Divagações do Homem-Cão.

Sorte daqueles que, num futuro próximo de suas vidas, tenham dinheiro para pagar implante dentário. Caso contrário, à dentadura colada com corega! É uma triste realidade.

O medo dá origem à ganância e ambição, ambas em sua medida proporção, variada de cão pra cão. Observe que se utiliza o termo cão para significar homem, ser humano como um rato, um cão, um sapo, um macaco, um pato, um jumento, um porco, um saco cheio de excrementos, etc.

E assim o homem-cão prossegue desde o alvorecer. Vive sua raça, sua casta. Veste sua calça-armadura medieval, gasta, seca, puída, manchada; abraça sua causa e ruma autômato para o trabalho, tentando sempre pensar noutro dia, noutra coisa, nas férias de outrora, imaginárias, na vida passada, cheia de reminiscências felizes. Ultrapassa as mesmas calçadas de todos os santos dias; os santos de paus-ocos. Conhece cada percalço, cada rosa que de alguma forma, como no poema de Drummond, furou o cimento, o tédio, o medo, o nojo e o ódio, e se expôs benevolente ao sol e ao mundo, indiferente a riscos, raios, lamentos e vidas perdidas, portando apenas sua arma não letal de beleza, perfume e perfídia.

Vê todos os dias úteis o mesmo cidadão que lhe acena com a mão, dizendo-lhe rapidamente bom dia, naquele exato local de todos os santos dias. Não sabe quem é nem o que faz, se tem família ou se fica sozinho e incapaz; se está ali sob a guarda dos outros, que lhe dão o que de comer e onde dormir, ou se é um aposentado por invalidez, vivendo milagrosamente de seu minguado e humilhante salário mínimo nacional... E outrora bradou hinos ufanistas...

(CF, art. 7º, IV: salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.),

... o qual na expressão literal de sua definição legal, acima mencionada, deveriam os legisladores terem um pouco mais de seriedade a ponto de não ofender de tal maneira a inteligência dos brasileiros, empregando tantas diversificações de itens, um total de 9: moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, impossíveis de serem preenchidos com um salário mínimo atual de R$ 510,00. Chega realmente a ser tragicômico e ao mesmo tempo humilhante.

Não paga nem a moradia!

Votem em mim nas próximas eleições! Prometo que elevarei o salário mínimo para o patamar de R$ 2.000,00! Mas o povo também terá de se reformular no seu modo de trabalhar! Mais trabalho, menos conversa. Abandonar o hábito de fofocar em ambiente de trabalho, sobre a gostosa da mesa ao lado ou sobre os chifres do seu Olegário. E terão também que se condicionar a atuar em vários campos diversificados. Uma modelo, por exemplo, terá também de saber tirar leite da vaca, para que quando o boi reclamar a sua subida a novo patamar na carreira alva posta a plano, saiba também tirar leite de boi. Recondicionamento e auto-sustentabilidade serão as molas propulsoras dos séculos vindouros. Isto é, se o petróleo deixar.

Há fila pra tudo na vida de uma megalópole como São Paulo. Incrivelmente, há fila pra tudo. A brasilidade carrega em seu ideário inconsciente a definição de que é ético se enfileirar em portas de bancos e demais órgãos estatais. Afora isso, é questão de respeito, a fila para a refeição no almoço e jantar, a fila preferencial para idosos e gestantes, mas ficar na fila de instituições financeiras de lucros exorbitantes é revoltante. Não cumprem leis, criam as suas resoluções e por aí se baseiam. Nos futuros serão sistemas, máquinas, algo como o “grande irmão” de 1.984 que te fiscaliza suas economias e movimentações sem que você o veja. O eletrônico domará a situação. Seremos obrigados a nos interagir com micro-chips computadorizados; ouviremos frias vozes eletrônicas e ficaremos satisfeitos com isso. A massa tende sempre ao acondicionamento, à satisfação. Por mais que o cerco se feche, em dado momento a tendência da maioria é se acondicionar àquilo. Resmungam em primeiro plano, mas logo se aconchegam.

Por isso a humanidade perdura até hoje.

No primeiro ônibus Homem-Cão procura acordar para a realidade, esfregando os olhos para o mundo melhor enxergar. Ouve-se seu primeiro ronco, que vem acompanhado por uma leve ânsia de vômito. Estômago vazio. Nem um ovo sequer tinha em casa.

No segundo ônibus buscava ler um gibi do Tex Miller que há muito carregava consigo. Um gibi sem as capas. Tex, um belo e esbelto herói, portando um belo coldre com um 38 prateado cano longo. Nunca morria. Nem ele, Homem-Cão, nunca morria...

No intervalo entre o segundo e o terceiro ônibus comia um pedaço de bolo e um chá da barraca da dona Clotilde, que fumava muito, o que dava um aroma de fumaça nos bolos. Homem-Cão nem se importava.

Era sempre assim... Com o sacolejar do terceiro ônibus, e o bolo “defumaça” da dona Clotilde, fazia com que a barriga do Homem-Cão enjoasse, mas era coisa rápida.

Um leve cochilo até o metrô, Estação Sé. Homem-cão, já um trapo, era empurrado vagão à dentro. Acostumado, deixava as coisas fluírem, se soltava e ia ao embalo, sendo encoxado e empurrado de tudo quanto é jeito. Dedadas e cabos de guarda-chuvas nas costas eram os ataquem mais frequentes. Uma vez levou um tapa na orelha. Olhou pra trás e viu uma multidão enfurecida, babando pelos cantos das bocas e com olhares avermelhados e esbugalhados. Ficou com medo naquele dia.

Como sempre, chegava ao trabalho atrasado, arrasado e fodido. Olheiras profundas denotavam sua vida de cão. Sempre repreendido pelo patrão. Um dia você se fode, seu cão de merda!, dizia seu Olegário, o patrão, que mais parecia um algoz-otário.

O trabalho de hoje em dia era a panfletagem, um trabalho que requer emocional rígido. Homem-Cão não se importava mais com esse negócio de emocional. Tinha de fazer porque tinha de viver. E faria qualquer coisa pra viver, pra sobreviver. Não era mais questão de honras, glórias e outras frescuras, era estado de necessidade mesmo, era matar ou morrer...

Homem-Cão não tinha qualificação. Era um RG, um CPF e uma ficha limpa.

Seu almoço era composto de um “churrasco grego” com suco de laranja no Centro da Cidade. Havia fila também. Algumas pessoas ao seu lado fediam. Não se importava. Alguns esbarrões e recebia em mãos seu churrasco grego, que nada mais era que um pão francês e um amontoado de carne podre picada. Muitas vezes sofrera algumas indigestões, mas seu organismo fora se habituando com o tempo. Hoje pode comer até dois churrascos gregos que não sente mais nada. Está calejado!

Quinze minutos para voltar do almoço. De volta à panfletagem e à indiferença dos homens.

O homem deseja o próximo seja mais fraco para que possa se vangloriar em cima dele. Um homem de intelectualidade mediana gosta de se entreter com néscios no intuito de satisfazer seu ego. Ali explana e se acha um bacana, o qual os néscios esboçam suas surpresas e espantos expondo sorrisos amarelos.

Fim de expediente e Homem-Cão rebusca seu itinerário de cão, volta ao lar, se é que se pode chamar aquilo de lar, seu refúgio, local onde ao menos pode ter um sonho de amar e um leito para descansar. À tarde a multidão está ainda mais enfurecida, mas apressada. Qualquer minuto é minuto a mais de descanso, ou trabalho, uma vez que a cidade não pára. Apertam-se e se empurram na Sé 18:30. O cansaço físico e emocional faz com que por lapsos se animalizem, dirigindo olhares famintos uns aos outros. Confesso ser assustador.

Já em casa, onze da noite, um copo de pinga, um pedaço de moela e sono profundo, sono com pulgas, o rato monstro que por vezes passa por aí, e alguns gatos pretos preguiçosos que nada querem com a vida... Malditas baratas voadoras...

Lá fora, dentro do estágio fronteiriço entre sonho e realidade, um grito surdo ecoou de dentro da boca seca de uma velha bêbada... Sirenes se esgoelam na madrugada...

Cristiano Covas, 20.07.10.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 09/12/2010
Código do texto: T2661968
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