Conversações No Além-Mundo.

Um dia Albert Camus me disse que poderia ter feito muito mais caso não tivesse morrido tão jovem. E disse ainda que a falta de grana também o bloqueou sobremaneira. A falta de grana foi pior que a morte, confidenciou-me baixinho. Após a morte se cria de qualquer forma, o que quiser e sem grana, bastando pensar. Já na vida para colocar as idéias no papel precisa-se de verba, e os homens, cientes de seu declínio, são vaidosos demais. Editores e burocratas não respiram sem que lhes encham seus intestinos de merdas. O que até hoje, morto, não consegui compreender. Uns aqui me disseram que a vaidade é importante para que deixem de ser animais e concorram uns com os outros, evoluindo, assim. Achei um método estranho, mas já não questiono nada, morto que estou.

Disse que governos deveriam implantar meios para que os detentores de “ânsias artísticos” (não usou o termo dom) pudessem expressar melhor suas idéias, mas governo nenhum quer “ser pensante” vagando por aí; são uns criadores de casos”, me dizendo em outra ocasião Francisco Franco, o ditador que aniquilou Garcia Lorca, chamando inclusive sua amada madre de “porca”. O Franco comia uvas sentado numa enorme cadeira de madeira, acompanhado por milhares de “zeros”. E gritou-me cuspindo um caroço: posso seu um, mas estou com meus zeros me seguindo, o que me dá a possibilidade de ser um milhão! E ria, babando, com seus zeros rindo mecanicamente consigo.

Pensadores e governos, em especial os ditatoriais e democráticos enrustidos abominam livres-pensadores.

Casei-me com um marido bêbado!, berrava-me nos ouvidos uma senhora pálida, deitada numa nuvem escura do outro lado do firmamento, e ele acabou com meu sossego!

Curioso, questionei-lhe do porque de tal afirmação e ela respondeu-me que para poder viver em paz se entupia de ansiolíticos dia e noite.

Não precisava disso, pensei, bastava se separar do marido bêbado, ou de fato se utilizou de seu vício marido para justificar o seu por ansiolíticos.

Que nada, disse-me por sua vez seu marido, o qual bebia estranhamente num bar vermelho que se me afigurou abruptamente numa região iluminada num canto qualquer. O fim da vida de todo mundo é triste! E ela não aceitou a “feiúra” que o tempo lançou sobre seu corpo, por isso se entupia de todo tipo de remédio que lhe extirpasse a maldita realidade, como ela mesma gostava de berrar com a língua travada! Não quero mais realidade, porra!!

Eu, com isso, fui ficando cabreiro e assustado! Que céu, ou inferno estranho era aquilo tudo?! As pessoas faziam ali o que mais gostavam de fazer em vida, mesmo inconscientemente. A velha dopada de ansiolíticos vivia resmungando deitada numa nuvem negra, meio chapada; em compensação, seu marido bêbado vivia dentro daquele bar vermelho conversando com uns seres estranhos, frutos de sua imaginação. Confesso que meio de relance imaginei ver o Vinicius de Morais por lá, conversando com o Bukowski ou o Fausto Wolf, não pude ver ao certo. Tudo meio esquisito ali naquele céu que em vida muitos queriam e ao mesmo tempo temiam.

Botei uma pedrinha de sal grosso no copo de cerveja que me deram, geladinha, e continuei meu diálogo com o Albert Camus, que era um caro muito bom de papo. Disse-me que gostava da Argélia, mas que era um país movido pelo preconceito, talvez por ser miserável, e que na França havia mais “abertura”. Essa “abertura” disse-me com um sorrisinho gostoso no canto da boca, fumando um cigarro ordinário, que fedia pacas. Na França abre-se tudo! A mente, principalmente, e as mulheres não receam em abrir suas pernas com prazer. Aí, dito isso, sorriu abertamente, denotando seus dentes manchados de tabaco. As francesas não eram lá muito a fim de banho, mas seus perfumes e sua sexualidade exacerbada, faziam tudo o mais parecer ridículo. Aí me disse algo em francês que não pude identificar, mas era alguma palavra bem libidinosa. Êta francesas boazudas!, nesses termos.

Mudando de assunto, num intervalo, sorrindo, Camus me disse que Bob Dylan toca nas rádios celestes mesmo estando ainda vivo! Os chefes por aqui gostam muito do tal do Dylan, e não vêem a hora de poderem trazê-lo! Dizem que o Dylan é um ansioso que conseguiu criar mesmo afundado em sua ansiedade, o que para eles, no céu, é uma tremenda dádiva, uma vez que o pior mal dos vivos é a ansiedade, e poucos sabem disso, mesmo Chico Xavier tendo explicitado isso à exaustão, independentemente de religiões, que não passam de besteira, de poeira.

Esse Dylan realmente é um sujeitinho transmissor de tranqüilidades revoltadas! Nunca o havia ouvido em vida, uma vez morri antes de sua fama, mas posso ouvi-lo agora aqui nas rádios celestes e sinto isso, disse-me mais uma vez Camus. O Dylan deixava tudo pra última hora e fazia tudo em primeira mão! Ser cômico, trágico, humano, transcendental, tudo ao mesmo tempo, o que causa um espanto bom até nos que estão aqui mortos!

Nisso, coincidentemente, o rádio do céu começou a tocar uma música do Dylan, à qual não sei o nome. Acho que era aquela “horas a fio” (Like a Rolling Stone), o que, putz, quase me fez chorar! Só não o fiz por vergonha do Camus. Interrompi as lágrimas na marra.

Camus riu dizendo-me:

Deixa de ser bobo, rapaz!

Savok Onaitsirk, 14.04.10.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 27/10/2010
Código do texto: T2581312
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