Codicilo.

Quando eu morrer, não quero que meus dedos estejam a feder cigarros. Acho de um tremendo mal cheiro. Porém, pensado bem, imagino que ninguém se ousará a cheirar os dedos de um cadáver, qualquer que seja os desígnio.

Ah, quando eu morrer! Espero que não olhem para meu corpo com ar de piedade pela boa alma que se esvai. Nem que chorem aos prantos feito velhas carpideiras bem remuneradas. Tenho, após a meu passamento, intentos por demais sigilosos para com o Grande Mestre que há de me aguardar ansiosamente para uma cervejinha nas colinas do firmamento.

Não quero que tapem minhas narinas quando essas ameaçarem sangrar, muito menos que aparem minhas unhas ou raspem minha careca. Não precisam sequer dar-me banho ou verti-me com a casaca da morte. Seria por demais humilhante para um ser lavado por outras pessoas quando se está morto. Deixem-me apenas com minha surrada camiseta cavada e minha bermuda rasgada, pois é assim que fui e é assim que me senti em casa, sempre.

Se alguém porventura tiver que falar mal de minha pessoa em meu velório, que fale, sem receios ou conveniências, pois, na vida ou na morte, as verdades têm de ser ditas. Mas que não percam a oportunidade em dizer-me quando ainda vivo. .

Saibam que a morte levará todas minhas preocupações mundanas, que são muitas, mas que não são o bastante para me causarem a própria.

Que a música seja alegre e que a bebida seja o vinho, que as flores sejam rosas e o cigarro permitido.

Que passarei desta pra melhor, não tenham dúvidas, e que provavelmente estarei de algum lugar espiando a todos em minha própria despedida, e, pasmem, às gargalhadas.

Sempre fui um desses que não se deixam abater pelas agruras mundanas, pelos tormentos ulcerosos e pelas iras incontroláveis.

Sempre quando o tumulto inútil bateu à porta de minha aorta deslizei-me sorrateiramente pela primeira saída de emergência, em direção a um bar aonde com certeza tomei uma gelada.

Assim foi, assim seja...

Cristiano Covas – 17.03.06.