Passado negro, passado branco.

Sentou-se levantando um pouco o paletó para que este não ficasse por baixo. Olhou o relógio, ainda estava com algum tempo. Atendeu um telefonema rápido. Algum funcionário do escritório lhe fazendo mais uma daquelas perguntas idiotas de todos os dias, seu suspiro, ao se despedir da pessoa, refletiu sua falta de paciência e de esperança.

O Café em que estava era aberto, como um boteco brasileiro e nele, apenas um negro malvestido, comendo um pão com café, compunha a paisagem. Algumas mesas, cadeiras e dois atendentes também faziam parte daquele cenário. Além de, é claro, algumas máquinas de café e pão.

O homem bem vestido sentiu fome, pois já fazia algumas horas que não comia qualquer coisa – sentia o corpo exausto e sem energia. Apalpou os bolsos traseiros em busca da sua carteira. E lá estava ela, bastante gorda: alguns cartões de crédito bloqueados, duas moedas de cinco centavos, habilitação do órgão de transito, dois pedaços pequenos de papel e duas fotos de criança em preto e branco e de uma senhora, também em preto e branco. Imediatamente, o homem transportou-se para outro lugar.

A senhora era D. Isaura Antunes Castro, uma filha de senhores de engenho no século XIX no Recôncavo baiano, sua bisavó por parte de mãe, herdeira de grandes terras e fortunas que foram passadas de geração em geração pelos Antunes Castro, até virar dívidas e chegar a ele, Hermínio Antunes Castro.

Advogado formado pela Universidade Federal da Bahia, Hermínio fora um adolescente revoltado, inconformado com as perdas da família. Dizia ele que o grande culpado pela falência era o pai – herdeiro indireto de D. Isaura. Passava horas estudando nos livros e nas contações dos antigos sobre o passado dos Antunes Castro.

História era sua primeira opção de profissão, mas a educação o fez seguir o direito. Agora tinha seu próprio escritório, algo que não ia muito para frente, tendo em vista o interesse do principal gestor e a quantidade de dívidas da família. Seus pais haviam morrido dois anos atrás, deixando-o de herança débitos com outras famílias e empresas.

Queria tomar um cafezinho acompanhado de um pão de queijo, mas não havia recursos para tal. Apenas o horário de uma reunião com um possível cliente de uma família que a sua estava em divida. Olhou para o negro - provavelmente algum descendente direto de escravo e talvez até de algum escravo pertencido aos Antunes Castro.

Mas o negro tinha um pedaço de pão e um café para tomar. Hermínio observou veementemente aquela cena, sem qualquer sentimento latente no peito. Os trajes de ambos talvez definissem seus papéis sociais e, até mesmo, a história de cada um.

O oxigênio de Hermínio começou a ficar pesado. Uma ventilação mais profunda e curta começou a fazer-se necessária. As bochechas tornaram-se rubras e o peito apertou-se. A cada movimento, mesmo que mínimo, do negro, o advogado enchia os peitos de ar pesado. E o peso do oxigênio aumentava de forma exponencial, ouvia-se a respiração do advogado de qualquer lugar do Café.

O negro o encarou querendo entender o que se passava com o rapaz ao seu lado. Talvez estivesse passando mal, e se ele fosse ajudá-lo? O agricultor, de pele escura que estava na capital para vender alguns produtos, levantou-se e seguiu na direção do homem pálido. Em um movimento rápido segurou-o pelas costas.

Hermínio levantou-se e tirou do bolso, em uma respiração, um canivete. Encarou o negro, a respiração tornava-se mais do que ofegante. O negro paralisou-se instantaneamente. O advogado encarou o pedaço de pão, segurando com uma mão um braço do outro homem e com a outra, o canivete, a apenas alguns centímetros do corpo preto.

A vítima da situação entendeu o fato e fez um movimento, mínimo, com a cabeça para a direção do pão. Hermínio sentiu uma fraqueza nunca experimentada antes, seu estomago parecia se enrugar e o corpo já não aguentava nem mais ficar ereto.

Ele soltou o braço do outro, e com a mesma mão, pegou o pedaço de pão. A outra mão continuava a segurar a faca, canalizando uma energia que talvez não estivesse disponível naquele corpo exaurido.

Mastigou todo o pão com voracidade, em questão de segundos.

Olhou para o negro e, instantaneamente, apertou mais a arma. Sentiu o objeto perfurante preencher toda a sua mão e, com um gesto único e preciso, fez o gume entrar.

Agradeceu a aquele homem tão gentil e colocou o canivete no bolso.

Malluco Beleza
Enviado por Malluco Beleza em 26/10/2010
Código do texto: T2579258
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.