O Homem sem coração - Capítulo XVIII

O observador oculto

– Advocacia, boa tarde!

– Por favor, eu quero falar com o Mário.

– Quem fala?

– O governador.

– Tudo bem, dr. Alberto? – a telefonista não obteve resposta do governador e continuou – O dr. Mário não está, ele foi a Brasilia resolver alguns problemas e só deve retornar amanhã. Posso ajudar em alguma coisa.

– Não, obrigado. Você disse que ele só retorna amanhã?

– Sim. Ele deve retornar amanhã. O senhor quer deixar algum recado, governador?

– Não, obrigado. Pode deixar que entrarei em contato com ele outro dia. Não é nada urgente. Passar bem.

Alberto numa das salas do Palácio dos Bandeirantes, de onde despachava e administrava o Estado de São Paulo, soltou o telefone da mão e com um estranho brilho no olhar planejou, “Quer dizer que o gato saiu e deixou a gatinha sozinha. Acho que está na hora do rato tomar conta da casa”.

* * * * * * *

Blim, blom! Blim, blom!

– Já vou! Já vou!

Ana pôs o roupão e caminhou em direção à porta. Estava ainda molhada, com os cabelos enrolados envoltos numa toalha, mas deu tempo de acabar o banho. Chegando até a porta olhou pelo olho mágico e a abriu.

– Alberto, você?

– Boa noite, Ana! O Mário está?

– Não, o Mário viajou a Brasília hoje cedo, você não ficou sabendo?

– Não. Ele não me avisou de nada. Deixa estar, outra hora eu volto. Parece que cheguei numa hora não muito apropriada, né?

– Não, Alberto. Você é sempre bem vindo. Entre para beber alguma coisa, sinta-se à vontade. Só não repare que eu acabei de tomar banho e preciso me trocar. Você me espera?

– Claro. Com licença, Ana.

Tudo estava acontecendo da forma que Alberto havia planejado. E ainda melhor. Só de ver Ana envolvida naquele roupão sua mente foi longe. Sentou-se no sofá da sala enquanto acompanhava a ex-cunhada caminhar deixando as marcas dos pés molhados no assoalho da sala e do corredor. Ana entrou no quarto e deixou a porta entreaberta para poder conversar com Alberto enquanto se trocava.

– E o governo do Estado, Alberto, como vai?

– Vai bem, Ana. Mas é muito cansativo. Comandar um Estado como São Paulo não é fácil, exige muito da gente.

– É, eu imagino. – concordou Ana.

– E a Mirtes, você a tem visto, Ana?

– Quase sempre. Ela está tentando se reerguer. Nos primeiros seis meses depois do desastre foi pior, agora que está quase para fazer um ano do falecimento do Raphael e da Lívia, ela parece estar se conformando mais. Eu imagino como deve ter sido doloroso pra você também.

– Se foi. Eu tenho muita pena da Mirtes, ela convivia mais com eles do que eu. Quase um ano e parece que foi ontem. Quanta saudade eu tenho dos meus filhos, Ana.

– Entendo. Pode ligar a televisão se quiser, Alberto, o controle deve estar por aí. Eu já vou me vestir.

– Acho que vou ligar sim, Ana.

O barulho da televisão seria ideal para que alguns passos não fossem ouvidos. Alberto se levantou do sofá, logo encontrou o controle remoto e ligou a televisão aumentando o volume do som. Em seguida, caminhou pelo corredor prendendo a respiração até a porta do quarto no qual Ana se vestia. Da fresta da porta, um pouco abaixo da dobradiça superior, pôs-se a espiar a ex-cunhada se vestindo, “Que delícia! Olha só que patrimônio! Vale a pena sim, essa mulher é uma potranca! Aquele paspalho do Mário pensa que esse corpo macio vai ser a vida inteira só dele? Ah! Eu quero! Eu quero!”. Ana não percebeu que estava sendo observada por olhos vorazes, vestiu primeiro a calcinha, depois o sutiã e, por fim, colocou uma saia leve, ocultando de vez o corpo nu das vistas insaciáveis do observador oculto. Alberto voltou rapidamente para a sala, “Fiquei com água na boca. Agora que eu quero mesmo. Eu quero!”.

– Pronto, Alberto. Assim está melhor. Faz tempo que a gente não conversa mesmo, né?

– Eu gosto de conversar com você, Ana. E mesmo estando separado da sua irmã, você sabe que você e ela sempre estarão no meu coração. Vocês agora são como irmãs pra mim.

– Você sempre foi muito gentil, Alberto. Isso é o que realmente importa, deixo cada um com seus problemas. Não meto a colher na relação sentimental de ninguém. Acho que mesmo separado, você nunca abandonou a Mirtes e isso é bacana de sua parte.

– Não poderia ser diferente, ela sempre será a mulher da minha vida.

– Desculpe me intrometer na sua vida Alberto, mas por que vocês não voltam.

– Depois que eu entrei pra política a Mirtes mudou muito, Ana. Ela não me entendeu como você entende o Mário. Mas este assunto está encerrado, não há mais volta, pelo menos da forma que era antes. Eu gosto muito dela como uma irmã, como uma amiga. Assim como eu gosto de você.

– Essas questões de relacionamento são complicadas, né? – complementou Ana.

Alberto aproveitou a conversa para se aprofundar no íntimo da ex-cunhada:

– Se são. Se todos os casais fossem como você e o Mário tudo estaria bem, Ana.

– Ih! Você nem sabe, eu e o Mário de vez em quando também temos cada arranca rabo que sai de baixo. Ontem mesmo tivemos um. Você pensa que ele foi a Brasília só por causa de política? Foi nada. Ele foi pra me castigar também. O Mário é assim, enfuna e depois ele volta atrás.

– Ana, você seria capaz de amar outro homem da maneira que você ama o Mário? Desculpe-me pelo tom da pergunta, mas é só curiosidade. Não tem nada a ver com vocês, é só uma curiosidade que tenho de todos os casais que se dão bem. Essa pergunta na realidade é bem pessoal.

– Olha, Alberto. Pra dizer a verdade, eu nunca pensei nisso. Eu vivo tão bem com o Mário, já me acostumei tanto com o jeitão dele que acho impossível abandoná-lo para ter outra relação e ele, tenho certeza, deve pensar da mesma forma. Acho que só pensaria numa coisa dessas se ele morresse e ele, talvez, encontrasse outra companheira se eu de repente faltasse. Acho que só a morte separa os relacionamentos realmente sinceros e leais.Vou pegar algo pra gente tomar, aceita um vinho? Temos um ótimo aqui.

– Aceito, Ana. Sou um apreciador de vinhos.

Quando Ana se levantou para providenciar o vinho, Alberto atravessou o seu vestido com os olhos, imaginando aquele corpo nu novamente. Seria capaz de cometer uma loucura como roubar-lhe um beijo e arrastá-la para a cama com ou sem o consentimento dela. Mas ele não queria assim. Ana não era como qualquer uma daquelas mulheres que ele costumava sair. Alberto preferia conquistá-la, seduzi-la, tê-la por completo todas as vezes que quisesse, mesmo que tivesse de se fazer de bonzinho e bem comportado para despertar o interesse dela. E, depois das palavras sinceras de Ana, um plano maquiavélico e nebuloso tomava forma no seu pensamento, precisava apenas de alguns meses para que aquela conversa fosse esquecida por Ana. Apreciou o vinho e conversou sobre política, família e até futebol com a ex-cunhada, demorando-se ali por mais uma hora. Por volta das nove horas da noite, ele se levantou do sofá, despedindo-se:

– Bem, a prosa está boa, mas preciso ir. O vinho estava uma delícia, Ana. Obrigado.

– Está cedo ainda, Alberto. Fica mais um pouco.

– Não posso, Ana. Bem que eu gostaria, a sua companhia é muito agradável. Mas minha agenda para amanhã está cheia de compromissos e o meu motorista deve estar até dormindo lá na gararem.

– Obrigado pela visita, Alberto. A sua companhia também é muito agradável. – Ana fechou a porta encantada com a educação e o refinamento do ex-cunhado que não havia mudado em nada desde que ela o conhecera, “O que será que deu na Mirtes para deixar escapar um homem desses? Bom , em problema pessoal em não me meto, mas o Alberto continua um pedaço de mau caminho”, concluiu, sem imaginar que aquele caminho era mais mau do que ela pensava. Alberto era uma caminho sem volta.

* * * * * * *

São Paulo, janeiro de 2012. O verão chegou com força total, o calor estava insuportável naquela tarde em que dois homens numa moto seguem à distância um veículo esperando o momento certo para o ataque. O motorista que dirige o veículo se livra do trânsito intenso da avenida e se desloca à procura de ruas mais calmas e rápidas para chegar ao local desejado, a sede paulista do PSE. Esta procura por ruas mais calmas e desertas era a brecha que os homens da moto estavam esperando. E no primeiro farol em que o motorista parou, a moto se aproximou do carro:

– Passa esse relógio e a carteira pra cá, bacana! Passa logo vai, vai! Vai rápido, cara! Rápidinho! Rapidinho!

O carro blindado, muito moderno, último tipo lançado no mercado, tinha todos os equipamentos de segurança que se podia imaginar. Tinha também ar condicionado, mas o distraído motorista, quase sessenta anos, preferia manter as janelas do carro abertas para sentir no rosto o vento que vinha das ruas. Naquela ocasião, um erro fatal. Mesmo assustado, o homem atendeu a ordem dos supostos assaltantes, entregando o relógio e a carteira. Eu disse ‘supostos assaltantes’ porque o que ocorria não era um assalto qualquer, tratava-se de uma emboscada. O homem que guiava a moto pegou os objetos, guardando-os nos bolsos da jaqueta, enquanto isso o parceiro dele decretava:

– Valeu, coroa! Temos um presentinho que mandaram pra você! – sacou uma pistola automática e dois estampidos quase surdos encerraram a missão. Um tiro no peito e outro na cabeça decretaram o fim do motorista.

Logo depois do incidente, o governador de São Paulo recebia no Palácio dos Bandeirantes um homem elegante e bem vestido com uma mala nas mãos. Aparentava ser um empresário, um executivo ou um político. Mas não, nada disso. Aquele homem era um dos assassinos do motorista.

– Ato consumado, governador. Tudo ocorreu como o senhor planejou. A investida foi perfeita. Não restou dúvida de que se tratou de latrocínio.

– Bom trabalho! Esse fator é o mais importante, ninguém pode suspeitar de nada, o cara era uma mala sem alça. Amanhã o dinheiro pelo trabalho já estará na sua conta. Faz três meses que estou esperando a maré baixar pra pegar esse peixe. Agora a sereia é minha!

– Desejo boa sorte na investida, chefia! Preciso ir, o dever me chama. Se o senhor precisar de mais algum serviço é só me chamar. Valeu? – despediu-se o pistoleiro apertando a mão do governador em cumprimento.

– Obrigado! Acho que por enquanto não vou precisar de mais nada. Pode ir!

Os jornais e noticiários televisivos divulgavam à exaustão o incidente ocorrido naquela tarde:

Articulador político do partido do governador é morto em assalto. Mário Loretto foi assassinado numa rua quase deserta perto do. . .

No velório de Mário, Alberto que estava muito triste e abatido, chegou até a chorar de saudade do amigo, companheiro e mentor político, prestava todo tipo de solidariedade à viúva Ana:

– Ana, se você quiser, durante este período difícil, pode ficar no Palácio, temos vários quartos lá, fique o quanto desejar. – o governador ofereceu residência à viúva.

– Obrigado, Alberto. Mas estas duas primeiras semanas eu vou ficar no apartamento da Mirtes, depois volto para o meu. A vida tem que seguir, não é?

– Sim Ana, como quiser. Vou deixar com você os meus telefones se você precisar de qualquer coisa é só me ligar. Tá bom?

– Obrigado, você é uma pessoa muito boa e prestativa. Vou guardá-los na minha bolsa, se eu precisar eu ligo.

O governador olhava fixamente para a cunhada e a sua mente imaginava as coisas mais impróprias para a ocasião, “Que tesão a Ana fica de luto! Tenho tara por mulher vestida de preto! Que viuvinha mais gostosa! Agora ela não me escapa mesmo! Como vou aguentar esperar mais tempo?”, Alberto sabia que agora era questão de paciência. Mais cedo ou mais tarde Ana se renderia completamente aos seus desejos.

* * * * * * *

Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 14/11/2010
Código do texto: T2614713
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