Tenentinha, Nascida Para Ser Selvagem!

Maria Terência Cavalcanti nasceu numa família de classe média. Os pais eram professores do ensino básico.

Quando adulta e bêbada, muitos a perguntavam o porquê de Tenentinha; e ela respondia:

“Terência era minha mãe; é também meu sobrenome; quando pequena era chamada de Terencinha, em diminutivo carinhoso. Depois, quando entrei para o universo dos bêbados contumazes, não entenderam nada e começaram a me chamar de Tenentinha, com m ao invés de r, e também porque por onde passo mando.”

E Tenentinha mandava mesmo; desde pequena um gênio inquieto e irritadiço. Dificilmente aceitava ordens e opiniões alheias. Teve uma educação razoável, sabendo ler, escrever, fazer contas, ter idéias (se é que ensinam isso) e decorar poemas, principalmente os de Pessoa, Drummond, Bandeira, Baudelaire, dentre outros.

Costumava dizer que Bob Dylan não tocava nem cantava nada, mas era um poeta sem igual, daqueles, como Jesus Cristo, que com um simples olhar e algumas palavras jogadas ao vento, fazia multidão se comover.

Seus pais não conseguiram domá-la por multo tempo.

Foi só tomar consciência de si, que era gente, saiu pelo mundo.

Aos doze anos fugiu de casa. Fugiu não, expressão corriqueira e sinônimo de fraqueza, Tenentinha na verdade disse, olhando nos olhos dos dois, que estava de partida; destino: sabe-se lá...

E assim foi, deixando os pais boquiabertos, sentados, imóveis cada qual em sua cadeira.

Tenentinha bateu a porta e nunca mais voltou. Não era pródiga. Era doida varrida.

E os velhos sabiam; tentar impedi-la seria catastrófico. Era só se lembrar do posto de saúde, quando foram vaciná-la contra raiva, pois havia mordido um cachorro (o cachorro morreu, diga-se de passagem, uma vez que a mordida afetou artéria do pescoço; morreu esgotado), e ela acabou quebrando toda a ala de vacinação; quebrou inclusive a perna do auxiliar de enfermagem, que bestamente tentou imobilizá-la. Sua perna foi quebrada em três partes, como se tivesse sido socada nos raios de uma motocicleta em movimento. Nunca mais andou direito, o pobre rapaz. Tenentinha era “Born to be wild”, the killer woman, insensible”.

E assim foi Tenentinha pelo mundo...

Por dezenove anos não se ouviu mais falar dela na pequena cidade de Poeirópolis... Era, para a sociedade mesquinha, insignificante demais para que alguém perdesse tempo em recordar seu nome.

Um dia, porém, quente de outubro, fui buscar cerveja no boteco da dona Rosa. Queria algumas antárcticas geladas, como só existe no boteco da dona Rosa, e queria já. Estava existencialista, meio estranho ao mundo. Solidão, boa música e cerveja gelada me transportariam para o universo almejado... E lá reencontrei Tenentinha...

Parei em frente, desci do carro com os cascos e adentrei ao boteco fedorento. Por um lapso de segundo chapei com o silêncio interrompido apenas pelo zoar de um mosquito e o motor dos refrigeradores, quente pra caramba, lingüiças penduradas, e dona Rosa, que cochilava quando entrei, foi logo recobrando a consciência, limpando a baba com a costa da mão esquerda e dizendo, assustada e descabelada, mais pálida que um cadáver:

“Tenentinha teve aqui agora há pouco... A Tenentinha! É! Tomou meia garrafa de pinga, da boa, e esqueceu até a carteira, cheia de dólares, por sinal! E como estava esbelta! Falava dum tal de transcendentalismo e outras coisas que não entendi...”.

Savok Onaitsirk, 21.10.10.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 22/10/2010
Reeditado em 22/10/2010
Código do texto: T2571462
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