"Vovó e a Mega-Sena" =Conto=

- Você está muito ocupado aí no computador, meu filho?

- No momento, não, vó. O que a senhora quer?

- Eu queria que você fosse até a lotérica fazer um joguinho pra mim.

- E não quer mais porque?

- Ainda quero. Deixe de brincadeira, menino.

- Que jogo a senhora quer, vó?

- Aquele moderno. Aquele que está pagando um monte de milhões.

- A senhora quer que eu jogue na mega-sena.

- Essa mesmo. Não a tal tele-sena do Sílvio.

- Pode deixar que não vou me confundir, vó. Quanto a senhora vai arriscar?

- Com dez reais quantos jogos posso fazer?

- Cinco jogos de seis dezenas cada um. Já tem os números?

- Para um jogo eu tenho. Peguei a data de nascimento de seu avô e a minha e juntei tudo. Os outros palpites você pode escolher.

- E se a senhora ganhar? Já tem algum plano, vó?

- Pensei em dar pra você um quarto do dinheiro, ficar com um quarto pra mim e dividir o resto com seus irmãos.

- Nada para minha mãe, vó?

- Para ela vocês dão o que quiserem. Eu, de minha parte, não dou nem bom dia.

O rapaz riu, mas dava toda a razão à avó. Porque dar dinheiro a quem se detesta com bons motivos?

- Dá pra você fazer o jogo agora e me trazer o papelzinho?

- É pra já, vó. A senhora me empresta dois reais pra fazer o meu jogo?

- Te dou. Emprestado eu sei que não tem volta mesmo...

Ele riu de novo, compreensivo. A avó vivia confundindo-o com seu irmão, com o irmão caloteiro que detestava ouvir falar em pagar alguma coisa.

Meia hora depois a avó guardava na gaveta de seu velho criado-mudo o volante de mega-sena e mais uma vez rezava para Santa Rita pedindo um milagre. Queria ver seus netos bem encaminhados na vida e sabia que apenas a poder de dinheiro os incentivaria a estudar pra valer. A nora que se danasse. A peste não valia o que comia. E comia pra valer...

Logo depois das dez da noite o neto entrou na internet, digitou no navegador o site da Caixa Econômica Federal e sentiu o coração disparar. Ali, à sua frente, os seis números jogados pela avó!! Tirou depressa do bolso da calça a cópia que fizera dos números e conferiu mais uma vez. Ali estavam, sem sombra de dúvida, os seis números sorteados!!

- Velhinha sortuda do cacete, sô!! Ganhou um porrilhão de dinheiro logo na primeira vez que jogou!! Vá ter sorte assim na puta que pariu!! Ôpa!! A sorte não é só dela, não...Ela disse que me daria um quarto do dinheiro. Tomara que não volte atrás. Burro do cacete sou eu!! Não fiz o jogo igual ao dela e, pior ainda, entreguei direitinho o volante a ela. Podia ter vindo pra casa e fingido que havia me esquecido. Bem, agora é tarde...

Pensou em ligar para avó dando a notícia, mas parou com o fone no meio do caminho até sua orelha.

- Calma, cara...Muita calma nessa hora...Vamos pensar direitinho sobre o assunto.

Deitou-se em sua cama inteiramente vestido, esforçando-se ao máximo para conseguir o maior autocontrole possível, e pensou muito sobre o assunto “grana da avó agora milionária”.

Às primeiras horas do dia já havia tomado uma decisão: sua avó não precisava daquela dinheirama toda. Era viúva, pensionista, recebia um bom dinheiro todos os meses e tinha toda a assistência médica, jurídica e financeira que alguém poderia desejar. Não era uma velhinha desamparada. Não era nem mesmo uma velhinha. Era uma senhora de pouco mais de sessenta anos e cheia de saúde. Milhões para ela para que? Para dividir com ele e seus irmãos?

Bobagem. Aqueles vários milhões seriam muito mais bem aproveitados por alguém jovem, forte, inteligente,e ainda muita vida pela frente. Ou seja, por ele mesmo.

- O jeito é pegar o volante sem que ela veja, na surdina, na maior moita possível. Já pensou, meu? Eu, novão, bonitão, cheio da grana e mandando ver numa Porsche? Ôrra, meu!! É grana pro resto da vida e ainda sobra. Quer saber de uma coisa? Quem não arrisca...Vou até lá agora mesmo, entro no quarto da vó, abro aquela gavetinha do criado-mudo, que eu sei que é lá que ela guarda tudo quanto é papel, pego aquele volante antes que ela saiba que ganhou e sumo no mundo.

Deu tudo certo. Entrou na casa da avó usando sua própria chave, a que ela lhe dera, dirigiu-se silenciosamente ao quarto dela, abriu a porta, entrou, abriu a gaveta e levou um tremendo susto ao ouvir uma voz atrás dele:

- Querendo me roubar, safado?

Ao virar-se deu de cara com avó que, a uns dois metros de distância, empunhava um revólver.

- Não se esqueça, moleque, que seu avô me ensinou a atirar muito bem. Fique bem quietinho, de costas para mim, e não mexa o corpo um milímetro sequer.

Ontem à noite, seu ordinário, eu fiquei sabendo, pela internet, na qual, diga-se de passagem, aprendi a mexer em segredo, que meus números foram sorteados, mas como era muito tarde, fiquei com medo de pegar um taxi e sumir daqui de casa. Foi bom, porque assim fiquei te conhecendo melhor, fiquei sabendo que é apenas um ladrão, e isso me fez decidir de vez a não dar nada pra ninguém da família. Se você, que eu considerava o neto mais amigo, mais carinhoso e atencioso comigo, quis me roubar, imagine o resto da cambada de sua casa. Sua mãe, então, aquela vaca sem moral, seria capaz de me matar o quanto antes. Por inveja, por ganância ou pelas duas coisas.

- Vó, juro que eu não ia roubar da senhora. Eu só queria conferir os números para ter certeza de que a senhora ganhou.

- Vá contar sua historinha pra outra pessoa, ordinário de uma figa! Desde quando alguém bem intencionado age assim? Chega de conversa. Ajunte os braços atrás das costas.

- Porque isso, vó? Vai me levar preso?

- Não sou autoridade. Vou te deixar algemado e com a boca tampada até que eu tenha sumido daqui, o que não vai demorar muito, já que vou levar só a roupa do corpo, meus documentos e mais algumas coisinhas.

- E a senhora por acaso tem algemas?

- Tenho e não é por acaso. Esqueceu que seu avô era policial? Vou usar as algemas que ele deixou no netinho que o pai dele me deixou.

- Não sacaneia, vó...Se a senhora me der uma grana qualquer eu juro que nunca mais a amolarei. Juro por Deus.

- E eu juro por Deus que você não verá um tostão do meu dinheiro. Nem depois que eu morrer. Tudo que eu tiver ficará para a Santa Casa.

Depois que algemou o neto à cabeceira de sua pesada e antiga cama de casal, pegou uma fita gomada para tapar-lhe a boca e impedir que gritasse por socorro, e para isso teve que soltar a arma em cima do colchão. Foi nesse instante que a nora entrou correndo no quarto, pulou na cama, pegou a arma e apontou para a sogra:

- Quer dizer que a megera ganhou na loteria? Que sorte a nossa, hein? Quando vi esse vagabundo saindo de casa às seis da manhã achei que só podia estar acontecendo alguma coisa por aqui, mas não imaginava que fosse essa maravilhosa novidade. Vamos lá, velha sortuda, passe pra cá o volante antes que eu lhe meta uma bala na cara.

A ganhadora da mega-sena encarou a nora com total indiferença, dirigiu-se ao seu guarda-roupa, abriu a porta lentamente, escolheu o cabide de madeira mais pesado que possuía, voltou até a nora e desceu o pesado artefato na cabeça dela:

- Tome, vaca ordinária! Tome pra aprender a ser besta. Acha que apontaria uma arma carregada para um neto, vagabunda? Tome mais essas pra virar gente, puta dos infernos!!

A surra foi feia e deixou a mulher cheia de hematomas pelo corpo.

- Vá se queixar ao delegado, piranha. Vá fazer o beó, tipa à toa. Com o dinheiro que tenho agora eu te coloco na cadeia por ter agredido meu cabide.

Tomou da mão da nora a arma descarregada, carregou-a com duas balas em segundos e apontou-a para a mulher:

- Vire-se de bunda pra cima e ponha os braços para trás que eu vou te amarrar bem amarradinha.

- Porque...

- Cale a boca!! Vire-se antes que eu atire. Agora está carregada e já estou de saco cheio de vocês dois.

Deixando a nora e o neto bem amarrados em seu quarto, sentindo o coração disparado e rezando para não passar muito mal devido ao nervosismo, tomou um taxi e ordenou ao motorista que a deixasse nas imediações da Caixa Econômica Federal.

Algumas horas depois, já com o dinheiro do prêmio depositado em seu nome, em sua conta, voltou para casa e desamarrou primeiro o neto.

- Quando eu mandar você soltará sua mãe e sumirá de vez de minha vista. Nunca mais quero ver nenhum dos dois, mas mesmo assim deixei um envelope com dinheiro para cada um de vocês dentro do cofre de seu avô. O problema de vocês será abri-lo porque, como vocês dizem hoje em dia, resolvi sacanear legal com essa família ordinária que tenho. Antes que me esqueça: já vendi a casa pro Cachorro-Louco, o que quer dizer que se alguém ocupá-la sem ordem já viu, né? Ele não conversa nem discute. Mata. Agora adeus, meus queridos. O taxi está à minha espera para me levar ao aeroporto, de onde sumirei para jamais ser vista novamente. Europa, lá vou eu...

O cofre do avô era grande, antigo, pesadão e complicado. Gastaram um dinheirão com o especialista que o abriu e encontraram os envelopes com dinheiro. Vovó deixara vinte reais, duas notinhas de dez reais, para cada um de seus netinhos. E cinco para sua mui amada nora.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 18/09/2010
Código do texto: T2505895
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