Arquivos Queimados.

Invadiram minha casa de madrugada. Eu havia dito demais no dia anterior, numa audiência pública. Dito o que para “eles” não poderia ser dito. Foi demais! Afinal de contas, “eles” também tinham suas vidas!

Estava eu sozinho. Minha mulher e filhos haviam viajado. Tivera que ficar devido ao trabalho. A madrugada estava fria. Minha mente dormente ouviu passos na grama do quintal. Saí para ver o que era. Três homens fortes com uma barra de ferro me golpearam na cabeça, pelas costas. Senti o baque de imediato, vendo por fim aquelas estrelinhas dos desenhos animados. Caí duro, morto ali mesmo.

Era o inverno de 1999. Tudo ruiu! E eu que pensava que teria futuro diferente, arquitetado na mente durante anos (sonhos...), talvez um apartamento no Guarujá..., me vi ali, caído no chão de minha própria casa; cabeça encharcada com aquele fedorento líquido vermelho e três caras apressados me olhando, não sabendo o que fazer, batendo suas cabeças idiotas, feito os irmãos metralha.

Fui pego de surpresa! Confesso. E acho que a morte vêm sempre produzindo seus murmúrios brandos, para que não a apercebamos e soframos tanto. Saber que ela virá amanhã, para se ter um exemplo, pode ser muito doloroso, mesmo em se tratando de morte. Pessoalmente não acho que a morte dói. Todo o temor que temos dela advém pela ansiedade pelo desconhecido. “Afinal, dói ou não?”, se indagam por aí aos borbotões. Jamais sabendo a verdade, até que chegue!

Achei que eram aqueles malditos gatos das madrugadas, que me atazanavam de vez em sempre. Mas não. Apenas agora depois de morto o sei realmente. Foram meus algozes! Meus “pequenos tiranos”, como gostava de empregar o Carlos Castaneda. Meus pequenos tiranos.

Outro dia recebi uma ligação da Assistência Judiciária da Ordem dos Advogados do Brasil para que defendesse um caso dito insólito. Defender um suspeito de agressão contra policiais. O indiciado dissera que fora abordado na rua pelos milicianos e que passou a ser revistado de forma violenta. Passaram-lhe as mão em sua bunda, puxaram sua cueca para cima, dando-lhe fortes tapas na cabeça, sem que sequer lhe fosse dada oportunidade de defesa, de se expressar, de “abrir a boca, caralho!”. Nada, era um animal na mão deles, mais precisamente, tendo em vista questões ambientais, um lixo. Aporrinharam sua vida até que ficou doente depois disso, fazendo tratamentos para dormir e esquecer que um dia fora daquela forma violentado justamente por detentores de poderes. Perdeu a dignidade, como me disse chorando de verdade. Quando se vê um homem de meia idade, surrado pela vida, pelo trabalho pesado, chorando desssa forma, dizendo que sempre buscou o trabalho para sustentar sua família, e que isso de fato é provado no processo, sua vida não é mais a mesma. Principalmente para quem defende. Fiquei puto da vida. Perdi o sentido de tudo. Enchi a cara naquela noite elaborando uma defesa escrita com meu sangue. Tinha que livrar aquele sujeito! Tinha que provar a verdade, que de fato ele é que era a vítima de tudo, que o viraram de ponta cabeça pelo simples fato de estar sujo do trabalho. Eram oito horas da noite de uma sexta feira. Acharam que era um fanfarrão drogado ou bêbado, que poderiam “zoar”, mostrar serviço, mostrar todo seu poderio másculo de Dirty Harry. Mas na verdade era mais um servente de pedreiro saindo de um dia todo de serviço, roupa suja!

Os algozes estão livres. A história da humanidade mostra que nem tudo são flores; foi cruel e na maioria das vezes o mal prevaleceu.

O servente de pedreiro foi condenado a dois anos de pena restritiva de direitos, prestação de serviço à comunidade e tudo mais.

Atualmente, livre da condenação, trabalha pesado e vez por outra lança um resquício de pensamento ao seu advogado dativo que, além de “perder a causa”, perdeu a vida...

Curiosidade: naquela fatídica noite havia eu, o morto, tomado uma cerveja ouvindo “Que País é Esse:”, da Legião Urbana, em alto e bom som.

Que loucura!

Savok Onaitsirk, 16.12.2.001.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 26/11/2010
Código do texto: T2637623
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