A arte da política

Numa pequena e pacata cidade no interior do Brasil ainda se acredita em lendas: curupira, mula-sem-cabeça, lobisomem, saci, duendes e até em políticos honestos. Zé Venturinha era um deles. Não dos crédulos, mas dos políticos. E dos mais influentes. Foi prefeito por quatro vezes e vereador outras tantas. O apelido, diminutivo de seu sobrenome por parte de pai, o velho João Ventura, ganhou vulto por seus admiradores que viviam a proferir sua trajetória de coragem e luta. Sabia como agradar o povo. Trabalhava muito bem os programas assistencialistas e não se envergonhava de pedir votos. Para os que ainda não tinham água encanada, presenteava-os com tanquinhos de lavar roupas. Aos moradores das regiões que ainda não tinham esgoto, o presente era latrina ou pia de louça. Aos que não tinham luz elétrica, abajures, ferro de passar e até televisores de segunda-mão, se a família fosse grande. Depois, durante a campanha, vinham as promessas de saneamento básico, esgoto, água encanada, eletricidade para todos. Certa vez, antes de sua segunda eleição para prefeito, chegou a fixar os postes de parada de ônibus pelas sete ruas do vilarejo. Disse que estava apenas adiantando o projeto e que depois de eleito traria da capital um ônibus novinho; o coletivo circularia pela cidade durante todo o dia, fazendo inclusive, viagens as moradias mais distantes nos horários da manhã, tarde e noite. Facilitaria a vida dos trabalhadores e das crianças que, por vezes, caminhavam quilômetros para chegar ao único grupo escolar da redondeza. Após a eleição o ônibus foi esquecido sob o pretexto de tirar o ganha-pão do Zé da Kombi, querido por todos os moradores. Os pontos viraram traves de futebol, arcabouço para fixação das bandeirinhas de festa junina e nas eleições seguintes, suporte para cartazes e propagandas políticas do próprio Venturinha.

O prédio novo da prefeitura foi construído bem em frente a sua casa, a maior da cidade, e uma imponente passarela ligava diretamente seu escritório a sala onde ficava sua biblioteca, cheia de livros que ele nunca leu, mas que impressionava os moradores da cidade. Zé Venturinha sempre permitia excursões dos alunos para tomar contato com grandes obras da literatura brasileira. As crianças se deliciavam ao passar pela famosa passarela e ficavam encantadas com as edições encadernadas que eles só viam pelos livros escolares. Nessas visitações, Zé Venturinha sempre proporcionava um reforçado café para a garotada e depois fazia questão de mostrar todos os luxuosos cômodos de sua casa enquanto repetia com sua voz forte e embargada junto às lágrimas: “No futuro, quando eu conseguir completar todo o meu programa de governo (pausa, olhos fechados), talvez em dez ou quinze anos (nova pausa, agora com entusiasmo), todos terão condições de propiciar moradias dignas e confortáveis como essas para suas famílias”.

Durante a campanha para as ultimas eleições, a situação de Zé Venturinha não era lá muito boa. O professor do grupo escolar resolveu se candidatar e fazia forte campanha contra Venturinha. Denunciava seus abusos e demonstrava por meio de vídeos e exemplos o coronelismo exercido pelo atual prefeito. A campanha do professor foi tomando vulto e logo veio o apoio dos adversários de Venturinha, antes enfraquecidos, e das cidades vizinhas. Logo um pequeno grupo de sem-tetos montou acampamento nos arredores da cidade. Apoiavam de forma fervorosa e barulhenta a campanha igualitária do professor, que prometia a reforma agrária e assentamento para todos. Todos os dias faziam passeatas e protestos em frente à prefeitura. Foi aí que erraram. Logo Zé Venturinha atemorizou o povo dizendo que os invasores tomariam as casas de todos, a bagunça e balburdia estava tentando se instalar na cidade. Uma guerra estava para se começar. Mulheres perderiam seus maridos. Filhos perderiam seus pais. Mortes eram dadas como certas num possível e breve confronto. O povo entrou em desespero. O professor foi rechaçado pela população.

O que ninguém sabia era que Zé Venturinha usava uma perna-mecânica por conta de um acidente na linha do trem, ainda criança, antes de mudar com os pais para a pequena cidade. Motivo de sua maior angústia e embaraço. Nunca se descuidava. Não mancava. Sempre de calças largas. Passos firmes. Acabou fazendo com que seu andar mecânico lhe proporcionasse ainda mais autoridade. Não deixava nem que sua mulher o visse sem as calças.

Numa determinada tarde, Zé Venturinha saiu sozinho e armado dizendo que iria combater os invasores sem-teto. Quando chegou ao acampamento, negociou amigavelmente a retirada do grupo em troca de umas terras inférteis e sem valor que seu pai havia deixado como herança em sua antiga cidade.

Antes de chegar à praça, onde o povo o aguardava ansioso, Zé Venturinha retirou a perna mecânica e a enterrou num descampado. Com a terra que sobrou se sujou todo. E quando chegou, diante dos olhos assombrados do povoado, disse que a batalha fora dura, perdera a perna, mas conseguira colocar os invasores para correr. Precisava ir para a capital imediatamente se tratar.

Quando voltou, semanas depois, ganhou novamente a eleição. A partir daí não perderia mais nenhuma. Sua estátua, com uma perna só, continua no centro da cidade e seu nome ainda é considerado sinônimo de coragem, honestidade e caráter.

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 27/09/2010
Código do texto: T2523953
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