O Andarilho - Dia 01

O sol estava quente. Do asfalto saia um cheiro de pneu queimado. A miragem refletida como vapor de chaleira, cobria os olhos do andarilho e o fazia enxergar adiante como de dentro de um aquário. Sua roupa surrada clamava por uma troca urgente no primeiro lugar que parasse. O jeans esgarçado na bainha da calça, a camisa amarelada por detrás do cinto e a bolsa furada que carregava nas costas era quase tudo o que tinha. Dentro dela, um bocado de tralhas: um casaco desbotado, uma medalha da sorte, um prato de alumínio e entre tantos outros objetos curiosos, — muitos deles recolhidos ao longo de sua infinita jornada — seu estranho livro de orações.

“Não levantei em vão. Não caminhei por nada. A cada passo que dou, aumento a minha jornada”.

Era o que repetia todos os dias, mesmo antes de abrir os olhos. Já não era mais preciso orar com o livro aberto, mas ele o fazia. Talvez por hábito ou superstição. Não que para ele isso importasse — e não importava mesmo — mas mesmo assim o fazia, como tomar uma boa xícara de água quente e lamber um punhado de sal.

Já havia se passado algum tempo desde o momento em que deixara a cidade para trás. Os dias vinham seguindo quentes há quase uma semana, e a chuva forte não tardaria em chegar. O solado disforme da velha bota de couro — um antigo presente de Três Marias — deixava marcas no asfalto quente em troca de cascalhos presos ao calcanhar.

— Como seria bom para um pouco para descansar... — Ele pensa. Logo em seguida retira do bolso apertado da calça, um pequeno saco de couro, o abre e catando com a ponta dos dedos, ergue até a língua um novo punhado de sal.

“O pó que alimenta a alma, engana o corpo e o faz caminhar”.

A tarde chegava de surpresa. O sol escaldante, escondido nas trevas carregadas de chuva, observava o crepúsculo desbotado com seus pequenos olhos de raios que escapavam por entre as nuvens. Uma trovoada estala ao longe. O vento cansado trás um cheiro de terra molhada. Um pingo gelado acerta o andarilho. Finalmente a chuva o encontra.

Caminhando pelo acostamento, ele recebe os pingos de chuva junto com as lufadas de vento, que agora molhado, parece está recuperado, e efetivamente mais forte.

Com a chegada da noite e a escuridão total, apesar da chuva forte, ele podia perceber melhor o lugar. Ouvir os barulhos. E apesar da constante sensação de ter o mau sempre à espreita, caminhava mais tranqüilo agora do que antes. Apenas uma coisa começava a lhe incomodar: o estômago. Caminhara durante todo o dia, e apesar do sal lhe alimentar a alma, ela precisava do corpo para seguir em frente. E por mais que a carne fosse burra, não era possível lhe enganar por muito tempo. Ele sabia que a mentira tinha pernas curtas. Curtas e cansadas.

Depois de caminhar firme por mais duas ou três horas, seus pés — ensopados — movimentavam-se automaticamente um após o outro. Conduziam o jeans, a camisa desbotada, a mochila pesada e uma carcaça vazia. Sua alma? Não o abandonara, apenas tinha sido deixada de lado para que as mentiras curtas e cansadas pudessem continuar a arrastar aquele fardo. Quando o corpo finalmente caiu de joelhos sobre o asfalto, e a alma de súbito fora despertada, uma luz esbranquiçada surgiu à sua frente. Um vulto gigante atravessou o feixe de luz e deslocando-se pela estrada, parou diante do andarilho. Ainda caído sobre a pista molhada, ele ergueu sua mão esquerda, e como todas as noites pronunciou aquelas palavras estranhas, que mais do que nunca haviam encontrado um real significado:

“Com o corpo ainda de pé, me retiro da estrada. Não me leve contigo essa noite, pois longa é a minha jornada... Salmaré”.

O barulho forte do ar invadindo os pulmões, e seu corpo finalmente desaba. Como um vampiro alucinado, o vulto aproxima-se da carcaça cansada e a envolve como um manto sombrio na noite. A luz se apaga e o andarilho finalmente descansa.

Leia todos os dias do Andarilho e acompanhe esta saga surpreendente...

Frei Antonio Silva
Enviado por Frei Antonio Silva em 17/06/2005
Reeditado em 02/08/2005
Código do texto: T25324