RETRATO CRÔNICO

Sob a sombra de duas amendoeiras, numa calçada irregular, deitaram-se os dois homens de uniformes vermelho encardido. Cansados do dia fatídico limpando a rua, esqueceram suas latas e pás bem distante, e deitaram sob aquela sombra enorme de duas amendoeiras folhudas e alvoroçadas em suas copas por chilreio de pardais.

Eram dois homens comuns, de pele parda, olhos tristes de umas olheiras de antigas bebedeiras em noites perdidas de sono para rir e beber quase de graça em becos recônditos onde mais ratos habitavam. As mãos calejadas, ásperas agora serviam de travesseiro para o descanso de suas cabeças. Deitaram-se emparelhados. Transeuntes desviavam-se pelo meio fio, alguns com sombras de olhares assustados, e os dois homens sorriam um para o outro quando uma dama ou outra passava muito perfumada.

_ É todo perfume do mundo – dizia um deles quase não conseguindo abrir os olhos cansados, cegos da luz do dia que irradiava como canto de pardais.

Admiravam as coxas brancas, morenas, torneadas das moças de vestido; das formas pelas calças jeans e ate dos sapatos de salto que faziam barulho.

Riam, se riam, e mastigavam o próprio silencio como animais que ruminavam. Deitados no pasto, enfastiados, cansados, sem quase lembrança do dia anterior, sem esperança nos dias ulteriores. Sonolentos, escondiam o rosto, marcados de tênues cicatrizes, com os braços encardidos e ásperos. E riam adivinhando uma conversa, com monossílabos fragmentados:

_Será... Hoje ... Espero...

_Quem... – e bocejava atento na orelha alerta para um toc-toc de salto alto que se aproximava – pode saber.

Davam de ombros, procuravam um lado melhor para fugir da claridade da tarde. Não esperavam regressar para as suas pás e latas de lixo, arrastando suas pesadas vassouras. Um deles lambeu os beiços com grossa saliva, sonhando com um copo de cerveja, mas nem usavam carteiras. Virou-se contra o muro da calçada, ficou admirado do lodo brotando vida na parede úmida de chuvas e urinas velhas e viciadas de muita cafajestada e podridão.

Nem sentiam solidão. Sentiam sede de um beber diferente, sentiam fome de uma comida colorida. No momento o pensamento era como a preguiça acumulada de dias. E a aquela calçada era como um lar bom e podiam repousar suas cabeças e nem se pensar...

- Falou alguma coisa – perguntou um deles nem mesmo se virando para o outro.

O outro nada respondeu apenas murmurando, e aquele aceitou como resposta sem se saber se sim ou não.

Um carro passou veloz pela estrada, uma sirene tocou bem longe, e ai os olhares cansados e vermelhos se entreolharam quase sobre os braços na testa. Policia ou ambulância? Mas desistiram violentos na modorra. Sem filhos que pudesse pensar, mesmo se talvez os tivesse, assim como mulheres a pensar. Outras mulheres a sonhar. Viviam daquele dia como único sem ontem nem amanhã.

Contudo ouvia-se dizer ou perguntar um para o outro:

_ Hoje é segunda?

_ Acho que quarta.

E não se sabiam por que lembravam que queriam fumar, mesmo pediam um cafezinho de graça no botequim já que varriam tão bem a calçada dali. Cediam-lhes com misericórdia mal-humorada. Ruminavam rindo seus risos ingênuos de miséria abatida por olhos que transpareciam. Fomentos pelo beco na boca da madrugada, sem o medo antológico dos bacilos que moravam na umidade viciada da promiscuidade que seguiam arrastados como filhos da enxurrada.

Pouco a pouco a tarde cedia, e eles se esqueciam quase dormitando, sabe-se lá em que pensando. O próximo momento era uma surpresa que quase sempre acreditavam boa, no que boa eram para eles.

_ Temos que ir para o galpão devolver nossas ferramentas – disse um se erguendo, sentado sob a laje úmida e suja da calçada – já é hora de largarmos – e tocava o pulso sem relógio, ciente da obrigatoriedade de um relógio ao pulso.

_ Que dia cansativo – respondeu o outro se erguendo, batendo nas pernas da calça já desgastada e encardida.

O outro riu, levantou-se, espreguiçando-se respondeu quase num berro:

_ Eita diacho!

Gargalharam ao mesmo tempo, emparelharam rumo onde deixaram suas latas e pás, batendo e arrastando suas botas velhas.

A calçada onde ficaram deitados, agora livre, transeuntes tomaram a liberdade de usá-la, homens mais bem vestidos ajeitando as golas pólos de suas camisas, e moças mexendo nos longos cabelos ou nas alças das bolsas de couro rumo ao ponto de ônibus.

Não se sabe bem porque um pombo pousou ali sob aquelas amendoeiras e ficou bicando o chão sofregamente só fugindo espavorido quando finalmente um ônibus cruzou aquela rua com um ronco truculento e alvoroçado que morreu devagar no fio do silencio de alvoroço de pardais que recomeçou...

Rodney Aragão.

“Enquanto a vida não tiver uma explicação lógica, qualquer coisa que se escreva vai parecer (apenas parecer) sem lógica”.