Anão de circo

Sob vaias, impropérios, gritos, xingamentos, gargalhadas, tomates e ovos atirados da platéia, ele entrou no picadeiro. Sua função era distrair o público entre uma atração e outra. Não havia nada determinado para fazer. O dono do circo lhe deu apenas uma orientação quando o contratou: Seja ridículo e faça as pessoas rirem. Não era algo muito difícil, pois sua constituição física grotesca era risível por si só. Seus membros atrofiados lhe dificultavam o caminhar, fazendo com quê quem o visse reagisse com um misto de asco e risos. Não sabia quantas vezes já tinha cumprido aquela rotina. Perdeu a quantidade de vezes em que entrou no picadeiro para simplesmente ser hostilizado pelo público. Estava há anos no circo, tinha passado quase toda vida acompanhando a trupe Brasil afora.

De início, logo que entrou para o circo com 10, 11 anos de idade, sentiu que tinha encontrado uma família, que havia descoberto um lugar onde seria aceito como era, e poderia viver entre iguais, já que havia outras deformidades na trupe, como uma mulher de barba, outros anões, pessoas com deformidades físicas, coxos, zarolhos, homens de orelhas e narizes grandes, cabeças enormes, que faziam parte das várias atrações circenses, dos quadros de “terror” e deboche do espetáculo. Mas com o passar dos anos percebeu que ali ele não era exatamente aceito, que não só o público, mas também os funcionários e os artistas do circo faziam troça de sua feiúra, sentiam repulsa por conta de seu aspecto desagradável.

Odiava aquele momento em que tinha que entrar no palco. Lembrava que logo no início, ainda criança, não queria estar ali e chorava quando chegava sua hora. Era atirado no meio do palco, aos prantos, não sem antes tentar agarrar-se nas calças do gerente do circo, que lhe jogava palco adentro, juntamente com outras aberrações e palhaços. Ficava parado no centro do picadeiro, aos berros e prantos, gritando pela mãe que não conheceu. Mas seu pranto se perdia no meio da gritaria da platéia e das algazarras dos palhaços e das outras aberrações. Ele parado ali no meio, às lágrimas, enquanto os palhaços lhe atiravam tomates por todo corpo, davam-lhe beliscões e tapas pelo seu corpo. Ao término de seu “show”, um dos palhaços lhe puxava pela orelha, para fora do picadeiro. Quantas vezes não pensou em fugir dali? Mas, ir para onde? Fora dali havia apenas a fome, o frio, a chacota e os olhares de repugnância do mundo. Era bem verdade que não estava exatamente livre da chacota e dos olhares de desprezo das pessoas, mas pelo menos tinha comida e um teto para dormir. Então foi ficando, foi se aperfeiçoando na arte de ser ridículo, de ser grotesco. Não era difícil, não se exigia muito dele: Afinal, sua própria condição humana o fazia ridículo. Ele era feio, extremamente feio.

Mas era sempre todo ódio quando entrava no picadeiro. Odiava a platéia, odiava o gerente do circo, odiava seus colegas de aberração e de desprezo, odiava o vendedor de amendoim, odiava o vendedor de pipocas, odiava os artistas belos e sensuais, que eram tratados como estrelas de cinema pelo dono do circo. Mas odiava especialmente as criancinhas. Não suportava ver suas carinhas remelentas e felizes. Não suportava o brilho de encantamento de seus olhinhos, com o colorido do circo. Não tolerava seus gritinhos esganiçados e seus choros estridentes. Eram elas, as criancinhas, quem mais os xingavam, quem mais atiravam cascas de amendoins e pedaços de papel. Eram elas, as doces e afáveis criancinhas, que muitas vezes cuspiam no palco e nele próprio. Algumas, mais atrevidas ainda, e sob o olhar cúmplice e as gargalhadas encorajadoras dos pais, chegavam a adentrar o picadeiro para lhe chutarem e beliscarem.

Então estava lá. No picadeiro, correndo de um lado para o outro, esbarrando em seus colegas deformados. Rosto pintado, no nariz um adereço vermelho e em forma de bola, chapéu de bobo na cabeça, roupas coloridas vestindo seu corpinho desajeitado e torto, tentando dançar uma música infantil. O ódio em seu coração. Tentava, enquanto corria e era xingado, pensar em outras coisas, no mar, que achava belo, em uma viagem a Paris, na filha do mágico, por quem era apaixonado. Tentava, mas seus pensamentos eram cortados por um ovo ou tomate no rosto, ou por um tabefe de outro palhaço. Por vezes, quando percebia que o barulho da platéia e da música que animava seu “número” estava muito alto, aproveitava a algazarra para gritar palavrões, xingar todo mundo, dizer que os odiava. Estava ali, exausto, as perninhas doendo, a cabeça doendo, faltava-lhe fôlego para correr de um lado para o outro. Às vezes havia 4, 5 espetáculos por dia. Uma matinê pela manhã, um espetáculo a tarde e mais três durante a noite. E ele tinha que entrar no picadeiro várias vezes, sempre no momento que entrecortava uma atração e outra, para distrair a platéia e o palco ser preparado para o show seguinte. Ele já não era mais criança. Tinha 39 anos, mas sentia-se um ancião. Desejava ardentemente morrer, perguntava-se porque não tinha coragem para tirar a própria vida. Nestas horas, quando a solidão constante se aguçava e a dor tomava dimensões insuportáveis, pensava na filha do mágico, na brancura de sua pele e na delicadeza de seu sorriso. Foi a única pessoa, em toda sua vida, que lhe sorriu um sorriso suave e verdadeiro, que olhou em seus olhos e se aproximou dele sem repulsa ou hostilidade. Ela gostava de conversar com ele, e chegou um dia a dizer que gostava muito dele... Como amiga. Amiga? Eu não quero amigos, disse ele, de si para si, quando a filha do mágico lhe falou estas palavras. Um dia, quando andava entre as tendas e lonas do circo, flagrou a filha do mágico com Hércules, “O homem mais forte do mundo”, que tinha seu número de levantamento de peso como uma das principais atrações do circo. Ao ver aquela cena, de sua amada deitada nua, e com um brutamontes em cima dela, fazendo-a gemer, seu coração doeu de forma até então inédita. Ele, que estava tão habituado a sentir dor e a sofrer, não poderia imaginar que aquela dor fosse tão forte e a mais insuportável de todas as dores. E ele chorou, não de ódio ou simplesmente de tristeza. Mas chorou porque foi de novo atirado à realidade. Ele era feio e grotesco. Como poderia a filha do mágico gostar dele? Ela sentia compaixão, pena, amizade, sei lá o que, por ele. Mas o que ele queria, o que ele necessitava, era do amor de uma mulher. E ao vê-la sob os braços musculosos de Hércules, ele compreendeu que nunca seria de fato desejado por uma mulher, que nunca seria amado.

Lá estava ele. Correndo de um lado para o outro do picadeiro. Era o último intervalo, antes da última atração do último espetáculo da noite. Depois daquele momento, ele iria descansar, tomar uma aguardente antes de dormir. Alguns de seus companheiros talvez fossem para algum puteiro da região, mas não ele. Estava cansado. Ademais, as putas normalmente lhe cobravam muito caro. E a expressão de repulsa na cara das putas, quando ele as penetrava, ou enquanto elas lhe chupavam, fazia seu ódio pela espécie humana aumentar. Não, iria tomar cachaça e dormir. Como gostaria de não acordar! Odiava as manhãs, quando acordava e via que ainda estava vivo. Não quero acordar! Não quero acordar! Era assim que ele despertava. Correndo de um lado para o outro. Levando tapas e beliscões dos palhaços, xingamentos e pipocas em sua cara. Começou a sentir-se tonto, o peito passou a arder muito. Parou no meio do picadeiro. As outras aberrações, coloridas e de nariz de palhaço na cara, correndo ao seu redor. Tomate e papel jogados no meio de sua face. Colocou a mão no peito e gritou. Um grito agudo e lancinante. A platéia gargalhando e lhe xingando, as criancinhas berrando, chorando e sorrindo. Os papais e as mamães encantados com o encantamento de seus filhos. Fez uma careta, ajoelhou-se no meio do picadeiro, as mãos no peito, e finalmente caiu de bruços. A platéia gritava, as aberrações pintadas de palhaço aproveitaram para lhe chutar o corpo que ali jazia. Na primeira fila, um pirralho pedia para a mãe lhe deixar chutar o anão. Mamãe fez cara feia, olhou para papai, que disse: “Vá, Junior.” O pirralho correu todo feliz, começou a chutar o corpo disforme do anão, enquanto a música não parava de tocar, as outras aberrações pintadas de palhaço corriam de um lado para o outro e, de quando em quando, chutavam o corpo inerte do anão. O pirralho subiu então no corpo do anão, papai também correu para o centro do picadeiro, e passou a bater fotos do Júnior montado no cadáver colorido do anão. O dono do circo sorria, o gerente do circo sorria, a platéia sorria, a filha do mágico sorria, Hércules sorria. Por um instante, todos pareciam felizes naquela noite. Indubitavelmente, foi o momento mais feliz do circo. E, escondido em seu corpo debruçado sobre si mesmo, feito de montaria pelo pirralho, um sorriso rígido e cadavérico esboçou-se no rosto sem vida do anão.

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 12/10/2010
Reeditado em 27/04/2011
Código do texto: T2552182
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