O cemitério dos elefantes

- Já é fato comprovado pelas ciências naturais, embora incerto o local, que os elefantes possuem um cemitério para onde se recolhem na velhice. A coisa se dá mais ou menos assim: o paquiderme, já nos últimos anos de vida, não é mais capaz de acompanhar o ritmo da manada. Então, propositadamente, fica para trás, até que o último jovem do grupo não consiga mais vê-lo. Caminhando pelas savanas, sem saber ao certo a direção, guiado apenas pelo seu instinto, o velho elefante peregrina por dias, semanas, até encontrar o santuário onde repousam os ancestrais. Ossadas e marfins colossais espalham-se pelo chão, tão antigos quanto a própria existência dos gigantes paquidermes. Outros da espécie, que ali chegaram antes, agonizam à espreita da incansável senhora Morte. Caminhando rumo à sombra de um baobá milenar, o velho elefante encosta seu dorso ao tronco da árvore, fecha vagarosamente os olhos e espera, pacientemente, o momento do último suspiro...

O velho Afonso, os olhos vidrados no fundo do copo onde repousavam dois dedos de cerveja, descuidava de observar seu ouvinte. Atrás do balcão, Jorge captava as palavras do freguês. Afonso prosseguia:

- Penso que os homens seriam mais dignos se agissem como os elefantes.

- Aí não concordo! – retrucou o dono do bar – Não vou sair por aí procurando um cemitério na hora da morte. Além disso, como vou saber se é chegada a hora? Não tenho o dom da premonição que um elefante tem.

Afonso não deu muita importância àquelas palavras. A garrafa já estava vazia e pediu a última da noite. Passavam das duas da madrugada e não havia mais ninguém naquele pé sujo além dos dois.

- São raros aqueles que compreendem os desígnios do destino e aceitam a velhice como o fim da vida. Cheguei a conhecer alguns destes.

- Conheceu algum homem elefante?

O velho enfim colocou seus olhos embaçados sobre o dono do bar, que naquele instante enchia novamente seu copo:

- Aqui mesmo, nesse buraco imundo que você batizou de “Esplendor Riviera”. Por onde andam os companheiros Manolo, Cícero, Dirceu, Polaco e tantos outros que aqui bebiam e contavam suas desgraças até dia desses? Um a um foram-se todos, sem deixar vestígios.

- O Polaco eu sei que morreu esses tempos, acho que do coração – respondeu Jorge – O Manolo dizia pra todo mundo que voltaria pra Sevilha e que desencarnaria em terras espanholas. Quanto aos outros, realmente não sei.

- É óbvio que agora todos habitam em outra dimensão, seja no céu ou no inferno, provavelmente a segunda opção. A propósito, você se olhou no espelho hoje, Jorge?

- Não, por quê?

- Você é o retrato da derrota!

O dono do boteco não conteve a raiva e revidou o insulto:

- Derrotado é você, médico de merda, açougueiro! Sem mulher, sem filhos, nem mesmo a profissão tem mais. Vai embora que eu quero fechar o bar! Amanhã eu sei que você estará de volta, é assim há mais de trinta anos. Trata de dormir, velho alcoólatra! Amanhã você acerta a conta.

Por muitos anos Afonso foi um conceituado clínico geral, chegando a chefiar uma equipe de cirurgiões de um grande hospital. Casado, ele estava no auge da carreira quando sua única filha, então com vinte e dois anos de idade, foi diagnosticada com um grave quadro de esquizofrenia paranoide. Todo seu conhecimento em medicina não foi suficiente para salvar a filha. A jovem gritava pelo apartamento, dizendo que um homem a perseguia, quando pulou do décimo andar. A mãe, que no momento estava na rua, deparou-se com uma pequena multidão de pessoas na porta do prédio que, curiosa, assistia a equipe de resgate retirar o corpo do local, já sem vida. Ela abraçou o corpo da filha e nunca mais voltou a ser quem era. Depressiva, não demorou muito para que definhasse e morresse de uma causa qualquer. Afonso passou a beber descontroladamente. Certo dia, ao realizar um procedimento cirúrgico, perfurou o rim esquerdo de um paciente, inutilizando o órgão do sujeito. Ele havia bebido meia garrafa de conhaque pela manhã. Conseguiu escapar da condenação criminal, mas viu seu registro profissional ser cassado. Desiludido, não quis mais saber da medicina. Era um sexagenário naquela altura da vida, mas o peso do sofrimento que carregava nas costas dava-lhe um aspecto de ancião centenário.

Vinte minutos depois de sair do bar, Afonso chegava a seu apartamento. Não que fosse distante, mas as pernas do velho ébrio moviam-se com dificuldade. Na sala, uma mesa de centro cuidava de sustentar algumas garrafas de uísque e vodca. O velho não quis saber delas. No banheiro, em frente ao espelho, ficou aguardando que a imagem refletida lhe dissesse alguma coisa. Em vão.

- Vai tomar no cu! – gritou em alto e bom som para o espelho.

Entrou na cozinha. Segurando uma faca, lembrou-se da perícia com que manuseava o bisturi. Pensou em relembrar seus tempos de médico, com sorte talvez um único golpe fosse suficiente e ali mesmo acabaria seu sofrimento. Guardou a faca no lugar.

Pela sacada, avistou alguns transeuntes, um casal de namorados que adentrava o prédio naquele instante, um carro em alta velocidade. Calculou a altura do seu apartamento até o chão, pouco mais de trinta metros. Esteticamente o resultado não seria bom – pensou. Apenas mais um devaneio na noite que insistia em não passar.

Pensou que poderia vender aquele imóvel, pegar o dinheiro e mudar-se pra alguma cidade do interior do país. Poderia até mesmo voltar a clinicar, pois sabia que médico no interior desse país era artigo de luxo. Quem sabe ir pra amazônia, ou alguma cidade litorânea do nordeste, ou um outro país da América do Sul. Um lugar onde fosse um absoluto desconhecido, onde pudesse alimentar sua solidão absoluta e quem sabe até mesmo esquecer seu passado.

Os dias se passaram. No bar, Jorge começou a levantar suspeitas sobre o destino do fiel freguês, alcoólatra inveterado.

- Também não o vejo há semanas, Jorge – respondia Clodoaldo, um dos poucos remanescentes dos velhos tempos do Esplendor Riviera.

- Pelo jeito o velho filho da puta morreu e me deixou no prejuízo! – bradava Jorge, que no fundo sentia falta do amigo.

As semanas se transformaram em meses. Nem mesmo os vizinhos do prédio sabiam do paradeiro de Afonso.

Era uma quinta-feira nublada de outubro. Havia a promessa de chuva intensa. Passava da meia noite e pelo visto ninguém mais apareceria no bar. Jorge preparava-se para fechar o Esplendor, quando notou um homem parado do lado de fora da porta, diluído na penumbra. Deu um passo para a frente e a claridade desceu sobre ele. Tinha os cabelos bem aparados, a barba feita e vestia branco da cabeça aos pés. Jorge levou um susto e demorou alguns minutos até reconhecer o velho Afonso.

- E então, ainda se bebe uma ampola gelada nesse buraco sujo?

O dono do bar sorriu e quis abraçar o amigo, mas conteve-se no meio do caminho.

- Como assim, o que faz aqui? Pensei que estivesse morto!

Afonso soltou uma gargalhada.

- É, eu estive morto por muito tempo, e por falar nela, a morte, é que estou aqui.

Jorge não compreendeu bem o sentido daquelas palavras.

- Como eu te falei certa noite, os velhos elefantes caminham para o santuário quando chegada a sua hora. E andando por aí, percebi que meu destino não era outro além deste, sentar-me aqui todos os dias em meio a outros paquidermes e aguardar, enquanto o copo esvazia, a minha hora de partida. Um brinde! – e secou o copo num único gole.

* * *

Goiânia, 24 set 2010.