e minhas fábulas, e escrevê-las salvou minha vida. Ganhei moedas e um cavalo, mas também minha liberdade. É por isso que escrevo, Dorani, porque escrever liberta. Sei que o caminho para vender minhas histórias é difícil, e que posso sequer conseguir chegar lá, mas só Deus sabe onde eu estaria se não tivesse uma pena.

Kássia M
Enviado por Kássia M em 09/09/2010
Código do texto: T2488405
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